A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE (REVELA AÇÕES) — LI—
A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE
(REVELA AÇÕES) — LI—
AS ENXAQUECAS eram uma tortura que me fazia desesperar de intensa dor. O casal as provocava, mas era como se não o fizesse. Eram uma oportunidade de ambos se deliciarem por saber que, uma criança ao sofrer tamanha intensidade de incômodos, teria certamente dificuldades de harmonizar ideias, pensamentos, memórias. A sensação de que meu crânio estava a explodir, os vômitos insistentes que não paravam de exigir mais contrações involuntárias dos músculos estomacais, a impelir o conteúdo para fora, não apenas do estômago, mas da bílis que subia até ele, do fígado intoxicado, talvez, pelas bolinhas prateadas de mercúrio odontológico que Paizão, com a conivência da mulher, jogava em minha xícara matinal de café com leite.
NÃO SEI SE o leitor notou que esta não é uma novela de ficção. Todos os fatos narrados, com exceção de nomes trocados no início da narrativa, “Les demoiselles d´Avignon”, em que menciono a cidade Recife, metáfora de rocha, e não da capital de Pernambuco, com mulheres se influenciando mutuamente e se dissolvendo na influência mútua, absorvidas pela vida pregressa no Inconsciente Coletivo da cidade, tudo o mais é realidade factual. Exceto também a introdução que apresenta o autor nesta frase entre aspas:
“MEU NOME É DANTE. Estou a viver no inferno consciente desta realidade”.
DULCE IT, “A Coisa”, assim como os demais personagens, os mencionados e os ainda não trazidos ao conhecimento de quem me ler, são literalmente reais. Imagine o leitor que me traduz e ajuda a me decodificar, um membro familiar, o primogênito, jogando num campo familiar minado, jogando contra onze adversários vestindo a camisa do time cujo técnico é Paizão Coisinha Pedófilo, e o preparador físico é Mãezona Vodu. O amigo leitor pode perguntar:
— Qual a formação dos times para o jogo??? A resposta só pode ser uma:
— Onze jogadores que jogam contra um.
— Mas assim fica muito previsível o resultado, dirá você.
— Querendo ou não, o singular jogador sem par, terá de aceitar condição. Aceita porque precisa manter-se vivo, não obstante a incrível formação dos times. Onze contra um é um tanto quanto desigual. Qualquer criança vê isto.
MAS ERA ESTE o jogo que eu tinha obrigação de jogar. Aguentar as crises de enxaqueca, a quantidade enorme de sacanagens que os nove jogadores aprontavam para estar bem com o técnico e o preparador físico. Considere que esse jogo não era disputado com duas equipes com o mesmo número de antagonistas. Eram onze contra um. Uma partida normal de futebol tem, em média, noventa minutos. Eu teria de jogar esse jogo até quando resistiria??? Jogar esse jogo a vida toda não é nada fácil. Mas eu estava a jogar. Afinal, que escolha eu tinha??? O técnico do time, Paizão Coisinha Pedófilo, sabia que minhas possibilidades de ganhar eram muito raras, nesse jogo muito atípico. Onze contra um: que chance tinha de sair vencedor???
MINHA CHANCE era simplesmente manter-me vivo. Eu não poderia nunca contar com Mãezona e o cônjuge. Toda vez que eu solicitava alguma ajuda para ir resistindo, lá vinha ela com a mesma lengalenga:
— Meu filho, isso, meu filho aquilo. Seu pai isso, seu pai aquilo outro. Eles nunca estavam com disponibilidade financeira para me ajudar. Mas, aos demais filhos, eles contribuíam com mesadas robustas. Até compraram um apartamento para Dulce It, “A Coisa”. Pagaram metade do valor do imóvel, a outra metade a Terezona Sapato, sua prima e amante, filha da irmã de Mãezona que a detestava do fundo do coração, não sem razão. E por ela era também detestada.
AS HOSTILIDADES familiares eram muitas. A tia, mãe de Terezona, não cansava de ser escrachada por Mãezona. E vice-versa. Ambas mantinham um relacionamento, por vezes calado, mas de mútua hostilidade silenciosa. Mãezona já havia dito que ela, sua irmã e rival, frequentava os bares do baixo meretrício da rua Paissandu. Sentava-se em mesas dentro dos puteiros e esperava alguém lhe pagar uma cerveja com birita, e, na sequência, aceitava ir para um quarto, transar. Fosse com mulher ou marmanjo. Isto acontecia após ela ter ficado viúva. Passando as filhas e o filho a serem criados por dona Cora, parente próxima do marido assassinado.
TALVEZ POR isso, por uma natividade tão precária, o filho dela, forçado a sobreviver em empregos, sem condições de frequentar uma faculdade, mostrava uma circunstância existencial condizente com suas dificuldades: seu caminhar era afetado. A bunda saracoteava e se mantinha empinada, voltada para cima, como se estivesse preparada para uma situação de penetração. Existem muitas histórias que a gurizada contava que via, quando os donos da casa não estavam, e eles olhavam o que acontecia dentro da casa, após obtido acesso visual à sala, quando se penduravam no parapeito da janela que dava para a rua, e olhavam para dentro dela.
MEU AMIGO de cor, o Zuca, me falou que os primos eram flagrados chupando-se mutuamente. O que me foi confirmado por outro moleque com que eu conversava quando ia jogar no “campo do Horácio”. A sociedade local não tinha uma orientação moral que os impedisse dessas práticas, talvez herança de seus ancestrais. Mãezona certa vez me disse, de chofre, num súbito e raro arroubo de franqueza:
— Em minha família isso é normal. Como se dissesse que homem macho entre seus familiares, eram raros. E ela, talvez, não conhecia nenhum. Aquela confissão me causou pasmo e me propiciou uma contínua reflexão, um não pouco ruminar sobre minha própria condição de homem, da qual eu me orgulhava. Desde que a Aldenora, doméstica da casa, me propiciava seu bumbum oferecido, nas horas de descanso dos afazeres domésticos. Principalmente quando ambos os adultos não estavam em casa.
EU DESFRUTEI, felizmente, de uma sucessão de aulas de catecismo. Influenciado por um forte componente de caráter religioso, eu costumava matutar longamente sobre as situações mostradas e comentadas em pequenos impressos de quatro pequenas páginas, que eram distribuídos em cada seção de instrução na catequese do sábado. Mãezona fez uma coisa boa com relação a mim. Incentivava-me a frequentar as aulas de catecismo. E eu gostava demais de ir e ouvir o padre na Igreja do Amparo, nos finais de semana, dissertar sobre o “quadro sagrado” do dia, distribuído em mãos dos meninos que frequentavam a homilia do dia; na parte da tarde de sábado.
ESSA INFLUÊNCIA adquirida na prática de princípios de culto, fé e doutrina, me salvou da respiração do ar contaminado apenas pelo clima de sacanagem que dominava as influências de rua, na plataforma das canoas de pescadores onde se podia encontrar garotas, quase meninas, nas escadas e passarelas de banho de rio.
A EDUCAÇÃO neandertal que instigava e induzia comportamentos padronizados nas salas de aula, nas diversões do recreio nas escolas, as conversas de coreto na praça Pedro II, as fanfarras das noites convividas nas praias de areia do rio Parnaíba, a frequência de amizades do Clube dos Diários, ou no Jóquei Clube: todas essas experiências passavam pelo crivo da condição de comparação, paridade e analogia com os ensinamentos contidos nas quatro pequenas páginas dos ensinamentos do Antigo e do Novo Testamentos. As aulas de catecismo foram para mim a prancha que me proporcionou deslizar por sobre as ondas do tsunami de influências bastardas e espúrias da molecada das ruas. Mas nem por isso menos prestigiadas pelo guardador de memórias de influências passadas.