A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE (REVELA AÇÕES) — XXXII —
A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE
(REVELA AÇÕES) — XXXII —
APÓS UMA enfermeira vizinha vir aplicar durante algum tempo injeções de Benzeatcil na filharada de Mãezona, para nela combater o surto familiar de sífilis, ela, como sempre, parecia não saber de onde vinha o flagelo, a pestilência caracterizada por lesões na pele e mucosas. Seus filhos viviam com a pele cheia de perebas que ela, uma curandeira proveniente da época das receitas de cura medievais, aplicava esparadrapo quente nas feridas dos filhotes menores e maiores. Dizia ela que era
— Cura na certa.
— Mas dói, mãe, dói muito.
— Deixem de bancar os molengas, não querem ficar curados???
— Mas, quem disse que isso cura??? Essa pergunta era respondida com tapas na boca.
— Tu és besta, moleque, estás duvidando do trabalho de tua mãe??? Eu teria todo esse trabalho se não tivesse certeza??? Minha vó Carmó, minha mãe, curavam feridas desse tipo desse jeito.
EU CALAVA para não ser espancado na boca por contestar esse método avoengo de curar feridas na pele provocadas pela sífilis. Pela sífilis que Paizão Coisinha esfregava na gengiva dos filhos durante o período que os mantinha no colo, balançando-se na rede de tucum na sala de jantar. Ou na cadeira de atendimento dentário em seu consultório.
A COISA DA pedofilia de Paizão ficava tão escancarada, que não poucas pessoas adentravam a sala pelo corredor aberto, se entranhavam furtivamente em casa para, cochichando entre si, ficarem pelo tempo em que não fossem vistas, vigilantes dele com os filhos no colo, cantando canções do cancioneiro chorão da MPB da época, e fugando o ar em busca do odor de esperma que se espalhava pela sala. Por vezes, quando descobertas, inventavam uma desculpa esfarrapada para terem adentrado, pelo corredor, até a sala onde furtivamente eram, por vezes, encontradas.
HOJE, PENSO que aquele casal de criaturas bizarras, que me usavam enquanto “bode expiatório” de seus desvios, lapsos, falhas, atos falhos, faltas, erros, crimes, culpas, e para livrarem-se de suas responsabilidades familiares para comigo, estavam, eles também sendo vitimados por famílias que, em seu entorno social, os estavam usando, enquanto núcleo familiar “bode expiatório” de suas culpas, crimes, erros, faltas, atos falhos, falhas, lapsos e desvios de uma sociedade satanizada pela concupiscência, pelo desprezo aos mais necessitados, pela injúria, calúnia e difamação que daí provêm para que se sentissem melhores que eles e mais aptos à uma sobrevivência mais rica de recursos.
AFINAL, EM frente à porta da rua de sua casa estavam a habitar muitos familiares da família Portela que tinham contato visual com a tragédia familiar todos os dias. Uma de suas irmãs me chamava pelo nome e dizia.
— Eu posso adotar você. Você não prefere vir morar aqui em nossa casa??? Você terá mais condições de se educar, e não vai levar surras de seu pai com frequência.
— Eu pensava por rápidos segundos na possibilidade. Mas aí vinha a força dominante de Mãezona que parecia me abarcar e conter com dizeres tais como:
— “Com quem com suas boas Marias faz, em sua casa está em paz”. Eu pensava: essas também são Marias. Maria também Teresa, Maria das Dores, Maria Luíza..., mas daí vinha um arrependimento antecipado. A onipresença de Mãezona também dizia:
— “Não há ninguém no mundo que saiba zelar e proteger um filho do que a própria mãe”. — “Nem toda mãe usa coroa, mas toda mãe é do lar a rainha”.
— “A mãe surge toda vez que dá a lua à uma nova criança. É como se ela nascesse outra vez, toda vez que está a parir juma nova cria”.
UM AMONTOADO de culpa foi se juntando quando eu pensava que não estaria mais, todo dia, ao lado dela. Não tinha plena consciência de estar sendo boicotado profundamente por ela. Que a cada dia me roubava a oportunidade de investir em meus próprios recursos, em minhas próprias estratégias de vida. Minha resposta, nos finalmentes da abordagem da vizinha Portela era sempre a mesma:
— “Não quero não. Obrigado, não quero deixar minha mãe”. Talvez ela soubesse que minha resposta sempre seria essa. E por isso fizesse a oferta de adoção. Como vou saber ao certo até onde era sincera o mimo de amparo e acolhida dela??? Dizia também que uma outra irmã dela já adotara outra criança e que eu não estaria sozinho com outro irmão para brincar. Mas como a presença de Mãezona e seus filhos com quem eu convivera até então, não teria uma força de gravidade a me puxar até eles toda vez que os visse da calçada em frente à minha antiga moradia???
ERA UMA situação familiar bastante confusa. Eu estava ciente da inacreditável rejeição daquela família: Paizão Coisinha, Mãezona, irmãos e irmãs. Mas também estava ciente do quanto aquela infusão no epicentro da explosão nuclear dos traumas e complexos e condicionamentos familiares já tinham envolvido minha consciência como se fosse ela parte da nuvem de memórias que nela me aprisionavam subjetivamente.
A FAMÍLIA enquanto uma totalidade de seres que eram extensões das necessidades do casal bizarro, já me engolfara em suas projeções. Não havia onze deles, mas apenas um deles de cada vez, enclausurados na psique um do outro e de cada criança que crescia para se tornar também uma cópia automatizada de suas iniquidades adultas.
CADA UM deles seria para toda a vida um androide, um fantoche, uma marionete saída das profundidades abissais da criação familiar. Criados que foram por protótipos de uma instabilidade emocional vivendo para afirmar a si mesma. Influenciados, os descendentes, por aqueles psiquismos que se hostilizariam até a morte. Mesmo que a morte de um ou de outro, o óbito que viesse primeiramente ao anexo, provocasse no sobrevivente lágrimas de crocodilo.