A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE (REVELA AÇÕES) — XXI—

A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE (REVELA AÇÕES) — XXI—

NENHUM MEMBRO daquela família me via com bons olhos. Todos estavam plugados no fato de que eu era uma ameaça à sobrevivência material, uma ameaça de dividir um pouco da pobreza familiar comigo. Pretendiam saber, melhor do que eu mesmo, o que era bom ou mal para mim. A força do Inconsciente Coletivo familiar era superlativa. O que eu podia contra ela??? Talvez estivessem todos com medo de que eu cumprisse minha promessa de um dia revelar toda aquela insana relação de um pai pedófilo e de uma mãe conivente com a pedofilia familiar. Necessária para submetê-los à pobreza de seus corações e mentes infectados por aquela energia tenebrosa que os envolvia nas sessões de transtorno da preferência sexual paterna.

EU NÃO TERIA nunca um lugar em que pudesse ser ouvido e visto. Eu tinha em mente que tudo poderia terminar bem. Se eles não estivessem tão fanaticamente polarizados. O ódio de Paizão por mim, sua implacável concentração de negação a qualquer iniciativa de minha parte, me fez tirar minhas dezenas de revistinha de suas estantes no corredor, e amontoá-las nos porões cheios de votos de papel amontoados do Tribunal Regional Eleitoral que ficava na esquina, logo depois da casa de alugada por Paizão e do Colégio.

AO VOLTAR DO RJ, ela se dedicava a fazer valer seu tempo ensinando uma turma de alunas a modificar com pinças quentes, aquecidas em pequenas lamparinas à base de álcool, abrasadas por sobre um pavio. Ao manipular a pinça no corpo das bonecas, ela modificava a textura do material de que eram feitas, e as pernas e braços podiam dobrar-se para cima, para baixo para os lados, fazendo com que parecessem, após outras etapas da manufatura, príncipes, nobres, reis, rainhas, bailarinas, anões, espadachins, palhaços.

TALVEZ ELA TENHA feito esse curso no intuito de, não apenas se divertir manipulando bonecas manualmente, já que não podia manipular como queria, a direção para a qual pretendia que eu seguisse. Depois da desfiguração das pequenas manequins, era só uniformizar as bonecas, vestindo-as a contento com calcinhas, saiotes, sapatilhas, pulseiras, culotes, vestimentas de corte, colares, pulseiras e enfeites, finalizando com retoques de pintura nos olhos, nos lábios, nas unhas e sobrancelhas. Após sobrepor artificialmente os supercílios, ou desenhar as sobrancelhas, tecia os cabelos com certo tipo de linha, com os fios das quais moduladas as cabeleiras: lá estavam suas criações manufaturadas. Seus bibelôs.

ESSA FRUSTRAÇÃO por gestar e parir a mim, a quem tentava de todas as formas diminuir, dominar reduzir aos domínios do espaço dentro da caixa em que ela mesma se encontrava sem saída, aumentava sua vontade de um dia conseguir que eu seguisse suas orientações. Mas como poderiam ser adequadas, benignas, indulgentes, se a vida dela era uma miséria solitária, atrelada a outra vida miserável de um viciado em drogas que investia na exaltação irresponsável de seus neurônios. E a havia traído e jogado fora qualquer possibilidade de se reconciliar consigo mesmo e mutuamente.

NESSE PERÍODO, após a volta da viagem, ela ficou mais outras vez grávida, agora do décimo filho, o Coisnha Jr. No domingo, exasperada com a demora do marido que saíra para se divertir na coroa de areia do rio Parnaíba que, nos meses dos “b-r-o-b-r-ó-s” (setembro, outubro, novembro, dezembro) atraía centenas de pessoas que iam se bronzear próximas aos quiosques de palha onde a cerveja gelada e a cachacinha com tira-gosto de mariscos os faziam ficar até o entardecer. Marmanjos trocando figurinhas, embebedando-se, dando vazão às suas temeridades, complexos e recalques, em papos de grupo onde a pobreza de espíritos os fazia embarcar na nau das piadas sexistas, bem característica do machismo estrutural que escondia a impotência de suas ideias e a morte de seus ideais.

MÂEZONA, LÁ pelas dezesseis horas, saiu de casa acompanhada por mim e pela Zélia, uma moça do interior que era hóspede de casa e viera para estudar na capital do Estado. Ela olhava para a barriga inchada, grávida, próxima à data do parto e abanava as mãos sobre ela, injuriando com palavras ofensivas, o embrião que estava próximo à data de ser vomitado de suas entranhas que o amaldiçoavam. Sim, porque o Coisinha Jr., prestes a nascer, estava certamente empatizando todo aquele discurso de rejeição que ela fazia com relação à Paizão e ao Coisinha que estava para nascer.

DÉCADAS DEPOIS de parir Coisinha Jr., esse se revelou uma criatura desmiolada, frágil, que ameaçava suicidar-se para fazer chantagem com o agora casal idosos que eram seus pais. Coisinha Jr. se refugiava na casa de um e de outro. Pediu guarita na casa de Fernão e Vanja, primos que haviam se casado e moravam em Natal. Algum tempo depois saiu brigado de lá porque queria apossar-se da parte anexa da casa que o casal havia liberado para ele morar, alegando que haviam doado a casa para ele nela instalar uma academia de musculação.

PAIZÃO E MÃEZONA não tinham mesmo a mínima noção da responsabilidade superlativa que é planejar trazer uma criança para o mundo. Esse mundo cão. Este é um livro sobre verdades que raramente, ou quase nunca são ditas. Talvez porque tenham tudo a ver com a base frágil nas quais se erguem as palafitas da maior parte das famílias. Pais deviam estar para os filhos, presumo, como as ondas na areia da praia estão para a força inesgotável do tempo, marcando a existência do mar em noite de lua cheia: iluminando de brancas salivas, nos discursos de suas profundas idades.

MAS ESSE CASAL me teve por filho para me abandonar no deserto do lugar em que prosperaria suas desditas. Ainda agora me pergunto como conseguiram sabotar com toda essa convicção, minha vida, minha fé, minhas esperanças, negando-me com toda convicção, a criação de meu amanhã, segundo meus discernimentos.

PAIZÃO TARDIAMENTE tenha se dado conta dos malefícios que processou em meu desfavor durante toda sua vida. Eu havia me levantado da mesa de estudos — estava a cursar a faculdade de Letras — ele subitamente ajoelhou-se em frente a mim, os braços levantados e repetindo:

— Perdoe-me. Perdoe-me. Perdoe-me.

EU ME DETIVE A olhar surpreso para ele. Sem saber o que fazer: se me ajoelhava frente a ele e o abraçava também dizendo:

— Tudo bem. Não é preciso fazer isto. Levante-se. — Mas o amontoado de indignidades ao longo da vida que eu havia identificado nele, não me permitiu senão ficar a olhar para a criatura patética que, de joelhos, me pedia por perdão. Nesse momento surge, súbito, como que sabendo que deveria estar sempre a vigiar o marido e as suas possíveis atitudes que poderiam contrariá-la e mudar o curso da realidade familiar, Mãezona. Ela quebrou a continuidade de um possível desfecho outro, que não meu afastamento pasmo, perplexo, devido à cena de vera estranheza. Mãezona olhou para mim, interrogativa, enquanto o marido se levantara e se afastava rumo ao quarto. Eu disse, ainda interrogativo:

— Ele se ajoelhou e estava a me pedir perdão. Mãezona ouviu minha fala e, furtiva, calada, possivelmente raivosa, saiu de cena, como quem não gostou nada do que viu e ouviu. Com dois ou três fungados saiu atrás do marido como se fosse repreendê-lo. Talvez, de alguma forma, o tivesse mesmo repreendido. Até o silêncio dela era intenso e repressor. Não havia traços de civilidade e solidariedade nela.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 23/05/2022
Reeditado em 16/10/2022
Código do texto: T7521908
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