Pequena Novela Em Sete Capítulos II.

A Segunda Ligação.

- Pois não!

- Paulo!

- É ele.

- Oi, amigo. Sou eu.

- Vitória! Como vai?

- Estou bem. Depois que você foi embora ontem eu deitei um pouco para descansar o corpo. O treino seria intenso. Mas o cochilo durou a tarde toda.

Ela fez uma pausa para soltar uma gargalhada debochada. E, antes que ela continuasse, ele disse, com voz solta:

- Às vezes o corpo faz isso com a gente. Pomos na cabeça que será só um breve cochilo e aí despejam-se as horas e lá se vai o dia quase todo.

- Pois foi isso mesmo que aconteceu. Eu perdi a tarde toda. Odeio dormir de tarde. Perde-se muito de um dia. Não sei o que pode ter sido. Não me acontece isso, normalmente.

- Será se não foi o gin?

- Não. Tomei só dois tragos. Isso nunca me tombou.

- Pois foi uma cobrança do corpo mesmo. Acontece.

- Pode ser. Mas sabe o que mais me deixou impressionada? Foi o peso que eu senti no corpo ao deitar. Como se estivesse tomado sedativo. Foi horrível. E foi um sono feio. Cheio de pesadelos aleatórios.

- Que desagradável. Gostaria que houvesse alguma parte onde eu pudesse contribuir com algo que te fizesse melhor. Ontem você foi tão companheira. Gostaria de retribuir.

- Se quiser pode.

- Como?

- Quando você tiver um tempo, agente pode se encontrar.

- Aonde?

- Podemos tomar um café durante o meu plantão. Hoje vou ficar na enfermaria. Terei pausas entre uma visita e outra. Se der para você. Seria bom conversar com você. Você é meu amigo. E só você consegue me passar segurança e boa energia.

Paulo fez-se em silêncio por alguns segundos. E, antes que ela se pusesse a continuar, ele deixou escorrer um breve tremor de lábios enquanto dizia:

- A felicidade que assume meu espírito agora é maior do que tudo que se diz grande e imenso. E pode ficar acalentada porque eu não negarei a você nenhum dos meus ombros.

Vitória, por sua vez, procurou equilíbrio e disse, buscando ser firme:

- Quando chegar no hospital avisa na portaria que estou às sua espera. Meu plantão se inicia as 19:00h. Pode me me aguardar na ala do segundo andar. Estou feliz que você vai. Agora vou te deixar trabalhar. Até logo.

Paulo viu o dia transcorrer como a ida arguta da água de um riacho raso rumo ao encontro da cheia. Sua cabeça estava leve; diferente de duas noites atrás. Passou o dia sereno. Deu-se ao logro de sair mais cedo do trabalho. Precisava adiantar algumas coisas que não podia adiar para o dia seguinte. Esteve por algumas horas a conversar com um vizinho de prédio. Conversa que se joga fora. Mas horas bem gastas; pois assim que se viu, já eram mais de cinco horas da tarde. Precisava estar no hospital.

Ao parar defronte àquele prédio que se erguia irredutível sobre os outros, o olhou da base ao topo. Talvez por ócio ou por um tênue vago em sua mente, um pensamento bom tomou conta dele; o que fez com que um largo sorriso se apossasse da sua face. Pensava na agradável companhia de Vitória. Nunca tinha ido a um hospital com expectativas tão boas. As boas expectativas que provêm de uma barganha ao se ter um ente querido acamado é de valia. Mas uma valia de consolo e resgate. A boa expectativa que se inseria nele era de aventura, ou qualquer outra comparação que ora lhe fojia.

Viu-se anunciar-se para o guarda que veio atendê-lo puxado por um andar lerdo e compassado. O Guarda, um sujeito malemolente, autorizou-o a passar pelo Hall. Ao ver-se na entrada para o térreo, disse ao outro guarda o que lhe fora instruído por Vitória. Pegou o elevador e logo se via na ala do segundo andar. Sentou-se em uma das várias cadeiras enfileiradas, que serviam também a mais duas dezenas de pessoas que se mantinham apáticas.

E por aí se passaram longos minutos. Eram quase oito quando avistou, ao longo do corredor, Vitória. Ela estava com mais duas residentes. Vinham conversando, próximas. Ela deu por ele. Pararam em frente ao ambulatório e ficaram ainda a conversar. Gesticulvam. Ele estava reparando nela. O jaleco escorrido ao longo do corpo davam retoque a esbelteza de Vitória. Até os sapatos brancos, pontudos, tomavam dele atenção que ele não dava a mais nada ali. Manteve-se ali, cotovelos atolados sobre os joelhos e as mãos inquietas. Já suadas, pode reparar. As mãos suavam e os pés não deixavam-se estáticos. Viu uma senhora robusta passando com um café cujo aroma chegava até ele. Sentiu vontade de pegar um café. Por que não. Ergueu-se. Ao fazer isso, ela virou o olhar nele e esticou brevemente o busto. Ele foi até a máquina e pegou um capuccino. Voltou para o assento. Passaram-se mais alguns minutos e ela despediu-se das colegas em seguida veio até ele.

- E não é que você veio mesmo - foi dizendo ela, dando-se à presença dele.

- Como combinado - ele riu.

Ela também riu. Seu próximo gesto foi arrumar o cabelo, prendendo-o numa parte que se deixava escapolir sobre as orelhas.

- E café? - indagou ela -Tinha? Quero um.

- Posso pegar para você.

- Café mesmo. Puro.

Em breve ele retornava com a bebida.

- O plantão hoje já começou pesado - disse ela, tomando para si o copo de café.

- O que houve?

- Perdi um paciente. O senhor Malvino. Deu entrada há quatro dias. Chegou lúcido. Esteve estável o tempo todo. E hoje mais cedo, após a medicação, sofreu uma parada cardíaca.

- Malvino... nunca gostei desse nome - ao dizer isso, Paulo arrependeu-se do comentário desnecessário e, olhando com ternura para Vitória, continuou: - O que ele tinha?

- Não chegamos a diagnosticá-lo. Ainda estava se restabelecendo para se submeter aos exames. Mas a princípio suspeitamos que fosse algo já generalizado nos rins. Pois ele viera de outro hospital aonde já havia passado algumas semanas. Mas os médicos de lá demoraram para descobrir que não era possível tratá-lo por lá. Infelizmente não podemos fazer muito. Teríamos feito. Senão fosse tarde. Mas eu não quero peso hoje. Ontem foi horrível. Estou triste por ter perdido um paciente que parecia tão lúcido. Mas depois de ontem quero me poupar de coisas desagradáveis. Ontem foi mesmo horrível.

- Por que não tenta esquecer o que aconteceu ontem também? Você estava tão bem quando nos despedimos.

- Pois foi assim que você foi embora. Foi como se sua ausência trouxesse algo que não estava ali antes de você chegar. Ou talvez sua presença tenha sido tão boa que, ao me deixar, esse troço esquesito tenha vindo tomar partido. Como que querendo me puxar para baixo.

- Você está sendo muito febril, falando dessa forma.

- Pode falar que eu estou sendo melodramática.

- Não é bem assim. Eu até acho positivo você dizer que a minha ausência tenha te deixado meio desconsolada. Foi assim que eu entendi quando você disse. Achei sua expressão um tanto forte. Mas o efeito foi positivo. E eu Estou aqui neste momento. Estou aqui.

Vitória não conseguia esconder a tristeza bordada na sua face. Permitiu que sua mão buscase a dele.

- Quando voltei, depois de te deixar lá embaixo, encontrei o apartamento pesado e frio. Senti uma energia forte e negativa. Deixei-me desabar no sofá. Logo me veio uma sensação estranha. Como se tivessem me aplicado algo forte. Tive muitos pesadelos. Num deles uma sombra se formava diante dos meus olhos. Parecia ter vindo do teto e vinha tomando forma de uma figura parecida com algo do sexo feminino. Veio se aproximando e sussurrou no meu ouvido. Eu ouvi. Foi tão real.

- Isso foi só uma paralesia do sono. Minha mãe teve uma fase depressiva antes de conhecer meu pai. Vivia tendo isso.

- Não estou deprimida.

Paulo pensou em abracá-la, mas cuidou não fazê-lo por enquanto.

- É claro que você não está deprimida. Percebe-se pelos seus olhos. Você está ótima. É só um estresse, uma fadiga... Vai por mim. Não sou especialista. Mas acredita em mim. São coisas que acontecem. Nosso corpo, nossa mente e nossas emoções são abaláveis das formas mais surpreendentes. Você está com esse olharzinho triste hoje. Mas seus olhos não mentem quando dizem que você está cheia de vida.

Vitória esboçou um sorriso.

- É lógico que eu estou ótima. São coisas pelas quais somos sucetiveis passar.

...continua...

Francis Sousa
Enviado por Francis Sousa em 23/09/2022
Reeditado em 28/09/2022
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