A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE (REVELA AÇÕES) — IX —
A MOÇADA DA PERCEPÇÃO BLUE
(REVELA AÇÕES) — IX —
EUZINHO NÃO PASSAVA de um recém-nascido, mas intuitivamente me perguntava se havia ou não um jeito de ter nascido noutro lugar, que não fosse habitado por criaturas essas de antiga e passiva compleição milenar. Futuramente me perguntaria se, em algum lugar do universo estelar, teria acontecido um erro de avaliação, e teriam mandado a Cegonha para o lugar errado. Na família errada, no país errado, no planeta equivocado.
ESSA CONFIGURAÇÃO DE lugar de nascimento não poderia estar certa. Perguntava-me quantos espíritos encarnados nesse plano planetário teriam tido, ao nascer, essas semelhantes percepções de estar num lugar no qual a hostilidade fosse tão manifesta às possibilidades de o corpo crescer e se desenvolver em espiritualidade. Em racionalidade.
HAVIA NASCIDO HÁ tão pouco tempo, e já me preocupava com estratégias que teria de criar para escapar das garras ferinas daquela turba disposta a me tornar um transgressor das leis da moralidade universal, das mais legítimas possibilidades de desenvolvimento físico, mental, intelectual.
CERTA VEZ, ALGUM tempo muito depois, quando eu já havia chegado à idade adulta, sonhei com uma cidade muito antiga. Parecia-me uma grande necrópole com túmulos enormes, talvez egípcia. Havia cinco partições retangulares na tampa do jazigo enorme. A cobertura da cripta havia sido deslocada e estava de pé à direita e na parte superior do mausoléu. Eu olhei em sua direção e a vi, aquela Coisa que devia ter sido minha mãe, como se fosse uma extensão da tampa da tumba.
A SENSAÇÃO DE contemplação de uma força sobrenatural. A estampa estava meia que translúcida. Mas suas feições eram identificáveis, assim como a sensação emocional que transmitia, como se fosse ela se identificando a si mesma. Ela, ao mesmo tempo uma pessoa de pé e simultaneamente uma extensão da tampa da campa. A figura espantosa se desvaneceu. Ela, ao mesmo tempo a tampa da tumba e seu conteúdo. Simultaneamente.
TENHO A IMPRESSÃO de que tudo que ela queria de mim era a submissão. Como se alegasse que havia me parido, me carregado nove meses em suas entranhas, gestação e parição, cuidados. Por isso ela achava que eu deveria seguir todas as suas projeções sobre meu futuro e minhas vontades. Anular-me. Euzinho, agora desperto, memorizei-me criança e aconchegado entre suas pernas que pendiam de um assento comprido de madeira polida que ficava na sala de jantar.
O DESPERTAR DO quase pesadelo me trouxe à tona a memória de uma das muitas canções que ela costumava cantar durante suas sessões de enlevo, durante as quais parecia embriagada por memórias muito ancestrais: “lagarta pintada/quem foi que te pintou/foi a velha cachimbeira/por aqui passou/no tempo de areia/fazia poeira/puxa lagarta/por essa orelha”. Ao fim da cantiga ela puxava para baixo muitas vezes o lóbulo de minhas orelhas.
EU ME LIBERTAVA dos puxões de orelhas que haviam se tornado doídos. Se não me afastasse, talvez ela ficasse puxando ainda por algum tempo, ignorando que doíam. Eu tinha a impressão de que tudo nele, Paizão Coisinha, e nela, estava contaminado por uma vontade de dominação do meu direcionamento futuro. Como se soubessem o que era melhor para mim, independente de minha disposição de ânimo e de minha vontade.
ERA COMO SE ambos não quisessem que eu exercesse minha liberdade. Respeito próprio e mútuo não exercitavam para comigo. Nem com relação a eles mesmos. Tinham em relação a mim a consideração que um gerente de creche dedica às crianças. Eles mesmos não eram mais que crianças na creche do faz de conta que somos adultos.
TALVEZ ACREDITASSEM poderia eu ser um Golem trazido das entranhas de suas vontades delirantes, para a realidade da satisfação de suas expectativas de poder libertar a ambos de suas misérias materiais. A partir enriquecimento material que eles tanto necessitavam, mas não tinham como fazer acontecer, senão talvez, através de algum recurso da filiação. Eu intuía isso neles. E fiz por onde pudesse essa possibilidade acontecer. Afinal das contas eu, por alguma mágica que nem sei explicar, gostava deles. E queria, quando crescesse, proteger e ampará-los de alguma forma.
RESPEITO PRÓPRIO E mútuo de há muito os havia abandonado. As hostilidades eram diárias. O fato dele cheirar coca que me mandava buscar na farmácia do Tomazinho, de vez em quando dá uns tapas numa cigarrilha de maconha, quando a mulher, apreensiva, costumava borrifar desodorante ou espalhar talco na sala de espera vazia por ser tarde da noite, no consultório e no quarto de dormir contíguo, camuflava o odor da maresia.
PAIZÃO COISINHA não tinha maturidade para lidar com os efeitos dessas drogas, mas as consumia de forma irresponsável. Entre eles não havia amadurecimento de razões e intenções familiares. Era como se não estivessem nem aí para o futuro da filiação. A trágica exacerbação, melhor dizendo exasperação dele ao contestar verbalmente nela, a disposição de parir um filho atrás do outro, uma boca a mais para alimentar a cada nove meses, numa família já depauperada de recursos, o fazia reclamar, chamando a atenção da barriguda para o fato de que ele não poderia dá conta de mais despesas.
A FAMÍLIA CRESCIA em quantidade à revelia das necessidades que se acumulavam cada dia mais e mais. Eu, sendo o primeiro de dez filhos vivos, buscava compreender os argumentos irracionais dela ao dizer que o Santo Papa não admitia que as mulheres abortassem, ou usassem esquemas artificias para não engravidar. Esse não era um argumento válido. Ela, em meu modo de ver, não tinha religião nem muito menos fé. Exceto na própria alienação. Certamente queria esconder a falta de todos e de si mesma: a falta de feminilidade da qual era biologicamente carente.