A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE (REVELA AÇÕES) — XLII—
A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE
(REVELA AÇÕES) — XLII—
QUANDO SAÍ do jornal "O Fluminense", onde exercia os cargos de repórter de setor, crítico de cinema e funcionário do departamento de distribuição do jornal, comecei a viver uma vida marginal. Afinal, eu estava na chuva e tinha mesmo de me molhar. Para enfrentar o mundo Cão não precisei castrar-me ou desistir de minha sexualidade. Não, pelo contrário. Todo dia era dia de sobreviver e matar um leão na arena do imperador Mercado. Eu não contribuía para ele. Meu trabalho agora consistia em ganhar o mais preciso ouro que existe. A mais preciosa de todas as pedras preciosas: o Tempo.
MEU PSIQUISMO estava sempre fazendo e respondendo às mais diferentes interrogações. A vida começava a fazer sentido porque eu estava a vivenciá-la em minhas observações. Tudo em minha realidade começava a fazer sentido porque eu estava a duvidar de tudo. De todo o mundo de incongruências do qual eu fazia parte. Compreendê-lo era também uma parte da tarefa de compreender a mim mesmo.
EU HAVIA LIDO Descartes e duvidava de tudo. Das realidades que se me apresentavam de frente a frente com a tarefa de estar vivo do Dia Seguinte. Eu queria chegar a compreender as verdades do mundo que se escondiam em todos os lugares, em todas as vias aéreas dos tapetes voadores. Dylan cantava: “até o tapete sem você voou/E não há mais nada negro amor”.
EU HAVIA ME mandado, saído fora, não juntei tudo que pudesse levar, porque não havia nada para juntar. Exceto privações, reveses, estorvos. Nada naquela família de onde saí era meu, nem parecia meu. Eu era o filho singular que ficou só. Fugindo das maluquices em meu redor. Não houve tempo para chorar sob a luz do sol. O fogo solar me motivava a ir em frente, migrar de praia em praia, explorando o universo estelar de minha mente. Dona marijuana me motivou. Eu era um Alquimista que estava no corredor, sem mais nada que não fosse o cadinho que me trazia as revelações do dia a dia.
SOB MEUS PÉS o solo não rachou. A única certeza era o chão firme de areia, cimento ou asfalto que eu pisava. A estrada para mim era o cassino no qual eu jogava todas as minhas fichas. As garotas perdidas no espaço tempo ao sabor do vento era a certeza da bendita indecência: um tesouro que consegui por coincidência. Eu cruzava com o pintor de rua que caminhava só, que desenhava Ipês a cores em seu lençol. Eu era um marinheiro mareado que tão cedo não abandonaria o mar.
EU ERA UM guerreiro armado da esperança de que essa luta contra os milhares de fantasmas do Castelo de Otranto da atualidade, eu venceria. Eu havia mesmo de vencer. Eu existia para vencê-la. Não sabia exatamente como. Mas a certeza de que a obrigação moral, biológica, minha razão e intelecto, a força de minha juventude não poderia ser desperdiçada sendo mais outro robô do exército coisificado de androides e autômatos da ditadura militar. Eu até usei muitas vezes o restaurante do então Ministério da Guerra no centro do Rio de Janeiro, para matar minha fome.
A AMIZADE que me acompanhava na empreitada de filar uma refeição no Ministério da Guerra, na vigência da repressão militar, meu amigo de aventura urbana, Luís Carlos Alves, um malandro cobra criada nas areias psicodélicas de Copacabana. Eu não queria nem saber. Ia adentrando o Ministério em busca de uma refeição. Os recrutas que ficavam na porta do edifício do Ministério da Guerra, quando tentavam me parar, meu amigo intervinha dizendo:
— “Ele é sobrinho do general Geisel”. Os recrutas da portaria do Ministério, na dúvida, permitiam que entrássemos e fôssemos pegar a bandejão para nos servir da refeição muito em conta no restaurante ministerial da Guerra. Eu, um cara com cabelos ouriçados, enormes, um hippie brasileiro, não poucas vezes filei um rango nas dependências do inimigo de farda. Até que um dia nos informaram que o restaurante tinha acabado. Quero crê que não por minha causa. Era um escândalo: dois cabeludos em meio àquelas pessoas muito bem ajuizadas, que trabalhavam na burocracia do Ministério da Guerra, na vigência dos Anos de Chumbo da ditadura.
NA ÉPOCA vivíamos de expedientes, artifícios, engenhos e improvisações. Habitávamos em apartamentos alugados os quais pagávamos apenas o primeiro aluguel, quando não alugávamos para pagamento posterior em trinta dias. Ficávamos a habitar esses imóveis até vir o oficial de justiça dizer que tínhamos um prazo para sair do apartamento ou sermos desabitados a força policial.
DO LARGO do Machado, Copacabana, Ipanema, meu caro amigo Luís Carlos partiu em direção à mineração de ouro na Amazônia. Os apartamentos que “alugávamos” serviam para acolher as garotas sem teto que vagavam no Aterro do Flamengo, nas areias das praias onde o pôr do sol era visto com um cigarro de marijuana nos lábios. As garotas vinham de tudo que é lugar: Petrópolis, Teresópolis, Friburgo, e da vasta área de cidades do vasto litoral fluminense.
AS AMIZADES se faziam valer no conhecimento aleatório nos bares, no areal, no famoso “Beco da Fome”, onde o macarrão à bolonhesa custava uma ninharia e socorria dezenas de efebos e garotas de programa no teatro urbano brasileira na hora imperativa da larica. A rapaziada “cabeça feita” costumava frequentar as sessões de meia noite do Cine Ritz na Avenida Atlântida, onde não poucas vezes o Nelson Motta, ao adentrar uma fila de cadeiras com suas vestimentas espalhafatosas, era muito vaiado.
UMA MINORIA dentro de uma minoria desses jovens, costumava frequentar também as exposições e as cinematecas do MAM e do MIS onde iam buscar acolhimento nas salas de exibição de filmes clássicos e ditos “de Arte”. Essas salas serviam também de acolhimento da paranoia acentuada pelo uso de drogas, que o mercado de distribuição alimentado, dizia-se, pelo pessoal da CIA, em caráter de experimental de controle mental coletivo MK-Ultra. A estrada da liberdade sempre soma perigos.
A AGÊNCIA Central de Inteligência dos EUA ampliava nos países latino-americanos suas experiências de controle mental da mocidade, com drogas alucinógenas tipo LSD. Essa juventude, se controlada, não estaria pondo em risco a hegemonia americana na liderança de comando, comunicação e controle de seu mercado consumidor de mercadorias em confronto com a disputa desses mercados na Guerra-Fria com a poderosa, temida e ex-União Soviética.