Pequena Novela Em Sete Capítulos I.

A primeira ligação.

- Sim!

- Vitória!

- É ela.

- Oi, minha amiga! Sou eu, o Paulo.

- Oi, Paulo. Como vai? Não reconheci o número.

- Estou ligando do corporativo. Nem devia.

- Quase não reconheci a voz, também. Você está bem?

- Acho que sim.

- Como assim? Acha que sim! E essa voz?

- Eu não sei exatamente. Estou meio frustrado. Uma energia bem forte saindo da minha cabeça.

- Energia forte saindo da cabeça?! Isso é meio pesado... Estranho de se dizer.

- Me expressei errado. O que quero dizer é que me sinto impulsionado. Há algo fluindo em mim que eu não sei o que é.

- Algo que você acredita eu poder entender?

- Desculpa eu ligar assim. Você deve achar que eu estou louco ou sob efeito de algum remédio. Mas não é nada disso.

- Não estou pensando isso. Só estou sem entender bem o que você está dizendo. Mas estou te ouvindo.

- Vitória! Eu ontem tive uma EQM.

- Uma o quê?

- Experiência de quase morte.

- Cruz credo!

- Mas eu estou bem. Não me sinto muito bem, mas estou bem.

- Como assim? Não se sente bem? O que está havendo?

- O rapaz do outro carro faleceu. E a imprudência foi minha.

Ao terminar essa frase, Paulo não conteve um tremor na voz. Fez uma pausa. Antes que se pusesse a continuar, a amiga tomou parte:

- Escuta! Tenta ficar calmo. Onde você está?

- No trabalho.

- No trabalho?!

- Eu não me lesionei. Fiquei no hospital porque estava em choque. Me liberaram e eu decidi vir trabalhar mas não consegui. Minha cabeça não está boa.

- Quer se encontrar comigo? Estou no plantão noturno hoje. Terei a manhã livre, antes de almoçar. Agente pode conversar. Se você estiver precisando.

- Podemos.

- Vem aqui no meu apartamento. Terei que ir ao treino pela tarde. Pode almoçar comigo.

O apartamento de Vitória ficava na zona Oeste. Paulo pegou condução e rumou para lá. Assim que desceu do segundo ônibus, andou três quarteirões e se viu diante do prédio amarelo. As paredes laterais conservavam a pintura, posto que na faxada cumpria haver uma coloração mais pálida. Era um desses prédios antigos. Ao passar pelo térreo sentiu uma melancolia. O teto da entrada era mais baixo e trazia um lustre velho, mas com uma luz clara; tão viva que rejuvenescia o local. O barulho da rua já quase não se ouvia. Como se o silêncio ali fosse imperador. O elevador antigo o levava ao terceiro andar. Logo que se viu no corredor a imagem de Vitória já tomava a porta do apartamento. Se abraçaram e entraram.

- Um gin? - fez ela, cortez.

- Você me acompanha?

- Acho que uns dois eu posso tomar. Se isso te deixar mais a vontade.

Ela o serviu. Tomou um copo para si. Fitou-o longamente. Ele esboçou um rebote com o olhar mais acanhado. Baixou ligeiramente a cabeça. Ergueu-a em seguida. Deu um trago.

- Imagina uma queda das alturas - foi dizendo ele. - Você está caindo não sabe sobre onde. Só sabe que está caindo e isso te causa angústia. Imaginou?

- Posso tentar imaginar como deve ter sido o que vivenciou. Falo do acidente em si. Mas como foi exatamente?

Paulo fez que ia gesticular, mas apertou uma mão contra a outra. Olhou-a:

- Eu ia reto - foi dizendo ele. - estava a uns noventa por hora; por aí. O sinal amarelou. Eu estava um pouco veloz. Se o semáforo estivesse uns trinta metros mais perto eu poderia até acelerar e seria seguro seguir. Mas dava tempo de reduzir e parar. Mas a noite já se havia avançado. Pouco movimento. Eu oscilei entre acelerar e parar. Não tinha nenhum outro veículo a vista. Nesse meio tempo eu perdi a noção do tempo e espaço e avancei assustado. Já era tarde para parar. Eu não sei o que deu em mim. Só vi o carro cruzando como um flash. A frente do meu carro acertou a lateral do carro dele em cheio. Meu airbag acionou. Lembro que enquanto os paramédicos estavam me prestando socorro, ouvi os outros socorristas da outra ambulância conversando entre si. Eles estavam dizendo que não havia mais o que ser feito pelo rapaz. Fui levado consciente para o pronto atendimento. Estranhei me liberarem imediatamente.

- Como você mesmo disse - foi dizendo Vitória, - estava tudo bem com você.

- Sim, eu estava bem. Mas eles deviam me interrogar.

- Mas se você não fugiu; o outro rapaz infelizmente não sobreviveu e te liberaram, por certo foi uma fatalidade. Se fosse imprudência da sua parte, eles teriam te intimado a ir a delegacia... Esses procedimentos... Em fim.

Paulo buscou os olhos dela. Seu semblante era uma mescla de preocupação e pensamento. Deu um trago na bebida e disse, com a voz branda:

- Se for retirar o susto pelo rapaz ter morrido e o fato de que o sinal amarelou para mim, minha consciência não estaria tão pesada. Pois fora isso foi realmente uma fatalidade. Mas ainda sou um cristão. E dói passar pelo que passei. Mas há algo que eu penso mas que não me convém pôr em questão, que é o seguinte: se o carro dele alcançou a frente do meu uma vez que o sinal amarelou para mim, ele talvez estivesse furado o sinal vermelho. O fato é que já o vi na minha frente. Foi rápido e não consigo lembrar de detalhes. Quando o sinal amarelou eu me concentrei em hesitar se passava ou não. Foram poucos segundos dentro dos quais aconteceu tudo e eu não consigo lembrar, para poder analisar.

Vitória esperou a breve pausa que ele fazia, enquanto enxugava a boca num gesto de labios, e falou:

- Talvez não haja culpa da sua parte. Se o sinal amarelou e você estava numa velocidade que te permitia continuar... Mas o certo é que se te liberaram não é ruim. O pior aconteceu. Você tem que superar o trauma. Se após a perícia te intimarem você faz o que precisar ser feito. Mas o que me surpreende é a sua tranquilidade para ter ido trabalhar. Eu mesma não teria.

- Eu estava sem norte. Eu tinha duas opções: ir para casa e ficar com isso o dia todo em mim, ou tentar me distrair trabalhando. Agora estou aqui com você.

- Eu tenho outra coisa para falar... Não é bem necessário falar, mas quero.

- Pode falar - disse ele, cabeça baixa.

- Você disse ter sido experiência de quase morte. Não acho que foi isso não. Foi um acidente.

- Mas se eu estivesse mais veloz era ele quem teria me acertado em cheio. Questão de um segundo.

- Nisso você tem razão.

Vitória, ao terminar essa frase, deixou um suspiro de cansaço tomar-lhe parte da energia que a mantinha-a ali, com ele. Paulo deveras soubesse que o assunto já não estava os tornando tão dados como na véspera. Então, erguendo-se, fez-se frente a ela e, sondando-a, pelos ângulos que se permitia, disse:

- Você está ótima. Só melhora a cada dia. Lembro de quando terminou a faculdade. Você entrou numa aspiral de dúvidas e incertezas. Eu sabia que era só uma frustração natural, uma mera transposição de fases. E olho para você agora. Se alongou. Se embelezou ainda mais. É louvável como estabilizou-se. E venho cá eu, com a cabeça embaralhada te tomar essas horas que deviam ser para o seu uso próprio. Para relaxar.

- Não se preocupe com isso - ela disse. - É louvável como a nossa amizade se mantém sólida a cada dia.

- Isso é mesmo glorioso.

Após dizer isso, Paulo virou-se contra ela. Ainda mexeu com as pontas dos dedos um suvenir que estava sobre a mesa de centro. Deixou despencar da face o sorriso que tentava conservar e disse, olhando sério para ela:

- Obrigado pelo tempo e atenção. Vou por aí.

- Pensei que fôssemos almoçar juntos.

- Eu agradeço. Mas Você têm treino a tarde. É melhor almoçar em paz e descansar um pouco.

- Mas almoçar com você não é almoçar sem paz. Não te entendi.

- O que quero dizer é que por certo você não esperava eu te ligar e vir até aqui. Eu meio que quebrei seus planos para hoje.

- Para de falar isso, moço - Ela deu uma risada jovial que o fez voltar a rir. - Te receber aqui está sendo ótimo. Eu geralmente passo parte da manhã sozinha. Eu gosto de estar sozinha. Mas receber um amigo não fere isso.

- Fico feliz por ouvir isso. Não sabe o bem que isso me faz.

- Então fica e almoça. Por favor.

Ele voltou-se para ela:

- Ficarei, com certeza.

Ela riu. Em seguida serviu-se de bebida e esticou a garrafa na direção dele.

coninua...

Francis Sousa
Enviado por Francis Sousa em 23/09/2022
Reeditado em 23/09/2022
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