Pequena Novela Em Sete Capítulos III

A Terceira Ligação.

- Alô!

- Acabei de ler sua mensagem. Aconteceu alguma coisa?

- Preciso conversar com você. Tem como vir ao meu apartamento assim que possível?

- Posso te encontrar daqui a algumas horas. Quando sair do trabalho. Mas estou preocupado. Sua voz não está como de costume. Não quer me adiantar algo?

Paulo conseguia ouvir a respiração de Vitória pelo telefone. Era uma respiração ofegante.

- Agente conversa pessoalmente. Eu te espero.

- Você está bem? Vai ficar bem?

- Acho que sim. Venha e conversamos.

Paulo contava as horas que restavam para o expediente acabar com certo desespero. Não gostara como Vitória apresentara aparentemente estar. A voz dela estava baubuciante. Trêmula e ansiosa. Ele não quietou-se dali em diante.

Quando finalmente livrou-se do trabalho saltou a ir de encontro a ela. Ainda estava traumatizado pelo acidente no qual se envolvera, e, devido a isso, não estava dirigindo. Mas arriscou pegar o carro. Estava muito ansioso e a condução seria árdua até o bairro dela se fosse de ônibus. Se ele passasse em casa e pegasse o carro seria mais vantajoso. E vantagem também lhe veio com a carona que conseguiu com um colega que trabalhava no mesmo turno que ele e que lhe deixaria a poucos quarteirões de sua rua. Ao ver-se em seu apartamento, tomou banho e saiu logo em seguida.

Já na rua, pode sentir-se, milagrosamente, bem a vontade ao dirigir. Não acreditava que todo o trauma pelo ocorrido no início da semana fosse se dissipar assim, tão subitamente. Acreditou que a preocupação em Vitória lhe tivesse tomado todo o juízo. Fazia o trajeto atento ao trânsito. Porém, deixava-se paralelo, pensando em Vitória. Por certo ela o estivesse esperando com ânsia. Não jugava menos que isso, ao considerar a forma como a voz dela dizia toda a sua interlocução. Ao se achar diante do prédio dela, estacionou . Antes mesmo que tocasse o interfone, ouviu-a gritar por seu nome. Ela estava vindo em sua direção. Chegou-se a ele:

- Fui ao mercado comprar café. Estava sem. Vamos entrar.

Paulo tomou para si o pacote que ela trazia. Mesmo achando bobagem - tendo que o pacote era pequeno e leve, - achou-se agradado pelo gesto. Pois aquilo era um gesto de intimidade. E ele gostou disso. Ela ia andando, falando alguma coisa sobre o jardim da entrada, no que ele ia fingindo dar atenção. Estava mesmo era pensativo. Pensava no que ela queria dizer-lhe. Quando por fim se viram adentrar o apartamento. Ela, antes de oferecer, já foi abrindo a garrafa de gin e foi com ela nas mãos até a cozinha. Ele se ajeitou na poltrona. Ela ela voltou da cozinha já coma a garrafa e dois copos.

- Que dias, esses! - ela disse, servindo-o.

- A semana começou num salto - ele disse, retórico.

Ela em seguida serviu-se. Ajeitou-se no sofá. Depois desajeitou-se. Decidiu ficar espalhada sobre ele por uns segundos. Seus pés alcançavam o braço do sofá e as mãos abraçavam o copo repousado sobre sua barriga que, por percepção dele, fazia o movimento da respiração parecer meigo e sutil. Ela apoiou a cabeça na outra extremidade do sofá e deixou o cabelo despencar ao ponto de alcançar o tapete. Um suspiro se fez ouvir na quietude daquele apartamento. Mas, erguendo-se de volta, ela penetrou o olhar nele. Um olhar sutil, porém vago. Seu semblante era outro agora. Os lábios dela pareciam querer se expressar além dos olhos. Ela, por um vulto de momento, pareceu ter alguns anos a mais, sua face se deixou pesar, apesar dos olhos brilharam ainda, insistentemente. Ele bebeu do gin, largando em seguida o copo sobre a mesinha de centro. Ela levantou a face e, a meio custo, visto que os lábios balbuciavam, começou a dizer:

- Ontem, a turma da faculdade não parava de comentar no grupo sobre um ex-aluno que havia falecido. As meninas criaram esse grupo para irmos mantendo contato, sabermos uns dos outros. Reunião de turma, essas coisas. Mas eu não conversava muito no grupo. Um bom dia e, vez ou outra, mandava uma mensagem de reflexão. Fora isso, não conversava muito. Mas o grupo ontem estava que não parava de chegar mensagens. E eu decidi dar uma acompanhada. As mensagens eram muitas, mas o pouco que consegui ler pude entender. Só se falava na morte do Rodrigo. Ele era da minha turma. Vivia me chamando para sair. No começo eu entendia como algo comum. Afinal, éramos jovens e desempedidos. Mas eu nunca aceitei. Ele insistia. Eu falava que não tinha interesse e ele ia insistindo cada vez com um ímpeto maior. Quando nos formamos, ele pediu que eu dançasse a valsa com ele. Mas eu disse que meu pai é quem ia me acompanhar. No dia do baile ele estava bebendo com um grupo de amigos. Já quase no final do baile, eu estava saindo do toalete e me deparei com ele, completamente bêbado e ainda com um drink nas mãos. Ele parou na minha frente e disse, apontando o dedo para mim, que, apesar de ser aquele baile a despedida da faculdade, nós ainda iríamos nos encontrar. Eu ri, com um canto da boca, meio debochada, e sai.

O tempo passou. Mas, há uns quatro meses, ele começou a me mandar mensagens no privado. No começo eram mensagens bonitas. Mas as mensagens passaram de belas a românticas. Depois iam sendo mais direcionadas. E lia no começo, só para ver até onde ele ia. Depois vieram, junto às mensagens, passagens poéticas, algumas amenas e umas chegavam a ser lascivas. Parei de ler. Quando recebia, imediatamente a apagava. Excluía ele da lista de contatos e ele voltava a mandá-las com um número deferente. E isso vinha se arrastando. Começou a uns quatro meses e a última coisa que recebi dele foi um vídeo no qual ele aparecia chorando e dizendo que eu estava destruindo a vida dele. Disse também que eu podia comemorar o desprezo que tinha por ele. Mas que a vida nos prega peça e quando a gente menos espera, já é tarde demais para tentar resgatar um amor ferido em alguém. Eu parei de receber mensagens dele. Fiquei aliviada, mas um pouco preocupada com as últimas frases que ele dissera. Mas fui levando a vida e esquecendo isso. O importante é que tive paz depois que ele parou de me mandar mensagens.

E eu te chamei aqui para saber se você se lembra do rapaz com o qual você se envolveu naquele acidente. Eu sei que não quer se lembrar disso. Mas só você pode me ajudar.

Paulo teve a concentração quebrada. Esteve dado ao que ela dizia com muita atenção. E, vendo que ela esperava impaciente sua resposta, disse:

- Eu não cheguei a vê-lo. Sai do meu carro retirado pelos paramédicos. Não assisto telejornais, por isso não ouvi e nem vi mais nada sobre aquele acidente.

- Gostaria de saber o nome dessa vítima. Ver fotos.

Paulo serviu-se. Olhou para ela, desta vez mais sereno:

- É muito fácil. Basta ver na internet. Você consegue descobrir se o rapaz daquele acidente era esse Rodrigo. Ou suas amigas mesmo podem te informar.

- Eu sei. Mas preferi falar com você porque tem outra coisa que quero te mostrar. E é isso que está me fazendo ficar atordoada.

Ao dizer isso, Vitória alcançou um caixa de sapato que estava sobre a estante. Voltou-se para o sofá. Arrastou-se para um canto e pediu que ele se sentasse junto a ela. Ele obedeceu. Ela abriu a caixa e começou a tirar algumas fotografias e mostrava-as a ele.

- Veja! São fotos minhas.

Ela ia mostrando uma por uma. Haviam várias fotografias dela e em vários lugares diferentes. Em todas elas ela estava sozinha. Sentada a um balcão, andando pelas ruas, no clube, saindo do hospital, em frente ao seu prédio, entrando e saindo. Eram fotografias que pareciam ter sido tiradas por um investigador.

- Ele esteve me observando esse tempo todo.

Ele olhou para ela e ela começou a chorar. Não era um suspiro. Era um choro alto. Às lágrimas escorriam pelo rosto e continuavam a escorrer pelo pescoço até sumiram por dentro da blusa. Ele a abraçou. Secou as lágrimas dela com a borda de sua camisa. Ela tentou se reestabelecer. Ele, vendo que ela conseguia continuar, indagou:

- Como descobriu essas fotos?

- Aí é que está. Eu não havia ido ao velório e então uma amiga me mandou mensagem logo que eu fiz um comentário no grupo. Ela me disse que a mãe dele perguntou porque eu não tinha ido e ela não soube responder. A mulher então pediu que ela me procurasse e dissesse que eu tinha que pegar as minhas coisas lá na casa dela caso eu quisesse. Minha amiga me perguntou se ele e eu tínhamos nós relacionado. Eu disse que não. Ela me lançou um olhar sarcástico e disse que eu não me preocupasse. Que eu sempre fora discreta e nunca gostava de me expôr. Eu disse que não tive nada com ele mas que agora estava assustada. Ela outra vez se fez de entendida. Eu realmente estava muito assutada. Mas também curiosa. Como eu jamais entraria naquela casa, pedia ela que me fizesse um favor. Que fosse até a casa dele e pegasse com a mãe dele as tais coisas e dissesse à velha que no momento eu estava viajando para bem longe, a trabalho. Ele concordou. Quando nos encontramos, eu disse a ela que em breve lhe contaria qualquer novidade. Ela estranhou. Peguei o pacote e vim para casa.

Ela abraçou o ombro dele e depois deitou a cabeça sobre ele. Ficaram um momento em silêncio. Ela estava lúcida. Ele ofereceu-lhe mais gin. Ela deu um trago leve. Ele perguntou a ela se podia usar o Notebook. Ela o apontou com a cabeça, à base da estante. Ele foi lá e pegou. Quando ligou, já foi abrindo um site pesquisa. Não demorou, várias páginas listadas traziam informações do acidente no qual se envolvera. Ele já conhecia as fontes mais idôneas de notícias e foi certeiro. Abri a página. Fez sinal para ela checar. Ela veio e juntos olhavam a página. Leram quase que em dueto. as informações eram largas. Diziam que um jovem que havia avançado o sinal vermelho em alta velocidade havia se envolvido num grave acidente que resultou em sua morte. O jovem era residente num hospital da região central. Legistas informaram que havia grande quantidade de álcool em seu organismo. E foram encontrados no carro uma garrafa de bebida alcoólica e uma arma.

Paulo não achou adequado ler toda a matéria. Mas o nome da vítima era Rodrigo. E Vitória viu a foto e o reconheceu.

- Havia uma arma no carro! - ela disse isso olhando fixamente para Paulo. Seu olhar era de espanto. Ele correspondeu com um olhar mais subjetivo.

Paulo já não estava conseguindo administrar os pensamentos. Por sua vez, Vitória resgatou-se. Ergueu-se e disse, grave:

- Preciso conversar com a mãe dele.

Paulo a olhou com reprovação.

- Não acha melhor esperar uns dias? - ele disse, trazendo-a para si num abraço de ombros - Ela ainda deve estar com a cabeça frágil. Não acho uma boa idéia interrogá-la no memento.

- Não quero interrogá-la. Só preciso saber se ela sabia que ele estava me perseguindo.

- Pensa bem. Não acho que isso seja a melhor coisa a fazer. Se é que o que eu acho tem valia. Mas veja bem: Ele já não existe mais nesse plano. Não está mais entre nós. Se estivesse vivo você certemente devesse se preocupar e até procurar a ajuda da polícia. Mas ele não vai mais te perseguir. Está morto. Ninguém mais vai monitorar sua vida e seus passos. É como se nunca tivesse acontecido. Não convém fazer questão de mais nada. Pensa na sua paz. Na sua saúde. Você não corre mais risco. Viva sua vida. Deixa isso de lado. Por mais que tenha sido um impacto descobrir tudo isso, você está segura. Isso é o que importa.

Vitória abraçou-o com força e disse:

- Acho que você está certo. Não convém criar uma situação além do que isso já tem me incomodado. Preciso esquecer isso. Quem sabe futuramente eu não comente com a mãe dele... Mas eu só queria saber o que ele falava sobre mim para ela. Pois ela sabia de alguma coisa que ele tenha inventado. Ou ela acreditava que ele e eu tivéssemos algo ou sabia da loucura dele. Como ela podia acreditar que ele eu eu éramos um casal se nunca nos viu juntos? É muito estranho. Mas vou seguir seu conselho. Por enquanto vou esquecer isso. Não convém ir além. Preciso é agradecer por estar aqui sabendo que ele não vai mais me incomodar. E além do mais, a mãe dele deve estar sofrendo muito. Vou deixá-la em paz.

- E também você vai acabar esquecendo, vai ver. Sua vida vai seguir seu rumo e você tem que aproveitar. É jovem e determinada.

Ela riu. Sentando-se no sofá. Ele aproveitou que estava em pé e serviu-se. Depois colocou um pouco no copo dela.

- Promete que vai esquecer isso? - ele perguntou.

Ela riu de fininho, um riso de consentimento.

Ele, hesitando, falou em seguida:

- E quer saber, eu também já sofri perseguição, há uns cinco anos.

Ela o olhou sério.

- Verdade?

- Sim. Eu estava aqui pensando se falava ou não falava. Mas decidi falar. Aconteceu quando eu namorava uma moça que havia conhecido no interior.

Vitória limitava-se a ouvir. Levou a mão ao queixo e apoiou os cotovelos sobre a coxa.

- E então?... - ela pedia que continuasse.

- Eu tinha ido passar o carnaval no interior. Na chácara de um amigo meu. E na cidadezinha o carnaval era bem animado. Não tinha tanta afobação, se comparada aos outros lugares mais tradicionais. Mas era bom e muito animado. Conheci essa moça logo no primeiro dia de festa. Ficamos juntos os três dias. O terceiro dia foi de despedida. Ela queria voltar a me ver e eu prometi que voltaria. Voltei um mês depois. Tirei o final de semana para isso. Na ocasião pedi aos pais dela que a deixasse voltar comigo por uns dias. O pai dela era muito conservador. Não permitiu. Eu disse a ela que depois voltaria com mais tempo e resolveria tudo. Voltei para casa. E num certo dia ela me surpreendeu com uma ligação. Que estava a caminho de me encontrar. Não teve outro jeito. A levei para o meu apartamento. O pai dela veio no meu encalço. Ele sabia a cidade em que eu morava mas não sabia mais nada. Eu sugeri que ela voltasse com o pai, que aquilo não ia dar certo. Ela disse que estava disposta a enfrentá-lo. Eu a fiz mudar de idéia. Eu gostava dela, mas não estava com o juízo distorcido. Era melhor me disvencilhar daquela situação. Recebi o pai dela no meu apartamento e conversamos. Tentei convencê-lo a deixá-la comigo que iríamos resolver. Ele perguntou se eu ia casar com ela e eu disse que isso não era algo para se resolver assim, na marra. Ele disse que eu tinha mexido com a filha dele e que eu estava amaldiçoado a partir daquele momento. Que nunca mais iria encontrar uma mulher na minha vida enquanto ele fosse vivo. Ela estava arrumando suas coisas e chorando. Eu disse que ela ia encontrar alguém de quem seu pai fosse gostar.

Que eu era apenas uma paixão passageira. Ela me disse que seu pai era como se tivesse uma entidade ruim que o guiava, porque era danado a lançar maldição nos outros e sempre pegava. Lembra que quando você contava a história do seu paciente eu disse que não gostava do nome Malvino? É porque o nome dele é Malvino. Lembrei dele na hora que você pronunciou esse nome.

O fato estranho é que desde aquele dia eu nunca mais me relacionei com alguém que desse certo. Nunca tive uma mulher por mais que um momento. Essa coisa de namorar, ter alguém com quem viajar, passar o final de semana... Nunca mais tive isso. Sou sozinho desde o dia que aquele homem falou aquilo.

Vitória o viu calar-se e esperou ele emendar algo. O que ele não fez. Então, ele comentou, boquiaberta:

- Misericórdia! Será se a maldição se fez valer?

Ele olhou para ela serio e meio amuado:

- Não duvido. Mas eu estou sentindo uma energia boa agora. Sempre que me lembro disso me bate uma melancolia; uma angústia. Mas agora, contando isso pra você eu sinto uma coisa diferente. Mesmo relembrando essa história eu sinto diferente. É algo bom.

continua...

Francis Sousa
Enviado por Francis Sousa em 26/09/2022
Reeditado em 28/09/2022
Código do texto: T7614774
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