RETRATO DE MULHER COM COLAR DE ARMINHO — PICASSO (1923)
POGROM — LASAR SEGALL (1937)
OUTRO DIA INICIOU, MAS faria diferença se estivesse a terminar??? Os animais povoam a Terra com tenacidade de quem deseja apenas permanecer a viver. Viver outro dia com esforços concentrados em fazer acontecer uma guerra de inacreditável antiguidade: a guerra de todos contra todos já estava sendo escrita milênios antes de Thomas Hobbes. Batalhas que vêm de longe, muito longe. De um infinito de outras dimensões, de multiversos esses sem que nunca sejam minimamente identificados. Os poderosos que comandam os poderes da Terra.
ESSES GUERREIROS CÓSMICOS, também sob a forma de espíritos, jamais sairão vencedores uns dos outros. As criaturas existem no mundo para se oprimirem mutuamente. Tal igual aos opostos que nunca hão de parar de existir: dia/noite, sol/chuva, duro/macio, frente/verso, branco/preto, doce/salgado, alto/baixo... A guerra eterna é um caminho sem piedade. Um engenho criado por uma autoridade que não conversa com esses opostos porque sabe que foram criados para ser definitivos em seus conflitos, conflagrações, duelos, batalhas, embates.
OS HOMENS SE ABATERÃO mutuamente para sempre. São engenhos que nunca param de se hostilizar. Autoridades corruptíveis cuja virtude é o próximo passo aleatório em direção ao fim, sem outra finalidade que não seja a de continuar a confirmar a mortalidade corrompida por esperanças que nunca hão de se realizar, exceto aparentemente. O corpo do homem é adversário de si mesmo. Os ouros corpos, de outros homens, poderiam não ser adversários entre si???
O SENHORIO DOS EXÉRCITOS infinitos de espíritos não é apenas um. São muitos. Por mais guerras que façam entre si, nunca haverá um vencedor definitivo. A vitória é sempre um tempo etéreo que passa e se prepara para novas batalhas, vitórias, derrotas e continuidade sem fim de opressões que se renovam. Os que nascem oprimidos raramente conseguem reunir forças para vencer os muros que separam os que têm e os que não têm direitos. Uns lutam pelo direito de melhor oprimir os opositores que têm mais vantagens. Todos estão sempre a desejar até a última gota de sangue do inimigo vampirizado. Não há empatia com a compaixão inexistente.
EDNAH SABIA-SE DOMINADA pela violência dos opostos à sua sexualidade. Não haveria como fugir da condição de mulher que possui o tronco aberto na extremidade sul do torso. Enquanto eles, homens, possuem o instrumento de dominação externo de onde se projeta para cima quando sob excitação erótica. Dessa diferença derivam todas as agressões. O fruto da árvore está no meio do jardim: bem/mal/bem se alternam. Infinita mente de posse de todas as hostilidades.
A SERPENTE, SER SUPERIOR EM ardis e sabedoria estelar, proveniente de um multiverso ainda ignorado pelo recém-criado casal híbrido de primatas primeiros, anteriores, trazidos pelos comandos de um exército sideral, dividido pela hierarquia em luta por mais poder... Que poderia esse casal, relativamente ingênuo, fazer, senão ser usado pela poderosa secreção da Serpente??? Réptil criado antecipadamente para ser o centro da cosmologia planetária em formação. A instintiva formação, mãe de todas as demais deformações instintivas. Pulsão destrutiva sem a qual a vida inexiste.
AQUELES SERES, DITOS ANGELICAIS, vieram de distâncias incomensuráveis para semear na Terra a sensação de sensatez da proposta de povoar o planeta, fazê-lo crescer, povoar-se, crescer em quantidade: os grãos de areia nos desertos de rochas degradadas pelo tempo, senhores de todos os coveiros em universos milenares. Os filhos dela, Eva, dela Ednah, não passavam de frações, espermatozoides, sedimentos granulados arremedos quânticos, esperma com medição de 60 micrômetros (0,006 cm).
A TECNOLOGIA DE REPRODUÇÃO desses seres, assim como eles mesmos, nasceu da conjunção de um óvulo com 0,1 mm e um espermatozoide. Da conjunção dessas criações “high-tech” que povoam planetas, nasceram os filhos dos patriarcas bíblicos e se multiplicaram em geração e gerações de insensatez. Magnânimas e sombrias almas por vilezas mil acometidas. Tendo por horizonte a utopia de uma realização pessoal e social que afugentariam entre si na guerra eternas das bestas feras hominídeas das quais são criaturas híbridas. Homicidas.
ELES, ESPERMATOZOIDES, COMO se fossem partes de um exército de guerreiros supostamente disciplinados, se inseriram no corpo dela, Edinah, venceram bloqueios e objeções de prosperar no interior. De sua carne fraca. Foram entre trezentos e quinhentos milhões deles, jorrados ou arremessados em direção ao óvulo, alucinados, numa corrida olímpica em disputa da primazia pela vantagem da fecundação.
A COISA GERADA NELA, UM FETO, adaptou-se ao sítio inóspito de sua vagina tapeçada por colônias de lactobacilos que a defendiam de germes que a penetravam e nela se multiplicavam, a secretar ácido em defesa das enzimas e anticorpos. Glóbulos brancos se dispuseram a destruí-lo, tal como destroem vírus, fungos, bactérias e as próprias células dos espermatozoides.
APÓS VENCER BARREIRAS E PÂNTANOS vaginais, o esperma que conseguiu sobreviver às defesas da vagina, chegou até a parte inferior de seu útero e teve de forçar caminho no estreito canal do colo ou cérvix encontrando força no impulso para ultrapassar a tapeçaria de micro cílios que revestem as paredes do colo. Após vencer a resistência dos glóbulos brancos hostis, muitas vezes mais numerosos que os espermatozoides que chegaram até esse campo de batalha mais hostil, aquele que está mais à frente dos demais, fez desmoronar as hastes do muco e impediu, dessa forma, a infiltração dos demais espermas. “O que está embaixo é igual ao que em cima está”. O macro e o microcosmo se encontram em todos os lugares onde há convergência e divergência.
NESSE MICROCOSMO DE EVENTOS tântricos, começam as guerras no universo exterior. Elas sempre vitimizaram a humanidade. As guerras mundiais acontecem todos os dias. As principais, no século XX: 1914/18 e 1939/45. Ao reproduzir a matança de judeus em suas telas, Segall, na série Pogrom, aproximou-se da dramaticidade trágica presente nos campos de batalha e de concentração. Em Guernica a tela está coberta de cinzas após o bombardeio da cidade basca. Em Pogrom vemos o estupor, a inércia, o abandono de um povo entregue ao extermínio nos campos de matança nazistas. O terror se infiltrou em seus descendentes. As sociedades contemporâneas fabricam, todos os dias, santos ou não, os horrores nas ruas asfaltadas e enfeitadas do Natal da atual civilização.