A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE (REVELA AÇÕES) — XX —
A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE
(REVELA AÇÕES) — XX —
MINHA AVÓ MATERNA lembrava, nas faces, olhos e formato da boca esgarçada, uma Coruja. Coruja é ave soberana da noite. Mistério, conhecimento, inteligência, sabedoria. Ela via além das sombras e da escuridão. Certo dia ela me disse:
— Sua mãe nunca teve olhos na vida para mais nada. Tudo que ela queria ser era ter o destino atrelado ao de seu pai. Tudo que ela queria ser era ser a puta do marido dela. Os filhos, eles eram só motivos para a amarração dele nela.
ELA ME PEGOU DE surpresa. Não esperava dela uma fala de intensa sinceridade e verdade. Mas suas palavras me fizeram pensar e concluir que ela estava certa. Mas, essa realidade mudou radicalmente quando Paizão passou a frequentar a casa de uma professorinha primária. Mãezona experimentou um choque de veracidade. Ambos se hostilizavam mutuamente.
ELE NÃO ESTAVA mais na companhia de um amor acima de tudo e de todas as coisas. Ele agora era invectivado verbalmente ultrajado com palavras de profunda ira, eu diria ódio mesmo. Mostrava-se profundamente ultrajada. Não como anteriormente, nas brigas de casais. Mostraram-se odientos, implacáveis, principalmente ela. Paizão passou a alegar com frequência a situação de insolvência familiar devido ao fato dela fazer questão de ficar buchuda todos os anos. Culpava-a por não usar um dos muitos métodos anticoncepcionais à disposição das mulheres.
MÃEZONA RETRUCAVA que não fazia isso, não usava o “Diu”, dispositivo intrauterino de plástico no formato de T, inserido no útero porque o Papa dizia que era pecado qualquer método anticoncepcional. Ela era cristã e não ia contrariar o chefe da Igreja Romana. Estava mentindo. Mãezona não usava anticoncepcional porque tinha a expectativa de que haveria de ter uma criança que ela pudesse dominar tão completamente que pudesse sentir-se senhora de suas ações.
A NECESSIDADE DE ter alguém sempre disponível para ela, só para ela, era um sentimento que não conseguia esconder. Por vezes sentia essa impossibilidade, ficava muito irada, a face certa vez mostrou-se transtornada, ela olhou para mim com olhos de alguém muito estressada, psicótica mesmo, censurando-me disse, fazendo um gesto de mãos como quem estava a torcer o pescoço de alguém:
— “Se eu pudesse torcia o pescoço de cada um deles”. Ela estava se referindo aos filhos e a mim de modo particular. Os lábios no rosto estavam contraídos e inequivocamente furiosos. Eu, que sempre mostrei uma profunda identificação com seu estado perturbado, por compreender que não era fácil, nunca havia sido fácil a vida infantil dela. A vida de indescritíveis traumas e necessidades:
TALVEZ, QUEM SABE dizer ao certo??? Ela estava querendo dizer as coisas ditas na canção “Aos Nossos Filhos”, cantada algum tempo depois com sentimento insondável, por Elis Regina:
— Perdoem a cara amarrada/Perdoem a falta de abraço/Perdoem a falta de espaço/Os dias eram assim/Perdoem por tantos perigos/Perdoem a falta de abrigo/Perdoem a falta de amigos/Os dias eram assim/Perdoem a falta de folhas/Perdoem a falta de ar/Perdoem a falta de escolha/Os dias eram assim/E quando passarem a limpo/E quando cortarem os laços/E quando soltarem os cintos/Façam a festa por mim/E quando lavarem a mágoa/E quando lavarem a alma/E quando lavarem a água/Lavem os olhos por mim/Quando brotarem as flores/Quando crescerem as matas/Quando colherem os frutos/Digam o gosto pra mim/Digam o gosto pra mim!!!
AQUELA MULHER BRAVA, que dizia, olhando para mim, n o fundo de meu olhar perplexo e humilhado de criança, que ela era arauto de uma soberania sem fim. Era uma artista que não soube dominar a arte de perdoar. Achava que merecia tudo de melhor por ter passado, por ter vivido, vivenciado tantos e íntimos horrores, tantas convividas misérias. Não estava nela superá-las. Não havia forças para isto.
ELA MESMA CONTRIBUÍA inconscientemente para que a situação familiar fosse insolvente. Tudo acontecia no mundo do astral, do Inconsciente Pessoal dela, reforçado pelas energias ativas e hostis do Inconsciente Familiar e Social que a devorava por dentro com seu tsunami de ressentimentos.
ELA, NUM ÁTIMO, percebeu minha intensa empatia com seus sofrimentos anímicos indizíveis, incomunicáveis de outra forma que não fosse por esse impulso de dizer suas verdades a quem pudesse compreendê-la e, talvez, quem sabe, perdoar sua inacreditável frustração enquanto ser humano desumanizado desde a mais tenra idade. Ela então, de repente, sentiu que eu estava profundamente decepcionado com a ameaça dela para comigo e o geral de seus outros filhos. Ela sabia que aquele momento ficaria indelével em minha memória. Mas, talvez se sentisse melhor com essa explosão de raiva, de desilusão, desgosto e desencanto.
O CIRCUITO HUMANO da soberania narcísica havia nela se instalado. O poder de engravidar e parir ou abortar todos os anos, a contemplava com essa compensação: poder gestar, embuchar, sentir uma forma de vida que ela jamais poderia dominar, crescendo, desenvolvendo-se dentro dela, em suas entranhas estranhas. Talvez se perguntasse quem, ou que tipo de poder estaria usando-a para um jogo de faz de conta que é ela quem vai ter alguma influência sobre cada um deles. Ela sabia que não era assim. Por isso mesmo não podia senão colérica, irritadiça, irascível, zangadiça.
ELA QUERIA QUE todos reconhecessem que ela era a Criação, não apenas um instrumento dela. Queria que lhe dissessem:
— “Salve Senhora de nobre estirpe. Estais a distribuir justiça aos mortais a quem aferiste origem. Os deuses te escolheram para parir esses teus filhos. Embora angustiada estejas com eles e saibas que não serão para ti senão uma canga em teu pescoço”. A tragédia pessoal, familiar e social dela, Mãezona, foi não ter confiado na força de meu caráter, nas promessas que fiz quando criança de que haveria de conseguir, a partir do fogo prometeico que me aquecia e no qual eu acreditava, pudesse libertá-la de sua enorme pobreza material e de espírito. Ela não acreditou em mim.