A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE (REVELA AÇÕES) — XXIII —
A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE
(REVELA AÇÕES) — XXIII —
A DUPLA DE cônjuges a quem eu deveria chamar de pais parecia a mim, uma criança, não ter a mínima ideia das responsabilidades que deveriam ter por consequência de terem casado. O casamento para eles não passava de mais uma festividade, tipo pular fogueiras de São João. Haviam certamente combinado que seria bom para eles ter filhos, fariam como todos fazem: vestido de noiva de um lado, terno e gravata do outro. Convivas a comemorar a conjunção carnal sem propósitos pertinentes, relevantes e meritórios. Apenas botar mais bocas para devorar os recursos naturais do mundo.
SUAS VIDAS estavam mais secas de sentido moral e de responsabilidade para com seus descendentes, que as vidas secas do romance de Graciliano Ramos. Neste, a narrativa está ambientada no sertão de chuvas escassas, da indiferença e do desdém dos governos para com investimentos sociais. Aquele casal, nascido e criado em terras nordestinas, eram uma metáfora viva do ambiente hostil do sertanejo.
ESTAVAM ELES despidos, despreparados, carentes e privados de educação elementar. Casaram como teriam almoçado uma buchada de bode. Os filhos sairiam da barriga dela como a buchada seria excretada num vaso sanitário. A família seria uma representação, uma alegoria, um símbolo da República do bananal: a foto da estiagem da alma nacional. Seriam outro exemplo do descaso por investimentos sociais.
UMA FAMÍLIA a mais para os vícios, a marginalidade, as drogas, a sodomização sistemática de crianças sem nenhum amparo de moralidade religiosa, amparadas apenas pela existência em si. Não tinham sequer um mínimo compromisso com educação dos filhos. O contrato conjugal deles era uma formalidade, um rito irresponsável. Um ritual cartorial previsto nos padrões, costumes e liturgias cerimoniais.
ESTAVAM A cumprir apenas a pulsão natural dos infelizes que se juntavam por medo de ficarem sozinhos, abandonados no meio do Saara infernal. Retirantes de uma miséria familiar antanha, para a criação da expansão dessa miséria familiar no nosso belo quadro social, como diria o cantor baiano Raul Seixas. Depois do casamento, era pagar pra ver: depois é depois. As atrocidades que daí sairiam, ninguém se importaria com elas. O importante para Mãezona era parir e parir outra vez, todo tempo que fosse possível embuchar. Para ela era um ritual de poder. Poder gerar vida de suas misérias, de suas barrigadas.
SERIAM OUTRO casal Fabiano e Sinhá Vitória urbano, numa sociedade que os ignoraria superlativamente e à sua descendência de escravos. Cada membro familiar e todos eles querendo apenas e exclusivamente ser vitoriosos na sobrevivência soberana, uns sobre os outros. Sem nenhum saber valorar o que é ou não ânimo pertinente a um estado de espírito voltado ao exercício de algum valor ou moralidade. O narcisismo selvagem de uma sociedade sem princípios ou patrimônio moral.
CRIADO EM meio a essa mixórdia de chafurdo, eu só queria me sair o melhor possível e zelar por minha integridade física o quanto fosse possível preservá-la. Seria difícil. Eu estava em meio à explosão nuclear de duas bombas nucleares cheias de traumas, complexos de inferioridade, ressentimentos. Eu nasci em meio às alas mais devastadas de assistencialismo governamental do país. Eu nasci em meio à miséria nordestina destinada a sambar na ala mais atrasada da escola de samba Brasil. Um país recheado de veadinhos dissimulando alegria, dançarinas de concursos televisivos, apresentadores de programas de música sertaneja que cantam as mazelas de ser corno, ou ter perdido a Juma que vira onça no Pantanal.
EU ESTAVA no epicentro da explosão nuclear de vicissitudes mil. O lugar familiar era um sepulcro vigiado por espíritos opressores que se oprimiam entre si e a quem por perto deles estivesse. Queriam a qualquer preço que eu aceitasse ser prisioneiro de guerra deles. Da guerra familiar por absorver a todos na esponja da própria mediocridade.
QUE PODERIA eu fazer para ficar longe daqueles anjos do inferno randomizado do Inconsciente Coletivo Familiar??? Eu tinha de fazer de contas que contemporizava com eles, ou não teria como subsistir entre eles. Eu precisava comer, dormir, estudar num ambiente francamente hostil às minhas necessidades, as mais vitais.
EU VIA AQUELE ambiente familiar como sendo uma arapuca de Satã. O ecossistema familiar sentia o maior prazer em me manter sob a mais-valia de suas necessidades. Minha presença significava para eles, cada um de seus filhos, uma maior escassez de possibilidades. Desde que qualquer valor canalizado para minha sobrevivência significava estar “tirando o pão da boca de seus irmãos menores”.
MEUS SENTIMENTOS, minhas emoções, meu coração e minha mente pertenciam a outro universo, a outra realidade, a diferente horizonte de eventos. Minha realidade interna não era sequer semelhante à deles. E eles sentiam um envolvente e sádico prazer de me ver nela, realidade, e me manter atrelado à opressão de suas muitas necessidades. Sem nunca, nenhuma vez, considerar as minhas privações.