A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE (REVELA AÇÕES) — XXXVII —
A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE
(REVELA AÇÕES) — XXXVII —
MÃEZONA TINHA absoluta e absurda certeza de que conhecia os mais esconsos segredos e desejos da vida dos filhos que havia parido. Ela havia cismado que a coisa mais certa de todas as coisas para mim, seria ficar perto dela a render homenagens à sua genial capacidade de parir, de modo geral e de ter-me parido de modo particular. Eu, na avaliação dela, tinha sido criado não por um ser superior dotado de poderio criador. Criador de todos os seres humanos. Ser esse que havia colonizado a Terra para os descendentes de Adão e Eva.
NÃO, PARA ELA, a criação de seus filhos era dela. Ela teria plena dominação de seus direitos à vida e à liberdade de serem o que ela achava que deveriam ser. Eu, de mim para comigo, tudo que mais queria da vida era sair da proximidade dela e de suas fixações psicóticas. Suas certezas para mim eram delírios dos quais eu tinha de achar um jeito de me afastar, mais cedo ou mais tarde. Não seria nada fácil. Mas eu tinha certeza de que, de alguma forma, conseguiria vencer o muro da vergonha que ela havia erguido entre mim e meus objetivos de vida.
SONHAR NÃO é tarefa à qual se pague dividendos. Eu sonhava também pela razão de não ter de pagar a ninguém por meus sonhos. Não pagava a ninguém pelo direito de usar minha imaginação e meus pensamentos. Mãezona queria porque queria ser madona e dona de meu imaginar e pensar. Queria deles se apropriar e usava de todos os golpes baixos que conhecia sem considerar as consequências de usar os meios mais baixos do vodu, do pó dos mortos-vivos que soprara em meu rosto de modo covarde e súbito.
AMPARADO POR minha vontade pessoal de liberdade, eu confiava que poderia ser livre. Livre. Expressar-me segundo a avaliação do mundo do conhecimento, da experiência, da afirmação de meus pensamentos.
EU HAVIA lido sobre o livre-arbítrio nas considerações filosóficas de Nietzsche. Para ele a ideia do livre-arbítrio havia sido introduzida no pensamento ocidental pelo cristianismo de Santo Agostinho. Segundo ele, Nietzsche, era uma forma de exercer o controle da livre escolha pelo temor de eleger essa escolha, por ela se responsabilizar futuramente. Ora, eu tinha em mente que eu sou a mente e o coração de mim mesmo. E é desse âmago que eu vejo o mundo. Não importando como seja visto por ele.
EU ESTAVA, após sair do jornal “O Fluminense” por pressão do superintendente e do chefe de redação que me deu o ultimatum: ou eu escreveria meus artigos e críticas a partir dos filmes exibidos pela empresa fundada em Fortaleza, Luiz Severiano Ribeiro, agora com sede no Rio de Janeiro, ou não teria mais direito a continuar escrevendo minha crítica cinematográficas no jornal.
EM OUTROS termos: ou eu me dobrava às exigências da distribuidora de filmes da Metro-Goldwyn-Mayer, ou eu não teria mais o espaço no jornal. Ou eu cederia aos interesses da fundadora do Cine Majestic, hoje grupo Kinoplex (RJ), ou não mais teria espaço no jornal para escrever sobre cinema Novo, Expressionismo alemão, nouvelle vague, New Wave japonesa, ou cineastas da cinematografia do Leste europeu.
NA ÉPOCA EU estava influenciado pelas ideias do esquerdismo vigente na imprensa nanica, na MPB, nos livros do marxismo editado pela editora Brasiliense. Eu estava sendo conduzido pelo inenarrável tsunami de ideias e ideais de um humanismo cristão lançado no lixão da necessidade de sobrevivência. Como alimentar meu estômago, minha insaciável sede de viver, em sendo uma vítima da cultura familiar que havia sido devastada na correnteza do rio subterrâneo de universo que acaba de morrer???
COMO NASCER a partir de um caos existencial sartreano de uma Náusea universal que não fornecia a menor possibilidade de viver??? Viver a juventude, viver a paisagem das praias, montanhas e delícias das vaginas das garotas, quase meninas e mulheres que não paravam de se oferecer???
AS MINHAS universidades estavam nas ruas e praias. Eu tinha de encarar uma realidade para a qual ninguém estava preparado. Eu tinha de sobreviver em meio às mais ingentes precariedades nas quais, não apenas eu, mas toda uma juventude mundial estava a se debater, a se queimar, a se molhar na chuva tempestuosa de não ter nenhuma orientação formal de como proceder para simplesmente sobreviver.
SOBREVIVER SEM perder o direito de manter viva minha sexualidade. A atração pelo sexo oposto me dominava totalmente. Eu gostava dessa dominação. Mas, eu parecia mais um rapaz perdido numa ilha tipo Lost tropicália. Cercado por pessoas que estavam caindo aos milhares no colo de relacionamentos com outras do mesmo sexo. Os trans, os bissexuais, os trissexuais, os assexuados, os desmunhecados, os personagens mais desgastados pela velocidade com que não podiam mais resistir às exigências e padecimentos do chamado da urgência do consumo.
TODOS FAZIAM qualquer coisa para estar vivos no dia seguinte da sobrevivência. Da urgência de ter de se alimentar, de conseguir um emprego, de se manter estudando num curso profissional, numa faculdade mantida a partir da prostituição do corpo físico sem a qual não poderia comer um sanduíche com Coca-Cola no Dia Seguinte. Era um deus nos acuda sem possibilidade de ser acudido por nenhum deus.
COMO EU poderia preservar-me??? Comecei a forçar entrada em agências de publicidade e propaganda que me permitiam a sobrevivência sem que precisasse fazer o que parecia que todos ao redor estavam fazendo: entregar os pontos e remoer o pranto por não poder nada fazer para afirmar a própria visão do mundo em seu favor. A corrupção do corpo, o deboche de qualquer noção de dignidade, a preservação impossível da própria noção de gênero.
NÃO POUCOS indivíduos se mantinham às custas do prazer que proporcionavam a outros pela venda da mais-valia do trabalho de se corromper e deteriorar no erotismo e na lubricidade dos afazeres de “pintar o sete” no banco do carona, ou nos motéis onde travecos faziam valer a onda de uma modernidade tropicalista da hora do faz de conta, na hora do faz de tudo. Era como se a humanidade tivesse perdido qualquer referencial de preservação da razão, do intelecto, do sexo, de tudo. Era um vale tudo. Vale quem vier. Vale dançar homem com lobisomem e mulher com jacaré.