Estaca Zero
ESTACA ZERO
Capítulo 1- RESET
Com ou sem pandemia, Mila Cox e Zimi não voltariam à normalidade, pois era ela o problema.
Quando a guerra passou a coexistir com a peste, essa convicção apenas cresceu.
Sem igreja, sem polícia, sem chefes, sem família, sem impostos e sem governantes.
Conheceram-se através de Sara Cox, tia de Mila, que estudava Letras na mesma classe que Zimi.
Mila Cox tinha dezenove anos e Zimi, quarenta e três.
Zimi era magro e tinha o cabelo desleixado e de comprimento médio, e usava roupas que comprava em brechós e bazares quando Cox saía para comprar roupas gastando o mínimo possível.
Esses fatores, associados ao fato de Zimi não ter filhos, não ter perspectivas agradáveis sobre a humanidade e ter aprendido a ser paciente davam a ele um aspecto jovial.
Era como se ele conciliasse a angústia e o sossego de modo que nunca perdesse sua linha de conduta,
Aproveitando os princípios que os uniam ideologicamente, os amigos e parceiros musicais que eram, estavam agora fora da cidade, isolados num sítio perto de Itapecerica, no meio da Mata Atlântica, desde o início da pandemia.
Tinham um Chevete Jeans de 1981, que os levava à cidade quando necessário.
A descrença na humanização da sociedade era a maior motivação para o isolamento e o vírus apenas os impulsionou para realizar mais rapidamente algo que vinham planejando há tempos.
Zími e Mila Cox encaravam, cada um a seu modo. a comodidade do rancho sem nome, próximo a Itapecerica da Serra.
Propriedade da tia de Cox, Sara, e que estava desocupado, e onde o ócio que muitas vezes é feito do isolamento se transformava em músicas gravadas toscamente em fitas k7 para depois serem digitalizadas e então disponibilizadas na web e posteriormente em mídias físicas.
Apesar de lançarem essas gravações em disco nos poucos shows que faziam juntos sob o nome de Crop Circles, um duo que eventualmente contava com mais um músico de apoio em apresentações ao vivo.
Também disponibilizarem suas gravações na internet com certa regularidade, e tinham agora tempo livre e não sofriam qualquer tipo de pressão, já que seu público era constituído basicamente por pessoas que eles conheciam pessoalmente por motivos extramusicais e também novos amigos que faziam por onde tocavam, com as quais mantinham contato na rede, enquanto a mídia tradicional os ignorava por completo, pois não tinham amigos que se apresentavam social ou profissionalmente como jornalistas musicais.
Quando conheciam alguma dessas pessoas, logo já sabiam se eram ou não do ramo, em termos de inteligência, informação e bom gosto.
A diferença geracional entre eles enriquecia o convívio. Nem deus, nem pátria, nem família,
Tinham em comum o fato de serem minoria e terem aversão ao senso comum. Era hora de deixar que a maioria vivesse na cidade como bem entendessem. Tinham em mente que a humanidade é maior que o estado, mas era hora da maioria decidir sobre essa questão.
O mais bizarro é que as pessoas votavam para que decidissem sobre seus destinos, sempre encurralados na escolha pelo que pensavam ser o menos pior.
Zími aprendeu desde cedo na escola que era para sentar e calar a boca. Não o surpreendia que a essa altura do século vinte e um as pessoas da sua idade o decepcionassem com tanta intensidade e em tantos aspectos.
Viveu por um bom tempo as dificuldades impostas aos apreciadores de música pela indústria do entretenimento, que especialmente no Brasil castigava essas pessoas com muita falta de informação e a ausência de inúmeros lançamentos de discos importantes no país.
Mila Cox tinha menos idade e ainda mais rancor.
Nasceu com a indústria musical em agonia. Nunca precisou esperar que suas músicas preferidas tocassem no rádio e comprava discos apenas por fetiche, sabendo o que esperar deles e não apenas baseada no que as pessoas diziam.
Eles não tinham a popularidade como obsessão e nem romantizavam a falta dela. Havia nesse caso o benefício do retrospecto e a história do Rock para mostrar a Cox uma série de justiças e injustiças relativas à popularidade de artistas relevantes.
Fama só parecia atraente acompanhada de dinheiro e dos motivos certos para tê-la. Não havia para eles herança, latifúndio do avô, nem sonegação, lavagem de dinheiro ou exploração brutal do trabalho. E a arte não os remuneraria a ponto de transformar certo princípios.
Havia também o fato de não terem uma música exatamente palatável para os padrões das emissoras de FM e muito menos para o que era apresentado na televisão. Seus seguidores não eram números, e sim pessoas de verdade com gosto musical bastante distinto.
Cox nasceu no século vinte e um e a televisão já não significava nada para ela, enquanto Zími na sua infância nos anos setenta e início dos anos oitenta sonhava com uma programação televisiva decente, especialmente depois de ver pela primeira vez um vídeo cassete e assistir a fitas com programas antigos do Top of the Pops, com uma prima mais velha que era bem à frente das outras pessoas que conhecia.
Quando surgiu a possibilidade de acesso a conteúdo que não fosse imposto pela televisão, começou a recuperar anos de uma defasagem cultural acumulada no período anterior à internet.
Zími dizia que chegou onde chegou, vivo e praguejando contra o sistema, porque tudo que planejou ao longo da vida deu errado, mas por fim encontrou a paz, antes mesmo do que esperava e ainda que de uma forma estranha, com o mundo em chamas e em meio a uma pandemia.
Esperou por décadas que alguma coisa realmente louca acontecesse no planeta para que certos paradigmas que o assombravam desde os anos setenta caíssem por terra.
Mila Cox era uma jovem de dezenove anos, pressionada pela família antes da pandemia para que decidisse sobre seu futuro acadêmico. Sobre isso, ela sabia apenas que essa seria uma trajetória ligada à arte, e já lidava com conselhos que sugeriam que esse seria um caminho de fome e insegurança financeira. O outro caminho era se tornar uma escrava assalariada agradecida pela oportunidade.
Para Zími, vinte e oito anos mais velho que Cox, esse período foi marcado pela falta de perspectiva para o futuro, algo que conheceu bem durante os quarenta e sete anos que já havia vivido antes da pandemia.
Foram décadas de incertezas impostas pelas pessoas que apoiavam o caminho torto que levou o mundo à situação bizarra em que agora se encontra, tempos que o endureceram o bastante para que naquele novo momento pudesse apenas usar seu tempo com entretenimento e alguma produção artística. Com um pouco de paciência estaria morto ou finalmente chegaria a uma condição de vida mais agradável.
Agora, a prosperidade do pomar em seu quintal lavava sua alma dos medos que tinha naquele mundo que não já existia mais. Havia dois poços naquele sítio rico em água, o que diminuía a aflição sobre a iminência da vindoura crise hídrica, que logo causaria desespero em massa nos grandes centros urbanos.
Para eles o temor agora era sobre a guerra pela água, que no período pós pandemia se tornaria a mais nova mazela humana.
Muitos devaneios impostos por pessoas do convívio de ambos e oficializados pela mídia corporativa estavam agora destruídos. Lamentavelmente os alertas ambientais eram tratados como piada pelo senso comum, antes da pandemia.
Mila considerava Zími uma espécie estranha de visionário por saber com décadas de antecedência que aquilo tudo daria numa merda global sem precedentes.
Quando falava sobre futuras consequências desastrosas que a forma como o mundo é conduzido ainda traríam , Zími ouvia em resposta que contar com isso ainda em vida era como esperar que ganhasse na loteria para resolver seus problemas financeiros crônicos. No entanto, seu estilo de vida que fugia das extravagâncias materiais fez com que se adaptasse mais rapidamente à nova realidade do mundo.
A base oprimida da pirâmide social agora estava abandonada por aqueles que os enchiam de coragem para acreditar que valia a pena ser sugado pelo sistema, porque o futuro seria melhor. Até porque essas pessoas agora estavam com medo de um futuro que pensavam estar distante demais para que vivessem para presenciar.
Zími não carregava a mágoa de ter acreditado nisso. Sua fé sempre fora calcada na certeza de que viveria para ver a explosão de merda que viria inevitavelmente, mesmo sem saber que seria inicialmente em forma de vírus.
Quando sua vida escolar se tornou uma fraude no curso ginasial, ouvia com frequência que viraria mendigo. Ainda assim, conseguiu a graduação, um papel enrolado numa gaveta.
A maioria das pessoas que diziam isso morreram bem antes da pandemia e não puderam ver o resultado crônico de suas convicções baseadas em mentiras, corrupção e ignorância. Gente que viveu sem pandemia e sem internet, num mundo em que o opressor oficializava o que poderia ser sabido pela massa, sob o filtro corrupto do interesse dos poucos que mandavam.
Daí o seu desprezo pela mídia corporativa, esta que agora tentava sobreviver atirando para todos os lados, com um passado que lhe tira qualquer credibilidade, e um presente e um futuro sob o advento da internet, algo que tira dessa modalidade a razão de existir.
Capítulo 2- Replay
O que havia em comum entre Zími e Brito era o completo desprezo por Deus, pela pátria e pela família. Algumas convergências ideológicas que não foram suficientes para fizer deles pessoas tão queridas um para o outro.
O resto tinha menos relevância, mas Mila Cox queria saber quem era Brito, que solicitou sua amizade numa rede social, e que tinha Zími como amigo em comum.
Para Zimi, seria preciso contextualizar adequadamente a existência de Brito em sua vida, para que assim, Cox se mantivesse afastada daquele sujeito e de outras pessoas relacionadas.
A primeira lembrança de Zimi relacionada à Brito era sobre a vida sem o uso de máscaras e sob uma ingenuidade que agora parecia patológica.
Brito era amigo de alguns amigos de Zími, e era também seu vizinho de bairro em São Paulo por muitos anos.
Zími começou a descrevê-lo a partir de lembranças que ainda eram claras.
Como a ocasião em que Brito estava furioso e como sempre julgava ter razão. Seus monólogos eram sua válvula de escape. Ele dizia:
_ Se eu pudesse enfatizar o quanto é grande a minha mágoa, certamente ganharia o Nobel de Literatura! Qualquer pessoa que eu não tenha precisado conhecer pessoalmente, viva ou morta, é considerada por mim alguém com classe, Só pelo fato de não ter aprontado nada comigo a ponto de me fazer tomar conhecimento de sua existência. Nada é mais importante pra mim do que privacidade e um certo isolamento. O que vem em primeiro lugar não é a família, nem Deus e nem a maioria das outras coisas que as pessoas insistem em estabelecer como prioritárias. Eu não acredito em nada dessas merdas. Jogue mais água da torneira no feijão da humanidade e você também será Deus. Beber sozinho é coisa de alcoólatra? Eu gosto de beber sozinho, e tenho a plena convicção de que um grupo de bêbados é algo muito mais nocivo. Sua irmã é carente de atenção e foi convencida de que perder para a bebida a atenção de alguém é uma derrota insuportável. Eu estou apenas fazendo um comentário sobre uma situação que você me viu passar, caso contrário eu não tocaria no assunto e não é só porque ela é sua irmã. Eu não tenho irmã, mas é fácil imaginar-se tendo uma. E o Braga? Sei que você não teve culpa, mas eu o conheci através de você. O que eu fiz pra ter como encosto um agitador cultural universitário? Ele trabalha aqui do lado de casa, vive colando lá de surpresa depois do expediente. Em dias de semana às vezes eu deixo o porteiro do meu prédio avisado para que diga ao Braga que eu não estou. Algumas vezes fui pego de surpresa encontrando-o quando eu entrava ou saía do prédio em momentos em que eu já havia esquecido que ele existia. Seus amigos me chamam de burguês, mas morando aqui não se tem qualquer privacidade. É um foco de vulnerabilidade coletiva. A falta de privacidade só favorece gentalha.
Foi o que disse Brito para Galvão, um outro conhecido de Zimi na cidade. (Brito disse isso porque ouviu de Vânia, irmã de Galvão, que quem gosta de beber sozinho é alcoólatra. Isso foi num domingo à tarde em que a garota apareceu de surpresa em seu apartamento quando Brito dormia.
Sobre Vânia, uma belíssima mulata de vinte e seis anos, falaremos um pouco mais adiante e também sobre o que havia por trás dessa trama infeliz e bem brasileira. )
_ O problema mesmo é com a minha irmã. É uma pessoa sem classe e só quem tem irmã sabe o quanto é difícil ter que falar uma coisa dessa. Infelizmente eu vi que ela causou um desgaste gratuito na sua vida, mas você há de convir que isso já é algo superado. Quanto ao Braga, eu não posso fazer nada. Você chegou a minha procura, ele estava lá e não havia como prevenir o encontro de vocês. Eu dou umas duras nele por muito menos do que as razões que você tem para fazer o mesmo. Se eu fosse dar uma de legal com ele, aquele paquito montaria. Se ele surgisse na minha casa eu o mandaria embora tranquilamente. Ele compra minha maconha toda semana, mas quer companhia também, porque é muito carente de atenção. Não é exatamente um mau sujeito, você sabe. Pode se tornar inconveniente se não for alertado e a minha chateação com ele se deve ao fato de eu apenas não ter vontade de tê-lo por perto. Não acho que isso seja crueldade. - respondeu Galvão.
_ É meio atrevido mesmo, mas o que me irrita é o fato dele ser um sambista indie. Duas coisas me irritam de uma maneira insuportável. Uma delas é quando ouço algum velho brasileiro ridículo falar que gostava de rock quando era jovem. Eles nunca dizem o porque de terem desistido, ou a razão que os fizeram mudar o gosto musical. Será que obrigatoriamente eles precisam ouvir bossa nova quando destroçam os outros setores de suas vidas? Será que era só a dificuldade em conseguir informações culturais vindas de outros países? Esses velhos são zumbis, almas mortas em corpos flácidos. Seus sonhos eram equivocados e foram esmagados um a um. A outra coisa que me irrita demais são esses sambistas indies jovens que acham bonito dizer que ouvem o Cartola, mas que na verdade gostam dessa nova geração de sambistas jovens de apartamento, cheios de cuidados com o barulho que pode incomodar os vizinhos em suas tumbas. Gostam de dizer que ouvem tanto Sonic Youth quanto Adoniran Barbosa para parecerem 'ecléticos'. Por essa e por outras, eu não tenho qualquer respeito por isso que chamam de viver em sociedade. Tem gente que sofre mais do que eu do ponto de vista material, mas eu sei que quando tivermos que reiniciar o modo de vida nesse planeta como se reinicia o funcionamento de um computador, todos seremos afetados de alguma forma. - disse Brito.
_Eu também penso nesse tipo de coisa, mas não tenho esperanças de que esse dia chegue logo. Queria muito que acontecesse algo, mas não fico esperando tanto por isso. Seria um otimismo exagerado achar que ainda serei jovem quando esse dia chegar. E pior ainda seria a frustração em cada amanhecer antes desse dia chegar. Seria uma espera muito corrosiva. se é isso que nós temos, vamos de cabeça. Requer culhões, mas é preciso combinar o cabelo com a estrada e olhar pra frente! - disse Galvão.
_ Eu não espero muito da vida. Quanto menos se espera dela, menos se tem a perder .A vida é como uma arara. Pode ser muito bonita, mas pode cagar na sua cabeça bem naquelas horas em que tudo parecia estar dando certo. Eu me sentia melhor quando era ingênuo o bastante pra ver alguma grandeza ou alguma virtude nos outros, ou pelo menos imaginá-la, mesmo que essa grandeza ou essa virtude não existisse. Sinceramente eu acho que sou um benfeitor de uma certa maneira, porque eu nunca apoiei nenhuma loucura que me parecesse ridícula demais pra merecer o meu envolvimento. Hoje em dia gosto do fato de isso ter sido intuitivo, pois me acontece desde os tempos em que tenho as mais remotas lembranças da minha infância, os primeiros tempos na escola, algumas coisas que aconteciam na minha casa que pareciam bizarras mesmo pra um moleque muito pequeno. Minha família é bisonha. Eu já tenho trinta e oito anos e me lembro de que quando meu pai tinha 48 era a antítese de tudo o que eu podia esperar da vida. Nessa época eu tinha 15. Eu sabia que não podia convencê-lo a mudar e sabia que a qualquer custo eu seria outro tipo de pessoa. E ele tinha 10 anos a mais do que eu tenho hoje... Infelizmente me ensinavam que se as contas da casa fossem pagas em dia você poderia fazer o que quisesse. Essa visão distorcida da vida sempre me abalou profundamente. É claro que eu fazia ao contrário tudo o que me recomendavam, tanto em casa como na escola. Uma vez num show do Quiot Riot quando eu era adolescente, vi um professor jovem da minha época de segundo grau com uma camiseta branca em que letras pretas de forma diziam 'viver é um problema' e essa é uma das poucas lembranças relevantes que tenho da época da escola. As outras são relativas ao Rock também. E à falácia de que alguém na escola poderia oferecer drogas. Eu só via drogas na escola através de alunos mais velhos que jamais dividiriam comigo. Meus pais nunca foram discretos como poderiam e deveriam ser. Teríamos uma qualidade de vida muito melhor se eles se preservassem. Para eles a única obrigação dos pais é pagar as contas de casa e mandar os filhos pra escola. Gente assim deveria ser capada antes que pudesse ter filhos. Se eu tivesse seguido um por cento do que eles recomendavam, teria uma vida ainda mais difícil. Eu sei que você acha que a minha vida é sossegada, mas se um dia eu fosse escrever um livro sobre família, todos que lessem iam pensar que eu estou forçando. Sou totalmente descrente nos valores familiares desde criança, porque sabia desde então que se aquilo que era pregado por eles era o certo, eu teria que ao menos não me envolver. E se tivesse alguma força, teria que me rebelar. - disse Brito.
_ Se você fosse um pobre fodido com a família cheia de alcoólatras e nóias, aí talvez você tivesse mais noção de onde as coisas podem chegar. Aprender alguma coisa sobre a vida pode significar que está tarde demais pra lidar com a situação e quando se é pobre de verdade a coisa fica triste. A minha família é pobre, cheia de primos e tios vagabundos, bêbados e eternamente desempregados. Tenho também dois primos que mergulharam de cabeça no crack. Um já morreu de tanto fumar pedra e o outro está devastando o que sobrou da família. Quando eu estava começando a ficar bastante preocupado com o que viria depois, aconteceu aquela desgraça com a minha mãe. Eu não queria ficar te dizendo que você é um playboy que vive com conforto e tempo de sobra pra reclamar, mas convenhamos, meu caro... - disse Galvão.
A mãe de Galvão foi morta ao ser atropelada no calçadão da Rua XV de Novembro, no centro de São Paulo, por uma daquelas bicicletas descontroladas que carregam galões de água. O sujeito perdeu o freio quase na esquina com a Rua Direita, de onde a mãe de Galvão apareceu, às sete e meia da manhã, quando o caos já estava instalado no centro de São Paulo, no início de mais um dia na cidade. O pai de Galvão havia morrido 4 meses antes, de complicações da diabetes, que foi agravada pelo alcoolismo.
Sérgio Galvão era aos vinte e três anos um jovem e divertido mulato que tomava conta dos carros estacionados numa ponte localizada na região da Avenida Paulista, mais exatamente atrás do Masp. Essa ponte naturalmente está lá até hoje e passa por cima da Avenida Nove de Julho. Quem a atravessava seguindo o fluxo dos carros tinha o Masp à esquerda e acima, e a Avenida Nove de Julho à direita e abaixo.
Os carros estacionados ali são geralmente de pessoas que visitam os pacientes do Hospital Nove de Julho ou que trabalhavam na região. Dono de um sorriso matreiro e uma ginga compassada, Galvão se deslocava tranquilamente por entre os carros que paravam para estacionar sobre a ponte de segunda à sexta, quando cumprimentava cordial e alegremente cada um dos condutores que parassem ali.
Era figura fácil também nos bares da Bela Vista quando escurecia. Vivia com a irmã Vânia numa quitinete na Praça 14 Bis. Em alguns aspectos Galvão era invejado por José Ronaldo Brito, de 38 anos, que para alguns tinha tudo para ser feliz mas vivia insatisfeito.
Brito tinha uma bússola moral própria. Era um tipo de playboy da Bela Vista, alguns traços de descendência árabe misturada à descendência de diferentes povos europeus. Tinha um metro e setenta e sete de altura, pouca tendência para aumentar seus setenta e cinco quilos, cabelo castanho escuro, grosso e sem sinais de calvície.
A barba cerrada era feita duas vezes por semana, de modo que estava quase sempre com a barba por fazer. Seus pais viviam de renda. Não eram exatamente ricos, mas a família tinha dois bons apartamentos no mesmo prédio, na Alameda Rio Claro, a menos de duzentos metros da Avenida Paulista.
O pai de Brito havia herdado de um tio um grande terreno em Vinhedo e o vendeu para que ali fosse construído um condomínio, e com esse dinheiro conseguiu comprar mais um apartamento no prédio onde viviam e deixar o restante do dinheiro rendendo.
Brito era um solitário convicto e procurava não ser extravagante. Dirigia um Corsa vermelho de 2005, sem opcionais. Cada andar desse prédio em que viviam em São Paulo tinha dois apartamentos, sendo que um deles era frontal e virado para a Alameda Rio Claro e o outro virado para a Rua Pamplona.
Os dois apartamentos da família de Brito eram no último andar, sendo o de Brito o apartamento frontal e o de seus pais o apartamento virado para os fundos. Na prática a coisa funcionava como se Brito e os pais vivessem na mesma casa, mas com Brito ocupando uma ala mais espaçosa.
Naquele período a relação familiares entre os Britos era tranquila, mas muitos atritos tinham ocorrido nos anos anteriores, especialmente quando a família ocupava somente um dos apartamentos, antes da venda do terreno no interior. "Aqui na Bela Vista só tem gentalha. Essa gente não tem classe nenhuma". - era o que Brito nunca deixava de repetir a cada vez que entrava ou saía de seu prédio, estivesse ele sozinho ou acompanhado. Outra frase frequentemente repetida por Brito quando as coisas não aconteciam do jeito que ele achava conveniente era 'Esse planeta está todo cagado!'.
Seu pai havia exercido um mandato de síndico, fato que gerou ásperos atritos entre ambos naquele período e nos primeiros meses da gestão do síndico que assumiu posteriormente, pois Brito alegava que a privacidade da família fora prejudicada para sempre desde então. Queixava-se de sua privacidade individual, alegando que seu apartamento era nada mais do que a extensão do apartamento de seus pais.
Para ele, era na verdade como se fosse um bom quarto na mesma casa dos pais, e não uma unidade domiciliar independente. Queixava-se do fato de os outros moradores cobrarem dele sobre atitudes e gastos efetuados por seu pai no período em que este foi síndico.
Brito comprava uma maconha de boa qualidade fornecida por Galvão e passava suas tardes de chinelo em sua sacada, olhando de cima a antiga propriedade da família Matarazzo, localizada à frente de seu prédio, onde já funcionou um hospital e onde vez ou outra se agrupam mendigos da Bela Vista, até que fossem obrigados a dispersar. Um pouco mais adiante via-se a Avenida 9 de Julho. Brito ficava olhando, ouvindo música e fumando maconha.
Brito e Galvão eram amigos, mas como é de se supor, havia entre eles uma barreira invisível e quase intransponível que tinha como base a obsessão de Brito por isolamento e privacidade.
Galvão sabia muito mais sobre Brito do que o contrário. Conheceram-se num jogo do Juventus no estádio da Rua Javari, na Mooca em 2008. Tinham em comum a paixão pelo futebol das antigas e não suportavam a modernização do esporte como ela estava acontecendo. Toda a magia do semiamadorismo estava acabada para sempre. Gostavam de ver o jogo do alambrado, cuspindo nos bandeirinhas.
Nos bons tempos, os jogos do Juventus eram notórios pela presença de um público pequeno, antes que os hipsters adotassem o clube, mesmo tendo predileção por algum grande clube e fizessem com que as camisetas do Juventos fossem muito mais numerosas na cidade do que as da Portuguesa, por exemplo.
Antes de um jogo, na fila da bilheteria começaram a conversar quando Galvão soube conhecer aquele sujeito da Bela Vista. Parecia suficientemente amigável e então começaram a conversar e descobriram que eram mesmo vizinhos.
A vida material de Brito era tão cômoda para os padrões normais da sociedade brasileira que até mesmo os problemas mais simples do cotidiano o perturbavam de tal modo que ele pensava haver uma conspiração contra ele, principalmente por parte de seus pais. O local onde moravam era caracterizado pela incessante valorização imobiliária, mas por outro lado havia ali uma altíssima densidade demográfica.
Brito exercitava-se fazendo barras e flexões dentro do apartamento, e considerava um sacrifício sair dali, fosse qual fosse a razão para essa necessidade. Geralmente era para buscar maconha com Galvão, e descia de chinelo, olhava as feições desalmadas das pessoas que andavam na região da Avenida Paulista, e isso o entristecia profundamente.
Brito vivia imerso naquele sentimento contemporâneo de que o mundo acabaria logo e que todos à sua volta estavam fazendo um papel ridículo. Se naquele período ele fizesse qualquer menção à vindoura pandemia de Covid-19 seria ridicularizado.
Ele sentia pena do povo e sentia certa culpa por ter alguma tranquilidade na vida. Até porque ele próprio temperava essa tranquilidade com algum drama que ele imprimia à sua vida, estando sempre insatisfeito.
Apreciava Peter Hammill por seu tom paranoico e esquizofrênico.
Vivia enfatizando que sua tranquilidade se resumia ao campo material. E não chegava nem perto de ser rico, o que o limitava em algumas empreitadas, especialmente na área artística. Apenas não precisava sair para trabalhar. Precisava não ir à falência, precisava cuidar do patrimônio, e isso ele fazia. Ali onde morava ele se queixava do excesso de gente.
Se estivesse numa fazenda, reclamaria de tédio e das pessoas que habitassem o local. Às vezes ao voltar para casa depois de comprar sua maconha, punha-se a pensar como seria a vida de Galvão quando ele não estava nas redondezas.
Brito pensava nisso porque sentia que sua vida era um livro aberto para as pessoas da vizinhança, ainda que não achasse que isso fosse positivo e na tentativa de preservar como segredo alguns detalhes de sua vida, ele se afastava da realidade dessas pessoas fisicamente próximas.
Para ele isso era muito bom na maior parte do tempo. E se o porteiro de seu prédio morasse num barraco não rebocado numa área ameaçada por deslizamentos? E todas as outras pessoas com as vidas destroçadas pela pobreza, pela ignorância e pela má distribuição, que sentiam cada segundo passar enquanto Brito ouvia rock alternativo e vadiava? Como era possível fazer menção a uma pobreza chamada de digna? Era um período estranho.
Independente disso tudo, sua vida também era quase insuportável, embora ele não quisesse outra. Pensar que as propagandas de margaria ainda faziam as pessoas acreditaram naquele enredo era algo surreal .
Brito pensava e pensava e pensava e concluía todos os dias que aprender alguma coisa com a vida significa que é tarde demais para lidar com a nova informação. E fosse como fosse, ao longo da semana lá estava Galvão, sempre sorrindo, guardando carros, vendendo sua maconha cheirosa e caminhando sobre a ponte, com fones nos ouvidos, ouvindo Sly and the Family Stone, ou Funkadelic, ou Parliament, e sempre caminhava gingando no compasso da música.
_ Galvão, você sabia que o Sly Stone está morando no carro dele? Perdeu a fortuna, a casa, os direitos autorais sobre as músicas e está com quase setenta anos... - disse Brito quando foi buscar fumo com Galvão.
_ Pois é... eu também sou preto e sei o que nós passamos. Ele é de outra geração, é de outro país, é muito mais famoso que eu e ainda assim sofremos de alguma forma com o maldito preconceito. - disse Galvão.
_ Você tem sofrido muito preconceito? - perguntou Brito. _ Não é toda hora, porque hoje tento não me expor mais do que o necessário, mas saí da escola porque fui avacalhado por uma professora racista. Eu não era muito estudioso e não conseguia ficar muito tempo parado num banco escolar e numa prova eu estava com pressa de ir jogar bola e queria terminar logo. Perguntavam quem havia descoberto o avião e eu respondi que tinha sido Carlos Drummond de Andrade ao invés de responder Santos Dumont. Na semana seguinte a professora disse na frente de todos, a maioria brancos, que meu cérebro provavelmente estava tão chamuscado quanto a minha pele. Nem se falava em criminalização de racismo.- disse Galvão.
_ Não há um só dia em que eu não sinta vergonha da minha condição de humano. Se eu fosse a um médico possivelmente eu seria diagnosticado como um depressivo. Mas não me sinto exatamente assim. Assumo minha bipolaridade; quando as coisas dão certo, fico de bom humor, e quando dá tudo errado, fico deprimido. Os homens grandiosos da história também estiveram sujeitos à condição humana. Muitas vezes bebiam, fumavam, se drogavam, mentiam, eram sexistas, mas souberam intervir de maneira coerente nos contextos de suas épocas. O mundo sempre foi uma merda. Isso não é uma novidade dos nossos tempos. - disse Brito.
Capítulo 3 - Ah, é o Braga!
Brito esperava pela entrega de uma pizza à noite em seu apartamento pouco antes das vinte e treês horas de um domingo de Julho de 2011. Até aquele momento, embora soubesse que no dia seguinte precisaria comprar mais maconha, não pensava que a quantidade ainda disponível se resumia apenas ao baseado que acompanharia as cervejas até que a pizza chegasse.
Achava que teria o baseado da manhã seguinte. Isso lhe daria algum conforto.
Demoraria mais para sair de casa. Já estava com mais sono do que fome, mas sabia que o cheiro do queijo derretido da pizza abriria seu apetite. Dito e feito. Dormiu sem escovar os dentes, no pequeno sofá de sua sala, roncando mais que uma motosserra. Na manhã seguinte, havia um pedaço de pizza de calabresa e outro de aliche
As latas de cerveja vazias haviam preenchido o pequeno cesto de lixo de sua sala e seria preciso esvaziá-la.
A maconha tinha acabado, e embora tivesse um café da manhã nobre para saborear, com muito polenguinho, torradas, frutas e café, além dos pedaços de pizza que sobraram, ele pensava apenas que estava com preguiça de sair e procurar Galvão na ponte para comprar fumo.
Eram nove horas e trinta e quatro minutos da segunda-feira de acordo com o relógio do microondas, e o pandemônio da região da Avenida Paulista já estava instalado há horas.
Mesmo morando no décimo sexto andar podia ouvir durante o dia o barulho intenso das ruas que circundavam seu prédio.
Só não dormia até o meio dia por causa do barulho, inclusive de helicópteros. Quando estivesse acostumado a dormir com aquele barulho, estaria vivendo em parte como um mendigo. Faltaria apenas aprender a dormir sob o sol, todo mijado e cagado e com fome. Nem mesmo a visão desse inferno para os outros era capaz de fazer com que Brito se sentisse privilegiado.
Ele teria condições de se mudar de São Paulo se isso lhe parecesse conveniente. Alguns fatores típicos de grandes cidades o faziam sofrer, mas gostava de olhar de sua janela e ver as pessoas que vinham de bairros distantes para trabalhar na Paulista. Muitas delas realmente sofridas, machucadas, se arrastando pelo concreto enquanto seus sonhos vão sendo diariamente esmagados como percevejos, mas ainda assim continuavam a dormir pouco e a trabalhar muito. Eram retardatários moribundos na corrida por dignidade.
Com todo esse sofrimento, essas pessoas colhiam apenas decepção e amargura, invariavelmente. A rotina era o modo com que enfrentavam o caos. Naquela manhã, assim que pisou em sua sacada para olhar para a rua, o sol começou a castigar a sua vista, a cabeça e os ombros.
Voltou para dentro do apartamento e irritou-se com a falta de maconha e com a consequente necessidade de interromper seu confortável isolamento doméstico para ir buscar mais. Tomou seu café da manhã, que naquele dia foi o que sobrou da pizza da noite anterior, uma pêra e uma caneca grande de café preto, então fumou um cigarro e foi procurar Galvão na ponte para comprar mais maconha.
Para sair, Brito vestiu uma bermuda azul escura, uma camiseta branca dos Pixies toda descascada pelo uso e pelas lavagens e que teve suas mangas cortadas e virou uma regata, exatamente a mesma roupa com a qual dormira, e calçava chinelos de borracha. A viagem de elevador do décimo sexto andar até o térreo pareceu demorada demais, principalmente pelo fato de o elevador ter parado no décimo segundo e no sétimo andar para que outros moradores entrassem.
No hall de entrada sentiu como sempre o pensamento do porteiro com relação a ele, um pensamento que julgava Zé Ronaldo como um vagabundo mimado. Já na calçada do lado direito da ponte, por onde Brito descia, um cachorro vinha trotando no sentido contrário. mais adiante, algo em torno de cinquenta metros, na calçada do lado oposto, Galvão estava sentado num caixote de madeira sob a sombra que um hotel vizinho lhe proporcionava, conversando com um sujeito.
O humor de Brito melhorou um pouco com a breve saudação de Galvão que quase imediatamente lhe apresentou o sujeito com quem conversava. 'Brito, esse é o Braga. Braga, esse é o Brito' - disse Galvão.
César Braga, um sujeito de cerca de um metro e setenta de altura, cabelo raspado com máquina um , braços aparentemente curtos em relação ao tronco, que estava oculto por um blazer de lã que não combinava com os 28 graus que ferviam os miolos de Brito.
Braga não precisou de mais do que um segundo para comentar a respeito da camiseta de Brito, dizendo que gostava de Pixies e que vivia imerso em projetos musicais, teatrais, políticos e tudo mais. Tão rápida quanto a tentativa de interação por parte de Braga foi a repulsa que Brito sentiu do sujeito.
Alguma coisa no aspecto geral de Braga fazia Brito pensar que alguma coisa tinha dado muito errado logo no começo da vida do cara, e isso se somava ao fato de Braga parecer ter sido levemente molestado naquela manhã.
Molestado por mais um amanhecer. Molestado pelo sopro que a vida dava diariamente naquela vaga fagulha de esperança que ainda movia as massas. Era um jovem pretensamente engajado que não iria se rebelar contra as bizarrices da vida. Braga era uma peça ainda maléfica nessa grande máquina social. Uma máquina descontrolada que trabalhava sem paixão. Brito precisava se afastar disso porque sabia o que viria a seguir.
_ O Braga trabalha na Fiesp... - disse Galvão.
_ Olha só!! - disse Brito, que imediatamente de assunto emendando: 'Então Galvão, preciso daquela paranga de 20...'
_ Vou logo ali pegar, Britinho... - disse Galvão, deslocando-se vinte metros e removendo um tijolo que tampava um buraco na mureta que havia entre as calçadas da ponte e a faixa de asfalto entre elas.
Até que Galvão voltasse, segundos depois, Braga teve tempo de perguntar o que Brito fazia e onde morava e embora Brito soubesse que esse seria um limiar perigoso para ser transposto, foi logo dizendo: 'Moro logo ali na Rio Claro e sou escritor.'
Brito detestava quando perguntavam o que ele fazia. Braga reagiu à resposta de Brito com entusiasmo, comentando sobre sua aptidão jornalística e literária. "Eu tenho um blog!!! Hoje mesmo postei uma que escrevi sobre a banda de uns amigos meus!"
Brito já sabia disso antes que Braga falasse. Brito odiava blogueiros. Odiava agitadores culturais, especialmente os mais jovens e 'ecléticos'. Brito realmente tinha sonhado ser um escritor de verdade, mas desistiu definitivamente por causa da ascensão dos blogueiros.
As comodidades materiais de Brito o faziam ambicionar menos por sucesso de público em suas empreitadas pessoais. Apenas não podia perder seu apartamento por causa de excesso. Esperava não sofrer acidentes que mutilassem seu corpo. Todos correm esses tipos de risco, mesmo os cautelosos.
E fora isso, Brito não tinha muito a perder. Um eventual sucesso por conta de um livro despretensioso, por exemplo, poderia lhe trazer mais chateações do que o consequente enriquecimento financeiro poderia pagar. Falaria do que? De sua vida? Assim seria chamado de burguês por universitários hippies de chinelo e barba. Era um recluso com o bônus da modéstia.
Já Braga ao falar punha ênfase em tudo que fazia. Carente de uma escuta empática, era um maldito agitador cultural. Conhecer Braga foi o único dano que maconha lhe causou. A culpa não era da maconha. A culpa era do Braga. E Braga não tinha o ônus da modéstia.
Estava tudo ali: a pretensão de ecletismo, o gosto musical equivocado, o frenesi juvenil mal direcionado. Um jovem panfletário burro e inconveniente.
. A área sombreada da ponte onde Galvão, Brito e Braga estavam reunidos naquele momento era pequena e ia diminuindo gradativamente com a mudança da posição do sol, e não havia qualquer outra coisa passando pelos pensamentos de Brito que não fosse voltar a seu apartamento o mais rápido possível.
Perto deles havia um velho morador de rua da Bela Vista jogado sem qualquer sinal de respiração e que àquela altura já tinha sido abandonado pela sombra e começava a fritar sob o sol. Os dois botões de baixo de sua camisa estavam faltando e era possível ver sua barriga peluda e suja.
A missão estava cumprida e Brito poderia sentir um sabor especial quando chegasse em casa. Esse sabor especial se devia ao fato de ele ter podido por alguns instantes sentir o clima descontrolado das ruas que contornavam seu prédio. Isso seria mais especial do que simplesmente ter tudo ao seu alcance em sua casa logo que acordasse.
O prazer de seu ócio seria realçado depois de ver tanta gente de longe que vinha trabalhar na região da Avenida Paulista. Talvez aproveitasse menos seu conforto se não tivesse que sair nem ao menos para comprar sua maconha.
"Brito, coloque um baseado do seu pra gente fumar até chegar ali na frente, no final da ponte. Eu guardei o meu na mochila e vai ser osso achá-lo agora! A seda tá na mão!" - disse Braga logo depois de se despedirem de Galvão.
Como era de se esperar, Brito não escapou da companhia de Braga até que chegassem à esquina da Alameda Rio Claro com a Rua São Carlos do Pinhal, onde Brito e Braga então rumariam cada um para um lado, o primeiro andando poucos metros para a esquerda até seu prédio na Rio Claro e o segundo no sentido contrário, em direção à Avenida Paulista, rumo ao prédio da Fiesp. Até ali andaram por cerca de duzentos metros juntos, tendo atravessado quase toda a extensão da ponte e mais a quadra lateral do antigo Hospital Matarazzo.
Foi o suficiente para que Braga descobrisse o endereço de Brito, pois este apontou para seu prédio quando chegaram à tal esquina dizendo de forma seca: "Moro ali! Até mais!" A distância entre o prédio da Fiesp, onde Braga trabalhava, e o prédio onde Brito morava podia ser percorrida em menos de cinco minutos de caminhada.
O consumo de maconha por Brito era considerado moderado por ele e essa análise era feita com a comparação do quanto era fumado semanalmente por ele com os padrões normais dos maconheiros que ele conhecia. Era apenas algo que lhe trazia algum alívio para as tensões de seu microcosmos.
Brito não tinha anseios de sucesso social, ao contrário de Braga, que tinha um grupo mambembe que misturava música improvisada com encenação teatral também improvisada. Infelizmente esse tipo de modalidade estava em voga naqueles dias de 2011 e p continuaria por muito tempo até que a pandemia varreu essa tendência.
Eram tempos em que a ânsia juvenil por divulgar qualquer manifestação 'artística' via internet era mais forte do que a vontade ou a capacidade de criar algo que pudesse realmente ser chamado de arte. Havia a possibilidade real de se ter contato com o underground propriamente dito, talvez como nunca antes.
O 'faça você mesmo' também nunca tinha sido tão mal interpretado e executado por gente que não era do ramo como naqueles tempos. Todo mundo era artista e geralmente os trabalhos apresentados eram simplesmente o jeito de ser no 'artista' em questão.
Brito em muitas ocasiões assistiu a intervenções feitas por 'eus artísticos' de jovens que se julgavam talentosos e verdadeiros representantes da tal cena alternativa das artes, mas que ao mesmo tempo sonhavam com o reconhecimento no mainstream.
Julgavam-se incompreendidos e injustiçados por não conseguirem viver só de sua 'arte'. Naquele primeiro encontro, Braga não teve muito tempo para falar mais sobre esse seu projeto artístico, muito mais por ter que voltar ao trabalho na Fiesp do que por não ter tido vontade de ir à casa de Brito conhecer melhor esse potencial novo amigo.
Braga normalmente entrava às dez horas no trabalho e naquele dia estava atrasado em 40 minutos, mas mesmo assim preferiu ir até Galvão buscar sua maconha pela manhã do que esperar até o fim do expediente e correr o risco de não encontrá-lo na ponte quando saísse do trabalho.
Do momento em que se despediu de Braga na esquina próxima a seu prédio até o começo da noite, o dia de Brito tinha sido padrão.
Fechara um grande baseado ao entrar no apartamento, fumara-o até um pouco mais da metade, ouviu o 'Closer To Home' do Grand Funk Railroad ( Brito colecionava discos de vinil desde a mais tenra infância e esse disco e essa banda em especial nunca deixavam de ser incríveis ), fez flexões e barras na sala de seu apartamento, atendeu ao chamado de sua mãe para que fosse almoçar no apartamento dela quando já eram quase três horas da tarde, voltou para seu apartamento, preparou uma grande caneca de café forte e sem açúcar, fumou a outra metade de baseado, e adormeceu para ser acordado pelo interfone às dezoito horas e vinte e um minutos. Era o horário que indicava o relógio do microondas.
O porteiro anunciou que Braga estava lá embaixo. Prontamente Brito pediu que o porteiro dissesse que não havia ninguém em casa.
Brito não havia entrado em detalhes sobre sua família, nem sobre o fato de dispor de um apartamento só para ele, de modo que Braga pode perfeitamente ter pensado que uma outra pessoa atendeu o interfone para dizer que Brito não estava. E então Brito já tinha esquecido de Braga. Achou que nunca mais o veria. Não chegou nem ao menos a alimentar a irritação que sentiu ao conhecê-lo.
Brito pensava ter sido somente uma implicância momentânea. Modesto que era, ainda pensou em seu subconsciente que Braga jamais lembraria dele, a menos que se encontrassem de novo. O fato é que no momento em que atendeu o interfone Brito demorou alguns segundos para associar o nome de Braga à sua pessoa e quando se lembrou de quem era, sentiu uma certa repulsa pelo sujeito.
Aos trinta e oito anos, Brito era para seus poucos amigos de verdade uma mistura de jovem e velho, algo típico de sua geração e de sua época. Bastava não estar estragado pelos excessos da tenra juventude e ao mesmo tempo ter bom gosto musical para ficar como ele. Também alternava ranhetice e humor ácido.
Brito ainda não lidava tão bem com o fato de sua intuição funcionar incrivelmente quando o assunto era se identificar ou não com uma pessoa assim que a conhecia. Eram raras as vezes que sua implicância inicial não se confirmava nos encontros seguintes com a pessoa em questão.
Quando dispensou Braga através do porteiro, Brito lembrou que sua vida era realmente sossegada, porque há muito tempo não sofria com uma visita surpresa. Era basicamente um sujeito solitário e avesso a extravagâncias sociais.
Definitivamente não sofria de carência afetiva, nem carência de atenção por parte das poucas pessoas que realmente o cercavam. Seu apartamento era de frente para a rua e da sacada de seu apartamento no décimo sexto andar pôde ver Braga caminhando ainda dentro do condomínio em direção ao portão da rua e dali em direção à Paulista.
A temperatura era baixa, quase fazia frio A cena lhe pareceu patética, porque Brito não compreendia bem o que poderia levar um cara jovem como Braga a sair do trabalho e ir visitar um cara mais velho e que ele não conhecia, ao invés de ir fazer o que quer que fosse. Tomar cerveja. Ir para casa. Fazer QUALQUER OUTRA COISA que não fosse visitá-lo.
Parecia que as pessoas tinham tanto medo de se verem solitárias que jogavam fora o amor próprio com muita facilidade. Isso era o resultado crônico de uma busca completamente equivocada pelos valores relativos da felicidade e do sucesso.
A falta de momentos de introspecção agravava dia após dia a condição infeliz desse tipo de gente. Brito não tinha um emprego. Não precisava de um, pelo menos no que dizia respeito à parte financeira.
Ainda assim tinha muito pouco tempo para fazer visitas para quem quer que fosse. Brito não tinha emprego mas tinha trabalho. Havia sido editor da revista Porrite, um tipo de fanzine que tratava de música alternativa e do universo masculino.
Mantinha esse projeto junto com um colega do tempo da faculdade. O sujeito tinha uma gráfica e colaborava com a infraestrutura de impressão, enquanto brito era o responsável pelo conteúdo. A revista foi importante para que Brito descobrisse que não gostava de jornalismo, especialmente quando o colega sugeriu que fizessem uma versão para a internet. Aí então Brito resolveu mandar tudo ás favas.
Com o fim da revista e a ascensão dos blogueiros que Brito tanto odiava, ele decidiu ocupar seu tempo como o faria um cara mediano, nem gênio, nem burro. Ocultando seus focos de vulnerabilidade causado pela companhia das pessoas de sua idade, que pareciam aposentadas para as atividades mais vitais, passou a se sentir mais forte.
Não gostava nem de pensar em como seria a vida de um gerente de banco ou um cirurgião, por exemplo. Seus vizinhos tinham esse tipo de emprego, viviam vidas metódicas e higiênicas.
Brito era diferente. Se precisasse de uma atividade remunerada teria uma livraria ou uma loja de discos. Pelo menos era isso o que passava por sua cabeça quando pensava no assunto, e geralmente pensava no assunto à contragosto quando algum parente comentava sobre ele não ter emprego.
Era uma pessoa reservada e via essa virtude em poucas pessoas. Sua vizinhança parecia paranóica demais para preservar sanidade suficiente e viver sem alarde. Naturalmente Brito tinha um grupo de amigos que encontrava com certa regularidade, divertia-se com eles. Tinha aventuras e desventuras com mulheres que conhecia através de amigos.
As mais jovens eram sempre muito podadas pela superproteção de suas famílias e as mais velhas queriam estabelecer um tipo de compromisso que Brito sabia que não valia a pena. Ele prezava muito por sua privacidade e isolamento. Não queria fazer mais amigos e não queria fazer inimigos.
Pagava por serviços prestados e não por relações pessoais anexas a esses serviços. Vivia numa área cuja densidade demográfica era muito elevada, e isso fazia com que Brito demorasse cada vez mais a se sentir realmente só.
Mesmo quando chegava a esse ponto, bastava pensar na presença de gente como Braga para que a tristeza da solidão se convertesse em alívio por estar só.
Não gostava de mandar ninguém embora para que não parecesse deselegante. Sendo assim, as visitas inesperadas o desestabilizavam, principalmente quando eram feitas por desconhecidos ou semidesconhecidos. Braga trabalhava muito perto dali e a intuição de Brito dizia que aquele garoto não desistiria facilmente de fazer novas amizades.
Brito queria que sua reputação social se limitasse ao que pudesse fazer de bom, e por isso podava seus excessos comportamentais em público. Por exemplo: se lançasse um bom livro quando tivesse cinquenta anos e ficasse eternizado por isso, ótimo. Não precisava imprimir uma imagem de chato antissocial junto da imagem de bom escritor. Sua reputação social permaneceria intacta.
Braga não parecia ser exatamente um mau sujeito. Suas intenções não eram das piores; eram apenas equivocadas. Uma caricatura de bom mocismo.
Era um pouco abusado na busca por intimidade e com um tipo de entusiasmo pela sociabilidade que Brito já tinha perdido havia anos, aprendendo a aproveitar a liberdade que a falta de comprometimento com gente inútil podia proporcionar.
Já Braga visivelmente ansiava por algum sucesso social. Era incompatível com Brito e não se dava conta disso. Pensava ser maduro em comparação às outras pessoas de sua idade e parecia não se cansar de tentar provar isso a quem estivesse por perto. Era do tipo que usava e abusava das redes sociais da internet para se manter onipresente em eventos e em grupos de pessoas em que ainda não havia se infiltrado.
A parte mais desagradável da situação para Brito era o fato de que caso não falasse com clareza para Braga sobre a incompatibilidade entre eles, teria que aguentar o sujeito várias vezes por semana visitando-o e tentando ser prestativo, e o problema de Brito era que ele não gostava de falar, principalmente sobre coisas que poderiam magoar as pessoas. No dia seguinte ao primeiro encontro entre eles, uma terça-feira, Brito já tinha retomado sua tranquila rotina e esqueceu de Braga e de sua visita no dia anterior.
Até a sexta-feira Brito havia gasto seu tempo com filmes na TV a cabo, futebol europeu, flexões e barras, a leitura de uma edição sebenta de 'Viagem ao Oriente' do Hermann Hesse ( a quem pensava ter uma dívida que antecediam a sexta-feira passaram rápida e agradavelmente. Por causa de seu estilo de vida calcado em relativo conforto material, as sextas-feiras não eram tão especiais para Brito como eram no tempo em que ele era um estudante do segundo grau. Não eram também tão especiais como eram para a maioria das pessoas descontroladas com quem ele tinha que conviver em qualquer setor da vida.
Ele não as aguardava com tanta ansiedade, a não ser pelo fato de que reservava naquela época os fins de semana para o consumo de álcool, pelo qual tinha uma paixão muito intensa desde a adolescência, mas que a partir dos trinta e cinco anos começou a lhe pesar significativamente no organismo.
A maconha lhe ajudava na abstinência do álcool ao longo dos dias da semana. Bebia duas ou três vezes por semana, geralmente de sexta à domingo. Brito era fã de uísque e vivia se indispondo com pessoas que falavam muito sobre uísque mas nunca bebiam. Esses geralmente tomavam só cerveja e isso irritava Brito.
Na sexta-feira, dia de uísque, Brito saiu para comprá-lo e como queria comer azeitonas, aproveitou para buscá-las. Sem qualquer preocupação que não fosse evitar o contato com os vizinhos ao sair do prédio,
Brito encontrou Braga na Paulista quando ia para um mercado na Rua Pamplona. Braga estava saindo para seu almoço. Numa fração de segundo Brito teve tempo de tentar fingir que não o viu, sabendo que já tinha sido visto e ao mesmo tempo se deu conta de sua incapacidade em lidar com surpresas.
_ Ei, Brito!!! Brito!!! E aí?? Já almoçou? - perguntou Braga, dirigindo-se a ele em meio às muitas pessoas que atravessavam pela faixa de pedestres da Paulista.
_ Ei, Braga... Ainda não almocei não, estou ocupado com outra coisa. - disse Brito.
_ Onde você está indo? - perguntou Braga.
_ Vou ao supermercado, ali na Pamplona. - disse Brito, pensando que Braga então retomaria seu trajeto original, provavelmente rumo a algum restaurante localizado na direção contrária. Isso não aconteceu.
Braga parecia ter se animado com o inesperado encontro com o recluso Brito, que havia dado ordens aos porteiros de seu prédio para que no caso de Braga aparecer procurando-o, dissessem sempre que ele não estava. Brito não sabia até então, mas Braga havia procurado-o algumas vezes depois da ocasião descrita alguns parágrafos acima. Sendo assim, Braga estava eufórico por encontrar ao acaso o misterioso Brito.
_ Ah, então eu vou com você! Estou indo almoçar, aproveito e compro algo pra comer no mercado mesmo, assim talvez eu gaste menos e aproveitamos pra conversar nesse meio tempo... Quanto tempo, hein!! Passei na sua casa algumas vezes mas você estava sempre fora.
Seguiram então ao mercado. Brito estava tomado por um tipo de tristeza que só as surpresas inconvenientes podem trazer. Não sentia raiva. Só uma certa tristeza por não ter podido estar sozinho naquele momento.
Quando entraram no mercado, que ficava numa área muito movimentada da Rua Pamplona naquele horário por causa do grande número de restaurantes, combinaram de se encontrarem na fila do caixa e partiram para buscar o que queriam. Quando se encontraram, Braga trazia dois sanduíches naturais e uma caixinha de suco de maçã. Brito trazia um Red Label e um vidro de azeitonas, sabendo que seria questionado sobre uma eventual festividade. _ Porra, Brito... Uísque? Qual vai ser o rolê hoje? - perguntou Braga.
_ Ah, não é nada de especial. Vou visitar meu pai e vamos tomar umas goladas... - respondeu Brito.
Ele não sabia que Braga já havia ouvido do porteiro do prédio que o pai de Brito era vizinho de andar de Britão.
Braga logo concluiu que a festinha seria ali mesmo na Alameda Rio Claro e passou a tarde de sexta-feira esperando que as horas passassem rápido. Definitivamente faria uma visita a Brito, pois sabia que ele estaria lá. Brito sabia que não tinha muito controle sobre o que os outros pensavam ou faziam e não tinha controle sobre o que os porteiros falavam, ainda que estivessem atendendo a um pedido seu.
Brito tinha consciência de que não era exatamente uma boa companhia para quem ainda não o conhecesse bem ou mesmo para algumas pessoas que o conheciam desde o seu nascimento. Ele simplesmente não gostava de conversar e não via nenhum crime nisso.
Ao mesmo tempo, Brito era incapaz de mandar alguém como Braga ir procurar outra coisa para fazer. Parecia algo maldoso demais. Brito achava que deveria ter paciência nessas horas. Isso lhe causava um tipo de sofrimento que não conseguia explicar para seus poucos amigos realmente próximos.
Nem ao menos mencionava isso a seus amigos, porque nessas horas eles sempre lhe diziam que Brito era mal acostumado e um vagabundo boa vida. Brito também não via nenhum crime nisso.
Capítulo 4- Academia do Barro Marrom
Brito morava no último andar de seu prédio, o décimo sexto. Gostava de deixar a TV ligada no canal que filmava a portaria de seu prédio. Costumava se referir àquele canal como TV POVINHO.
Gostava de ver seus vizinhos entrando e saindo do prédio enquanto podia sentir-se isolado deles. O áudio não podia ser captado, mas as imagens eram suficientes para que concluísse que não tinha nenhum tipo de vínculo afetivo com aquela que era sua vizinhança desde criança.
Gostava de algumas comodidades relativas à localização de seu apartamento, nada além disso.
Se fosse por outras razões, teria ido embora dali sem olhar para trás. Quase sempre que pegava o elevador para descer ao térreo, mesmo de madrugada, a probabilidade de o elevador parar em alguns dos quinze andares abaixo antes de chegar ao térreo era grande. Ele havia se habituado a descer pela escada.
Por ali também podiam surgir inconvenientes. Um dos mais comuns se davam quando Brito ouvia o barulho da porta de algum apartamento se abrindo um ou dois andares abaixo daquele em que estava.
Em algumas dessas ocasiões a pessoa que abriu a porta estava apenas entrando ou saindo do apartamento, mas em muitas outras vezes a pessoa em questão vai colocar o lixo para fora. e invariavelmente se deparava com Brito descendo rapidamente e se assustava de uma maneira bisonha.
Em outras dessas ocasiões a coisa era engraçada, mas na maioria das vezes era constrangedora. Pelo menos por duas vezes ao longo de cada semana Brito ouvia coisas como 'Que susto, meu filho!!!'.
Isso muitas vezes era mais desagradável do que encontrar um morador no elevador, digamos, no décimo quarto andar, com a garantia de que a viagem seria longa até o térreo, principalmente por causa do efeito da maconha, que somada á companhia indesejável dava a impressão de que a viagem era mais demorada. E então ali estava Brito com um velho senhor conservador e Brito não está muito à vontade.
Esse velho e anti-séptico senhor vai puxar conversa, porque afinal de contas é um morador antigo do prédio e conhece Brito desde que ele era um garotinho inquieto, que sabia que já odiava sua vizinhança, mas que não tinha como direcionar aquele sentimento em ações práticas e nem transformá-lo em palavras.
Um não gostava do outro, mas Brito podia argumentar para si mesmo que ele procurava evitar a interação e que por isso era melhor como humano do que aquele velho senhor. E antes que o elevador chegue ao térreo ele pararia em outro andar para recolher mais um morador ou moradora, que saberia que Brito fumou maconha porque sentiria a marófa em sua roupa ou porque Brito não era fã de colírios e saía com os olhos vermelhos.
Havia o dentista que parecia o Richard Carpenter, extremamente conservador quando o assunto era relacionado a valores familiares e morais.
Ele morava no terceiro andar, mas preferia esperar que o elevador descesse do último andar para buscá-lo do que descer três andares de escada. Em meio a esse tipo de encontro, Brito parecia ser sempre o único a não se sentir confortável, seguro ou tranquilo. Era sempre o único que parecia não se importar se nunca mais visse qualquer uma daquelas pessoas que viviam fisicamente tão próximas dele.
Naquele período o condomínio havia trocado o zelador. Haviam substituído Seu Augusto , um senhor distinto que trabalhava ali havia dezesseis anos. Quem ficou em seu lugar foi Cleitom, um carioca bem mais jovem e descontraído. Era um tanto abusado.
Seu Augusto tinha classe e sabia lidar com Brito e com os outros moradores. Isso rendia uma série de benefícios a todos. Mas eis que num dia Seu Augusto se aposentou e Cleitom entrou em seu lugar, rapidamente se tornando íntimo de Britão, e com muita carioquice, logo teve para si um panorama do que era a vida naquele prédio.
Mulato claro de estatura mediana e bastante magro e com óculos com armação redonda de arame, parecia muito com o Escadinha.
Enquanto Brito procurava não dar confiança para que Cleitom criasse intimidade, Britão conversava com ele diariamente, às gargalhadas, falando sobre moradoras do prédio, sobre futebol e sobre assuntos do condomínio.
Quando Cleitom passou a se sentir familiarizado com São Paulo e com os moradores do prédio, passou a tratar Brito como sendo parecido com seu pai, alguém disposto a interagir aleatoriamente, o que era um equívoco e tanto.
Cleitom exagerava nas brincadeiras e se atirava numa intimidade que nunca teria. Isso causava chateação em Brito, que atribuía tal comportamento não somente à falta de classe, mas à burrice do sujeito.
Era o tipo de situação que provavelmente só poderia ser resolvida com uma conversa, e a princípio isso era tudo que Brito queria evitar.
Esse tipo de conversa para remediar algo que não tem cura, como era a falta de classe de gente que exagera na irreverência, sempre causava mal estar e deixava sequelas no ambiente. A imposição de Cleitom por sociabilidade teria como resposta a resistência de Brito, que por sua vez iria impor sua antissociabilidade.
Só o tempo poderia neutralizar as investidas de Cleitom, que quase clamava por intimidade. Uma coisa que deixava Brito realmente intrigado era o fato de Cleitom não agir da mesma forma com outros moradores do prédio.
Alguns desses moradores visivelmente permaneciam distantes das abordagens irreverentes de Cleitom, e aparentemente não precisavam fazer qualquer esforço para que isso fosse possível. Cleitom tinha a vantagem de ter acesso à sala onde os monitores exibiam o que as câmeras filmavam.
Brito sempre se mostrava imóvel e impassível quando estava sendo filmado no elevador, enquanto outros moradores faziam todo tipo de cena, desde coçarem órgãos genitais até fumarem escondidos em áreas do prédio onde isso era proibido. As abordagens de Cleitom eram feitas a Brito começando sempre pelo jargão 'fala, pessoa !!!'. Brito entrava ou saía do prédio e sabia que iria ouvir de Cleitom: "Fala, pessoa !!!'. Um paulista azedo e ranzinza sendo chamado de 'pessoa' por um carioca irreverente. Às vezes era até engraçado, dependendo do humor de Brito, mas geralmente soava como provocação gratuita. Era difícil para ele entender o porque de ter sido escolhido.
O perfil desses moradores daquele prédio era genérico. Era um grupo homogênio típico de classe média. Pessoas cinzentas que tem como maior medo o de perder tudo e não ter mais onde morar. Vidas metódicas que funcionavam com a regularidade de um relógio.
Tinham seus empregos e suas famílias e eram apáticos e letárgicos para todas as outras funções vitais. Havia muitos exemplares humanos daqueles que realmente são inconvenientes em todas as ocasiões em que surgem.
No décimo segundo andar do prédio, ocupando o apartamento virado para o portão da rua, viviam duas mulheres, mãe e filha. A filha, Joice, era uma quase cinquentona ainda boa de corpo que desde que concluiu a faculdade tinha um escritório de contabilidade. Solteira e boa gente, ela abriu mão de constituir uma família própria para que pudesse se dedicar exclusivamente a cuidar da mãe e de seu escritório.
Era idosa demais para que algum homem que a interessasse pudesse se interessar por ela, e jovem o suficiente para que sofresse assédio sexual de velhos caquéticos que deveriam estar fazendo companhia à sua mãe.
A velhinha, Dona Dalva, era jogo duríssimo. Tinha noventa e um anos e havia passado os últimos quinze vivendo de um vago sopro de energia vital, mas que não se esgotava definitivamente.
Tinha sérios problemas respiratórios e há muito não saía de casa. A partir dos oitenta e oito anos passou a usar permanentemente um tudo de oxigênio para respirar. Deslocava-se no máximo até o corredor de seu andar no prédio.
Esse era um dos pólos que a velhinha podia alcançar. O outro era a sacada do apartamento, de onde via diariamente o mesmo pandemônio que alimentava a paranóia de Brito.
Olhava para a rua e sabia que só passaria por ali de novo quando estivesse indo para a cova. Toda terça-feira e todo sábado a velhinha e sua filha Joice esperavam pela entrega de mais oxigênio. Um caminhão fazia a entrega de tubos cheios e levavam embora os vazios. Dona Dalva era completamente alucinada por causa da falta real de contato com o mundo exterior e a consequente solidão e tédio.
Era de se esperar que àquela altura da vida já não fosse mais conseguir aproveitar a parte boa dessa situação. Vivia ralhando por qualquer razão: os cachorros dos vizinhos, as faxineiras do prédio, crianças que brincavam no corredor. A única coisa que a infeliz ainda tinha condições de fazer era acumular amargura e rancor, sem jamais canalizá-los adequadamente.
Depois de mais de nove décadas de vida essa pobre criatura tinha como certo o fato de que jamais seria lembrada por quem quer que fosse, a não ser por sua filha, que mesmo assim se sentiria aliviada quando ela partisse. Não era do tipo que deixaria saudades por coisas belas que fazia em vida, como cookies de aveia com pedaços de chocolate meio amargo, ou por tocar boas canções ao piano ou mesmo por criar gatos.
Quando Brito tinha quinze anos e a velhinha ainda não estava tão decrépita, pôde ouví-la dizer a uma vizinha:
"Meu marido era um homem-galo. Quando trepava comigo era pra gozar logo e dormir ou voltar pra bebida. A bebida sempre falou mais alto. Eu estou enlouquecendo porque não sei se devo aconselhar minha filha a tentar arrumar um home que preste ou se é melhor deixá-los de lado. É ruim com eles, é péssimo sem eles, e são todos uns vigaristas. Eu sei que ela precisa foder, e por isso sempre digo a ela que nessas horas o melhor é pegar um garotão, e levá-lo ao motel e foder bastante. Nunca trazê-lo pra casa. É preciso voltar pra casa com a cabeça no lugar."
Definitivamente a privacidade não é algo que existe de fato nesses prédios de apartamentos, e por isso pessoas reclusas e reservadas como Brito sofriam mais que as outras. Haviam pessoas que ao contrário de Brito gostavam do contato social e às vezes faziam de propósito com que suas saídas de seus apartamentos ocasionassem encontros com outros moradores.
Muitas vezes Brito voltava para casa vindo da Paulista durante a noite, quando o movimento estava quase encerrado e havia um carro com os faróis acesos em frente ao seu prédio. E Brito sabia que se tratava de alguma garota do prédio sendo bulinada por algum cara. E quando Brito chega ao portão do prédio, a porta do carro se abre e a tal garota sai. Elas sempre precisam sair do carro desses sujeitos bem a tempo de subir o elevador com Brito.
As coincidências desse tipo pareciam sempre acontecer em momentos inoportunos e não havia muito o que Brito pudesse fazer. E ele estava geralmente cheirando a bebida e maconha e sem vontade ou motivo para conversar. E geralmente não havia mesmo conversa alguma.
Apenas aquela sensação de ter o efeito da maconha cortado abruptamente. Já mencionamos anteriormente que o pai de Brito havia sido síndico. Era conhecido como Britão e sua administração durou dois anos.
Não chegava a ser um mau sujeito, mas não primava pela discrição. Era uma espécie de Brian Ferry, mas nada elegante. Falava alto, era sociável, dava gargalhadas altas, debatia sobre gastos e necessidades do condomínio com outros moradores.
Como também já foi mencionado anteriormente, Britão vivia de renda por causa dos rendimentos da venda de imóveis da família anos antes. Pai e filho tinham enfoques diferentes na vida e somente com o passar de muitos anos conseguiram um certo equilíbrio na relação.
Esse equilíbrio era calcado no fato de que Brito não havia realmente saído de casa, mas ao mesmo tempo, pelo menos tecnicamente, morava em outra casa, por serem vizinhos de andar. Sendo assim, Brito conseguia viver sem ter um emprego e Britão conseguia se distrair com atividades relacionadas à conservação do lugar em que vivia.
Numa ocasião Brito chegou a seu prédio e ainda na parte descoberta da entrada viu seu pai conversando com uma vizinha. Brito sabia que seria terrível subir com os dois no mesmo elevador e assim que entrou no hall ouviu o que Britão dizia á tal vizinha: 'Ah, minha senhora, hoje sou um homem aposentado, mas não é por invalidez!!!' , e caiu numa gargalha da histérica, que foi interrompida quando viu o filho se aproximando.
Brito não podia acreditar no que tinha visto e ouvido, e em seguida Britão disse à vizinha: 'Esse é meu herdeiro!!' O constrangimento diminuiu um pouco quando a mulher desceu no nono andar e os dois seguiram sozinhos e em silêncio no cubículo até o décimo sexto andar, quando se despediram secamente e entraram cada um em seu apartamento. Não havia como controlar o comportamento do velho.
As tentativas de Brito de fazê-lo agir com um pouco mais de categoria e ser menos desajeitado socialmente gerou uma série de atritos ao longo de sua vida. Seu pai não conseguia admitir a hipótese de ter atingido uma idade matura e precisar seguir conselhos de seu filho sobre como agir.
Afinal, era ele quem pagava as contas e dava vida boa para a família. A ignorância de quem quer que fosse nunca primou pela modéstia. Isso se aplicava à família de Brito e ao próprio conceito que eles tinham do que deveria ser uma família.
Quando Brito entrava ou saía de seu apartamento, seus pais podiam ouvir o barulho da porta. Do apartamento vizinho também era perceptível a seus pais a chegada de visitas no apartamento de Brito, especialmente se fossem visitas barulhentas. Tanto as visitas mais barulhentas como as mais discretas sempre falavam no corredor quando chegavam. Nunca esperavam para entrar no apartamento.
Como a a variedade de pessoas que Brito levava para casa era pequena, seus pais quase sempre podiam saber quem estava chegando. Talvez a visita mais barulhenta que Brito se permitia receber fosse a de Vânia, a irmã de Galvão, sobre a qual falamos brevemente no começo dessa história.
A mulata jovem, bonita, alegre e engraçada, mas muito brava quando algo ou alguém a tirava do sério. Com Vânia por perto Brito, se sentia mais à vontade do que com a maioria das pessoas que conhecia. Muitas vezes Brito bebia bastante quando a encontrava e isso às vezes o tornava um cara sentimental demais e em outras vezes isso fazia dele um homem com pensamentos bestiais.
Vânia não tinha muitas esperanças de um relacionamento tão sério com brito, embora gostasse de estar com ele, pois podia se manter afastada por algum tempo da vida atribulada que levava. Ela sabia que Brito repudiava a falta de sossego na vida e tentava aprender algumas coisas com a convivência com o rapaz.
Ela tinha apenas vinte e um anos mas era um mulherão. Gostava das músicas que ouvia na casa de Brito.
Sempre que ela elogiava a sequência de músicas que ele escolhia para fumarem maconha, beber ou trepar, ele dizia:
'Ah, minha filha... se eu tivesse um emprego, talvez fosse o de programador musical de uma emissora indie. Eu faria uma mistura perfeita entre as músicas velhas e as novas. Como não tenho programa de rádio, você é praticamente a única pessoa que ouve as de ontem e as de hoje na mistura musical da minha cabeça.'
Quando bebia, Brito também costumava dizer a Vânia que tinha por ideal 'uma vida mais bêbada e inconsequente'.
Ela invariavelmente respondia que repudiava a ideia de se envolver com um bêbado vagabundo com quase quarenta anos de idade.
Numa dessas ocasiões em que tarde da noite Brito já tinha quase liquidado uma garrafa de uísque e estava imprestável de tão bêbado, seu pai bateu á sua porta para anunciar que tinha voltado de um show com a mãe de Brito.
Vânia havia atendido. O velho Britão também estava um pouco embriagado e contava aos berros como tinha sido espetacular um show de uma banda cover dos Bee Gees enquanto olhava a espetacularidade do corpo de Vânia.
Brito ouvia aquilo e por causa da embriaguez não conseguia saber ao certo se tratava-se de um pesadelo grotesco ou se seu pai tinha perdido definitivamente o juízo.
_ Meu Deus, você pagou caro pra ver banda cover dos Bee Gees? Podia ter ido a uma churrascaria! Várias delas tem bandas cover de Bee Gees... - disse Brito ao pai.
_ Porra, mas essa era uma banda australiana incrível!! Se você fechasse os olhos podia jurar que aqueles falsetes eram feitos pelos integrantes originais!! - disse Britão.
_ Isso é uma picaretagem caça-níqueis! - disse Brito _ O que você entende de música, moleque? Eu vivi a época de outro da música, inclusive do Rock! - disse Britão. _ E hoje você acha que uma banda cover dos Bee Gees algo fascinante... - disse Brito.
Capítulo 5 - Sambadrome: A Nação Paranga
A parede do banheiro do apartamento de Brito começou a ser quebrada numa manhã de quinta-feira para o conserto de um cano. Na noite anterior seu pai foi avisar-lhe da necessidade desse reparo, causando grande chateação a Brito.
Ele precisava fazer com que o dia do conserto do cano do banheiro passasse o mais rápido possível. Reformas em casa o deixavam realmente triste.
Na época em que era estudante e estava sempre atrasado e o banheiro que sobrava tinha que ser dividido, essas reformas eram tão repugnantes quanto um procedimento cirúrgico nos olhos.
Mas Brito cresceu ouvindo que a vida era dura mesmo para quem não tinha um casa e muito menos um banheiro e também para pessoas que não tinham o que comer. Enfim, era algo desagradável, mas ele tentaria viver aquele dia sem lamúrias.
Ele podia cagar e tomar banho no banheiro da empregada, que estava desativado. Os caras terminariam o serviço ás dezessete horas e seu pai acompanharia tudo até que fossem embora.
O velho Britão gostava de cuidar de seu patrimônio. Gostava dessas reformas na mesma proporção que Brito as odiava. Brito foi tomar café com sua mãe a partir das nove horas, quando os encanadores chegaram acompanhados de Britão.
Ele via sua mãe todos os dias, mas naquele momento, na cozinha dela, a velha parecia ainda mais velha. Rosa tinha 65 anos e Brito achou triste que ela tivesse vivido toda sua vida num casamento tão farsante. Teria sido mais digno e mais humano fazer um contrato de moradia com o velho Britão, que levava o sustento financeiro da família a sério, mas que deixava todos os outros setores da vida familiar no descaso.
Rosa se sujeitava às grosserias e à falta de jeito de Britão para lidar com as pessoas. Rosa tinha sido criada para isso. Nunca esboçou qualquer tipo de rebelião contra o machismo do marido.
Era como se tivesse aceitado desde muito cedo um triste destino que se cumpriu com a formação de sua própria família. Uma família nos velhos moldes. Aquela estrutura familiar era tão débil e antiquada que Brito que fez de Brito um sujeito completamente avesso aos valores familiares tradicionais, mesmo sendo ele uma pessoa não tão questionadora e rebelde. Quer dizer, ele tinha seu próprio modo de se rebelar e de questionar o que lhe era imposto.
Eis aí mais uma semelhança ideológica entre Zími e Brito, seguidos mais tarde por Mila Cox.
Bastava fazer tudo ao contrário. O fato de Brito chegar à beira dos quarenta anos sem qualquer indício de que casaria um dia já fazia com que seus pais ficassem intrigados. E Brito procurava não dar motivos para que houvessem atritos por causa dos direcionamentos de vida diferentes dos de seus pais. ...
No muro do antigo Hospital Matarazzo, na frente do prédio de Brito, alguns mendigos paravam para descansar por algum tempo, antes de serem escorraçados pelos seguranças ou policiais. Havia um em particular que alcançara os sessenta anos de idade e que era uma figura lendária da Bela Vista. Desde que Brito era criança, aquele homem era um morador de rua e cachaceiro.
O velho homem parecia Hemingway na fase madura de sua vida. Um velho Hemingway depois da guerra. Aquele mendigo em especial já não abusava tanto da bebida como na época em que era mais jovem e conseguia comida suficiente.
Podia ser visto regularmente comendo uma farta refeição num prato de papel alumínio. Vez ou outra aparecia barbeado e com banho tomado, depois de passar uma noite no albergue da Avenida Nove de Julho, quando a sujeira já não o deixava relaxar nas calçadas da Bela Vista.
Era um homem relativamente alto, cerca de um metro e oitenta e três, e acima do peso padrão, algo em torno de 120 quilos. Perambulava pela Bela vista e podia ser visto em vários pontos, mas era no muro do Hospital Matarazzo que passava mais tempo mendigando. Vestia sempre uma calça cinza de moletom encardida e camisetas de propaganda.
_ Me dê um Toddynho! - era o que dizia o velho homem para quem quer que passasse por ele.
No dia do conserto do encanamento de seu banheiro, Brito precisou matar o tempo até que pudesse ficar sozinho em casa novamente. Havia passado toda a mnhã no apartamento de seus pais ouvindo as marteladas vindas de seu banheiro, que fazia divisa com o banheiro do apartamento de seus velhos.
No começo da tarde saiu para ver so na rua o tempo passava mais rápido. No momento em que saía da padaria de sua rua, onde comprara cigarros, a menos de cem metros de sua casa e que era localizada em frente ao muro de onde um dia funcionou o hospital, Brito viu o que parecia ser um ajudante de turnê do Lynyrd Skynyrd ou do Allman Brothers Band. Estava conversando com o velho mendigo da Bela Vista. Parecia que aquele sujeito ainda vivia em 1972 ou que estava fantasiado a caráter para algum evento de rock sulista americano.
Tinha cerca de quarenta e cinco anos, um metro e setenta de altura, magro, um volumoso cabelo preto comprido preso num rabo de cavalo e coberto na parte de cima por um chapéu.
O bigode era grande como de David Crosby, só que preto. Usava botas, uma calça jeans desbotada mas limpa e uma camisa de manga comprida de um material que parecia ser seda preta. Usava anéis, fumava Hollywood e tinha só um dente visível na boca, na parte superior, que se mexia quando ele falava..
Brito viu o sujeito dando um cigarro ao velho andarilho e acendendo-o para ele. Era uma tarde quente de uma quinta-feira e a padaria já começava a receber os primeiros bancários da região que saíam do trabalho para tomarem cerveja e comerem sanduíches de salame.
Brito abriu seu maço de Dunhill e retirou dali o primeiro cigarro enquanto olhava com o canto dos olhos para aquele sujeito que parecia completamente deslocado no tempo e no espaço, enquanto ele ainda conversava com o andarilho. Já era uma figura curiosa antes mesmo que Brito visse que atrás dele e do andarilho havia uma sacola de discos de vinil encostada no muro do hospital. A sacola era vermelha e transparente, de modo que do outro lado da rua Brito pode identificar o primeiro disco.
Era um belo exemplar do álbum 'Arbet Macht Frei' da banda italiana de rock progressivo Area. Brito era um fanático por lp's a ponto de deixar de lado sua relutância em interagir quando surgia algum disco que lhe interessasse. Como geralmente conhecia as pessoas que lhe vendiam discos há muitos anos, não sofria tanto com cerimônias sociais quando ia comprá-los, fosse em lojas ou feiras de discos.
Aquela situação era diferente, pois Brito não sabia se o sujeito de bigodão queria vender os discos ou mesmo deixar que Brito os examinasse. Mesmo assim ele atravessou a rua e antes de dizer qualquer palavra ao sujeito cabeludo de bigode e ao andarilho, parou na frente deles e fitou a sacola com discos. Por um segundo pensou que nunca mais teria o direito de reclamar de ser um para-raio de malucos. Havia na sacola algo entre vinte e vinte e cinco discos.
_ Fala, meu jovem!! Você tem cara de roqueiro!! - disse o sujeito cabeludo de bigodão, com uma voz grossa e engraçada que parecia estar satirizando a si mesmo
_ Ah, sim, eu gosto de rock. Gosto de vários gêneros musicais. Cheguei mais perto por causa dos discos que você tem aí. Fiquei curioso, também sou colecionador.
_ Então é uma feliz coincidência o que está acontecendo aqui, jovem. Eu não sou mais colecionador, já me desfiz de vários belos discos, alguns realmente raros. Já tive quatro mil discos ao mesmo tempo, e no total, cerca de sete ou oito mil passaram pelas minhas mãos. Por problemas financeiros e também por falta de espaço me desfiz de milhares de discos. É doloroso, mas de qualquer forma a música nunca vai se perder de mim. Esses discos que estão na sacola eu ia vender, mas esses lojistas estão completamente loucos. Queriam pagar muito menos do que eu poderia aceitar. Em alguns casos ofereciam menos do que o valor do que valeria o xerox das capas. Eu naturalmente já salvei o conteúdo musical desses discos e também a arte das capas. Eu os reproduzo em cd e vendo. Sou um pirata, mas um pirata que dá valor ao trabalho artístico dos caras que fizeram essas obras primas. Meu nome é Ademar, mas pode me chamar de Dema. - disse Dema, o bigodudo.
_ É melhor vender esses discos pra mim, Dema. Se você vendesse quase de graça pros lojistas, amanhã seus discos estarão nas prateleiras por preços altos. Esse disco do Area é sensacional. Eu não o tenho em casa. Meu nome é José Ronaldo, mas pode me chamar de Brito. - disse Brito.
_ Dê uma olhada nos outros discos! - disse Dema a Brito.
Brito pegou a sacola que estava encostada no muro e arregalava os olhos a cada disco que via naquele pequeno lote. Edições originais americanas, inglesas, alemãs e japonesas de artistas importantes, mas esquecidos do grande público, inclusive do público do rock. Bandas como as italianas Acqua Fragile, Area e Banco Del Mutuo Soccorso; bandas alemãs como Eloy, Nektar e Amon Duul; bandas francesas como Magma, Ange e Gong, além de outras mais obscuras do Hard Rock e do rock progressivo inglês e americano.
Havia também uma edição original do disco As crianças da Nova Floresta, da banda brasileira de rock progressivo Recordando o Vale das Maçãs, e isso fez com que as palmas das mãos de Brito começassem a suar.
_ Faça um preço razoável que eu vou comprar todos. Alguns desses discos eu tenho, mas não em edições tão legais como essas. Eu não ligo de ter discos repetidos nesses casos. - disse Brito para Dema.
Logo em seguida o velho andarilho falou pela primeira vez: _ Pensei que nunca mais veria algo assim na minha vida. Esse tipo de negociação me emociona. Vocês vão me pagar um Domecq? Meu nome é Guido! - disse o mendigo que parecia Hemingway.
_ Sim, a garrafa do Domecq vai estar incluída no preço do pacote de discos. Nós três vamos dividir a bebida. - disse Brito. Brito contou 23 discos naquele pequeno lote, e para o caso dele querer levar todos, Dema estipulou o valor de mil reais.
Individualmente aqueles discos podiam custar duzentos reais ou mais do que isso em feiras de discos e em cotações de vendedores de discos raros em sites na internet, o que fazia com que a compra de todo o pacote fosse um ótimo negócio para Brito.
Venderia pela internet alguns deles, os que fossem repetidos em sua coleção, pelo preço do mercado, e com isso recuperaria pelo menos metade do dinheiro investido.
Guido sugeriu que Brito e Dema fossem fazer a operação bancária o mais rápido possível e voltassem com o conhaque. Enquanto Guido esperava ali mesmo com um Dunhill fornecido por Brito e um Hollywood fornecido por Dema, a transação foi feita num banco da Paulista.
Ainda precisavam pegar o Domecq de Guido e o fizeram no mercado da Rua Pamplona, o mesmo lugar onde Braga pode conversar mais tempo com Brito poucos dias antes.
Quando finalmente voltaram para encontrar Guido, este reclamou da demora mas alegrou-se muito com a chegada da bebida. Foram tomar o Domecq na ponte. Brito tinha trazido copos descartáveis e também tinha um baseado.
Dema também tinha um baseado. Dema já tinha liquidado um maço de Hollywood e abriu outro maço. O sujeito realmente fumava muito. As horas passaram rápido, e durante aquele período os três foram socialmente iguais, humanamente diferentes e até certo ponto, livres. Dema fez um desabafo emocionado quando servia para si mesmo a segunda dose;
_ Todo mundo que me vê associa a minha imagem a um sonho hippie, àqueles ideais dos anos sessenta que aqui no Brasil se estenderam até os anos setenta. Mas muito pouca gente sabe dos meus sofrimentos. Tive uma série de problemas de saúde, principalmente por causa da bebida. Hoje me vejo vivo e com mais de cinquanta anos e tomando conhaque com um cara mais velho e outro mais novo que eu. O que eu tinha pra perder por causa de bebida, eu já perdi. Tive e ainda tenho uns problemas no fígado, mas o pior foi a trombose hemorroidária e as doenças venéreas. Foram tantas que elas resultaram em um cãncer no meu pênis. Isso só pode ser curado com castração. Minha próstata também estava bastante comprometida. Meus amigos, eu sou eunuco e uso uma saqueira pra disfarçar. - disse Dema, levantando-se na sequência e fazendo uma pose para mostrar aos amigos que sua saqueira cumpria o papel de disfarçar o desfalque físico.
Brito e Guido se olharam chocados. Foi a primeira vez que Guido pareceu abalado com algo dito desde o instante em que Brito se juntou a eles. Naquele momento, aos olhos de Brito, Dema parecia-se muito com David Byron, o primeiro vocalista do Uriah Heep, só que mais velho. De fato a saqueira de Dema era discreta. Depois de alguns segundos de um silêncio gelado e reflexivo dos três, Dema voltou a falar;
_ Quando eu era jovem, dividíamos lendas, mitos e ideais. Hoje os jovens dividem a própria burrice no Facebook. É bem verdade que aquele velho idealismo ceifou a vida de muita gente e daquele sexo livre dos velhos tempos antes da aids, me sobrou somente a possibilidade de fazer sexo oral com as garotas, mas elas enlouquecem com meu bigode em suas vaginas.
_ Eu já cheguei a pensar que a miséria em estado puro ia me enlouquecer, mas ela vai me salvar. Nas ruas e na vida não basta correr pra não ser engolido. É preciso ser indigesto. Quando os poderosos forem donos de toda a água potável do mundo a coisa vai azedar e essa classe média asquerosa que me despreza vai pagar caro! - disse Guido, que deu o último gole da garrafa de Domecq.
Então Guido se levantou e atirou acintosamente a garrafa vazia contra o asfalto que estava atrás dele enquanto estava sentado na mureta que separava a calçada da ponte e a via para os carros, causando certo estardalhaço, mesmo levando em conta que naquele momento cada carro passasse apenas a cada cinco minutos.
_ Não faça isso!!! - gritou Dema enquanto levava as mãos à cabeça.
_ Caiu, porra!!! - respondeu Guido em voz alta.
Capítulo 6- Todos sem máscara
Quando voltou para casa naquela noite, Brito não estava tão bêbado. O conserto em seu banheiro tinha sido efetuado com sucesso.
O conhaque tinha sido dividido por três caras que gostavam de bebida e por isso a quantidade de álcool ingerida até então tinha sido insuficiente para que a embriaguez de Brito chegasse ao ponto em que ele se considerava satisfeito.
Brito tinha pego um cartão de Dema, com seu endereço e o número do telefone fixo e o do celular. Dema morava no centro da cidade, na Rua do Boticário. É uma viela imunda, cheia de nóias, próxima ao Largo do Paissandu.
No cartão dizia que Dema tinha um grande catálogo de rock e música em geral e que gravava cds piratas com encartes fiéis aos originais. Saber que aquele sujeito era eunuco fazia com que Brito se sentisse na obrigação de rever certas coisas em sua vida, especialmente aqueles setores em que se considerava infeliz, ou pelo menos, insatisfeito. Seu ego era tão colossal que esmagava a sua razão.
Tinha passado uma tarde na companhia de outros dois homens que lhe expuseram suas agonias e seus pesares e que continuavam vivos.
Brito pensou que Guido talvez ainda estivesse com vontade de beber depois que os três se despediram. Só depois é que pensou que Guido não tinha nem ao menos onde dormir. Brito então serviu-se de um copo grande de uísque com uma pedra de gelo. Ainda estava chocado com as revelações de Dema sobre a castração e a saqueira.
Foi tomar o primeiro gole em sua sacada e olhou para baixo, Guido não estava lá. Um motoqueiro entregador de pizzas passou pela rua. Brito deixou o copo no chão da sacada, entrou no apartamento, pediu pelo telefone uma pizza de aliche e uma de provolone. Acendeu um cigarro e voltou para o uísque na sacada.
Terminada a dose ele pensou que mais um pouco de uísque seria o suficiente para que ficasse bêbado e realmente com fome, e quando terminasse de beber a pizza chegaria, o que de fato aconteceu e então o dia terminou sem mais desdobramentos. Eram dez horas e quarenta e três minutos no relógio do microondas de Brito quando ele acordou na manhã seguinte e havia muita pizza para o café da manhã. Não havia reformas para serem feitas em seu banheiro. Ele liquidou a pizza e começou a ouvir os discos que tinha comprado de Dema.
O plano era ficar à toa ouvindo aquele material para em seguida guardar os discos que ainda não tinha e em seguida separar os repetidos e dar início às negociações pela internet, visando vender os álbuns que ele já tinha.
Na verdade Brito venderia as edições que ele já tinha em casa, pois os discos repetidos que comprara de Dema eram edições importadas, melhores e mais caprichadas.
Parecia ser um bom dia para não beber e não sair de casa. Seria bom ouvir música e fumar maconha.
Quando Brito terminou de comer a pizza do dia anterior era quase meio dia e só teve fome de novo quando eram sete da noite, quando finalmente comeu sanduíches de atum com fatias de provolone e uma goiaba vermelha depois de ter fumado alguns baseados nesse intervalo, além de ter feito barras e flexões e também de ter se masturbado.
A leveza dos bagos era para ele a receita contra a melancolia causada pela solidão. Brito não sofria dessa melancolia. Via e ouvia tanta gente reclamar da solidão que se sentia ainda mais deslocado socialmente.
Naquela noite Brito enviou um email a Dema pedindo que lhe fosse enviada a lista de discos que podiam ser copiados em CD com o encarte fiel ao original.
Fez o pedido porque queria prestigiar o trabalho do novo amigo. Talvez houvesse naquela lista algum álbum que Brito não tivesse ouvido, mas que já tivesse ouvido falar.
Afinal são muitos os discos que são comentados demais pelos especialistas e ouvidos de menos por todos.
Enviou a Dema alguns arquivos antigos que tinha guardado de sua antiga revista PORRITE, e no dia seguinte recebeu como resposta a tal lista de discos e também a manifestação do interesse de Dema em relançar os exemplares antigos da revista e elaborar novas edições.
Combinaram por email de se encontrarem no apartamento de Dema.na noite seguinte ao email de resposta de Dema, Poderiam então conversar novamente e tomar cerveja enquanto Dema trabalhava na confecção de CD's piratas anteriormente encomendados por seus clientes.
Na Avenida Ipiranga havia um estacionamento bem na esquina com a Rua do Boticário, onde Dema morava. Brito deixou seu carro no estacionamento e procurou pelo prédio de Dema. Vestia uma camiseta do Juventus da Mooca, calça jeans e all star azul escuro de cano baixo.
O local sempre parecia um circo de horrores, especialmente quando escurecia, mas Brito já sabia disso. Como andava naturalmente despojado não se preocupou. Os usuários de crack que não estavam empenhados em suas cachimbadas se deslocavam debilmente e mancando muito atrás da próxima pedra.
Chegou ao prédio de Dema, que ficava do outro lado da Avenida Ipiranga sem ser tão importunado pelos nóias.O prédio era um meio termo entre cortiço e edifício residencial. Parecia haver todo tipo de gente vivendo ali. Resquícios de estrutura familiar padrão diluída numa bruma de agonia, abandono e desespero.
O interfone na parte externa não estava funcionando e no instante em que surgiu senhora que possivelmente morava ali com sacolas de supermercado tentando abrir a porta do prédio, Brito a ajudou e aproveitou e perguntou a ela se conhecia Dema.
"Ah, sim, jovem... Conheço o Dema há mais de 20 anos. Quando vim pra cá ele já morava aqui com a mulher dele. Você também é roqueiro, né? Entre comigo que te mostro onde ele mora." Brito e a velha senhora subiram dois lances de escada. Cada andar tinha dez apartamentos cujas portas alinhavam-se apenas do lado direito do corredor que começava ao final de cada lance de escada. A velha senhora agradeceu pelo fato de Brito tê-la ajudado a carregar as sacolas quando chegaram ao número vinte e três, que era o apartamento dela, que indicou o apartamento vinte e oito como sendo o de Dema.
Despediram-se brevemente, Brito a agradeceu pela informação e foi até a porta de número vinte e oito e tocou a campainha. _ Mas que grande satisfação tê-lo aqui, meu caro! Frequentando o centro sujo da cidade, não é? Não se preocupe com esses nóias, porque na volta eu te escolto até uma avenida segura! - disse Dema ao abrir a porta.
Dali Brito pode ver a mulher que supôs ser a esposa de Dema. Era uma mulher muito hippie, com cerca de quarenta anos, morena, magra, cabelos lisos muito pretos e compridos.
Muito quieta e serena, pediu que Brito não reparasse na bagunça. Ela estava sentada no chão e recortava encartes de CD's piratas e os colocava nas caixinhas. Dema os apresentou e contou a ela superficialmente a forma como conheceu Brito. O nome da esposa de Dema era Joice.
Extremamente simpática e educada, pediu que Brito deixasse sua mochila no sofá de dois lugares cujo forro imitava couro preto. Brito não conseguiu deixar de pensar nas modalidades sexuais alternativas às quais eles tinham que recorrer pelo fato de Dema ser eunuco. O apartamento era uma quitinete com cerca de trinta metros quadrados cuja janela para a rua se estendia por entre as duas paredes laterais. Essa janela era virada para a Rua do Boticário e podia se ouvir nitidamente o movimento dos usuários de crack. Sentia-se o cheiro das pedras sendo queimadas ali embaixo.
Brito pôde constatar que Dema estava com a mesma roupa que vestia na ocasião em que se conheceram. Ou talvez Dema tivesse dentro do seu armário várias camisas pretas de seda iguais. Dema abriu a geladeira alcançou uma cerveja long neck para ele e outra para Brito, que abriu sua garrafinha e dirigiu-se para a janela, da qual já estava a poucos metros.
O ascender contínuo dos isqueiros para se queimar as pedras de crack cerca de dez metros abaixo proporcionava um show de pirotecnia que naquele momento parecia ser equivalente a um show do Kiss.
Dema então comentou:
_ A cidade está infestada de nóias, meu amigo. Moro aqui desde 1983, numa época em que o centro já era decadente, mas o crack ainda não tinha feito tanto estrago. Muitos desses garotos que estão aí fumando pedra moram aqui mesmo pela região desde que nasceram. Alguns aqui nesse prédio. De vez em quando entram drogados aqui e cagam no corredor, causando um dano terrível. Deixam barradas colossais. Outros desses vieram pra viver na rua e ter acesso às pedras. Nós tentamos nos adaptar da melhor maneira. O centro inteiro já está repleto de nóias. Até mesmo na Santa Cecília e Higienópolis que são partes mais burguesas do centro. Aqui é meio baixo astral, eu sei. vamos sair um pouco. Tenho um vizinho que você precisa conhecer. O nome dele é Djalma. - disse Dema com seu dente frontal superior mole e solitário balançando a cada palavra dita, para a alegria de Brito. Antes de saírem, Brito pediu a Dema para usar o banheiro. Precisava urinar e já tinha deduzido que a única porta fechada naquele pequeno apartamento, que ficava muito próxima da porta de entrada, era o banheiro.
Brito foi alertado por Dema para que não apertasse a descarga, porque isso faria com que ela disparasse e não parasse mais. Brito urinava e pensava que depois Dema ou Joice logariam baldes d'água na privada para que a descarga não disparasse. Joice ficou em casa terminando seu trabalho.
Dema e Brito saíram em meio aos usuários de crack. Andaram por cinco quarteirões até a rua Vitória, entre as ruas Guaianazes e Conselheiro Nébias. Na parte térrea do prédio de Djalma funcionava uma academia de musculação. Dema conhecia o porteiro. Conversou brevemente com ele enquanto esperava pelo elevador. O porteiro apenas confirmou que Djalma estava em casa e que eles podiam subir.
O elevador era um velho modelo Atlas. Subiram até o quinto andar. Havia oito apartamentos em cada andar. Djalma morava no 504. Do corredor podiam ouvir um certo agito vindo lá de dentro. Djalma era um sujeito de quarenta e um anos, mas assim como Brito, aparentava ter menos idade.
Não era alto, tinha um metro e setenta de altura e era magro mas com músculos salientes e definidos. Tinha um cabelo castanho claro , liso e comprido até os ombros. Era uma cabeleira vasta e bem cuidada, com alguns fios brancos começando a surgir. Usava uma camiseta regata preta e aparentemente não tinha tatuagens.
Quando Djalma atendeu à campainha, deu um abraço em Dema, cumprimentou Brito com um aperto de mão e disse aos dois que estava se divertindo. O apartamento de Djalma tinha cerca de cem metros quadrados divididos entre uma sala, um quarto, um banheiro e uma cozinha. Havia uma certa rotatividade de pessoas na festa, mas com uma média constante de quinze pessoas. Algumas pessoas saíam e logo voltavam com mais latas de cerveja.
_ Trouxemos uísque, cocaína, maconha, cerveja... O único problema até agora foi com aquele cretino desmaiado no sofá. Não aguenta beber e faz esse papel ridículo na frente das meninas... - disse Djalma apontando para o sofá onde
Braga estava deitado todo vomitado e quase dormindo. Gemia algumas palavras que não podiam ser compreendidas. Haviam maquiado o infeliz com batom e jogado o que parecia ser serragem para que seu vômito grudasse. Por um instante Brito chegou a sentir certa compaixão de Braga, quase ao mesmo tempo em que soube que Dema também já o conhecia.
_ Ah, é o Braga! Esse rapaz é um idiota! É um paspalho! Já o conhecia de outras festas aqui mesmo. Ele gostaria de poder estar onipresente. Não há nada que ele não faça pra chamar a atenção. Ele nunca conseguiu o respeito de ninguém. Esse cretino é blogueiro! Olhe, Brito, nós somos da velha escola, precisamos retomar a produção da sua antiga revista! É preciso fazer oposição a esse tipo de gente com a máxima urgência! Eu tenho um livro pronto que está na gaveta! Chama-se 'O LIVRO DOS FILHOS DA PUTA'. Fique tranquilo que não se trata de um livro de poesia. É qualquer coisa menos isso, Eu estava esperando um momento oportuno pra lançar, e hoje esse material está mais atual do que época em que foi escrito! Eu considero que tanto a sua revista como o meu livro são pedidos de socorro! - disse Dema.
_ Vamos lançar seu livro sim! Já que você falou nisso, devo dizer que por ironia do destino eu parei com a revista justamente por causa dos blogueiros... Esse engajamento mala me enoja de uma forma tão pesada que não consigo nem enfatizar o desespero que eu sentia quando essa gente começou a despontar na internet. E se eles acharem que estamos falando mal da inclusão digital e do direito de expressão, ouviremos ladainhas e certamente surgirá uma rodinha de violão com a música do Geraldo Vandré sendo cantada em coro.. - disse Brito _ Descobri recentemente que o Guido é um poeta incrível, totalmente contrário a essa bundice mole desses poetinhas de internet que escrevem sobre borboletas campestres e passarinhos e flores. Poderíamos fazer uma coletânea do Guido no embalo dos nossos relançamentos. Ele rima Denise com marquise, rima Deise com rio laser e o contexto geral é sempre cafajeste e extremamente incorreto politicamente. Seria mais um reforço pra combater a frouxidão dos blogueiros juvenis. A urgência que esses moleques idiotas tem de impor a própria burrice em blogs com atualizações diárias me deixa nervoso. O Braga representa toda essa geração. A única razão pela qual eu ainda não dei na cara dele tem a ver com o fato de que toda vez que o encontro ele está sendo ridículo por iniciativa própria. E também tem a ver com o fato de ser apenas um moleque frouxo e bunda mole. Às vezes eu quase sinto pena, mas ele merece ser essa figura patética mesmo. - disse Dema.
_ Essa geração bunda mole existe porque esses moleques foram criados com mertiolate que não arde e com toddy de morango. Esses pequenos insetos foram criados com tv a cabo e são adeptos do politicamente correto. Eu odeio muito essa juventude... - disse Brito.
Brito não disse a ninguém que o conhecia, mas gostou de ver através de outras pessoas o reconhecimento pela paspalhotice de Braga quando a fagulha de compaixão que chegou a sentir por ele desapareceu. Agora ele parecia ainda mais ridículo do que antes.
De uma certa forma Braga conseguiu a onipresença que parecia buscar. Ele estava onde Brito não imaginou que ele fosse estar, e num momento em que Brito já tinha esquecido dele. Mas Braga falhou em todo o resto. Seria fácil se o garoto quisesse ser ele mesmo. A sensação íntima de sermos o que somos não é algo que pode ser mudado. Havia na festa um sujeito que só tinha o tronco e a cabeça.
Não tinha pernas nem braços, e uma garota ruiva lhe ajudava a fumar cigarro e baseado, tomar cerveja e ir ao banheiro, empurrando a cadeira de rodas do cara. A garota ruiva era belíssima. Uma beleza sensual e delicada ao mesmo tempo. Magra mas com seios grandes para seu porte físico.
Tinha um metro e sessenta e cinco de altura e cerca de cinquenta e dois quilos. Apenas uma tatuagem cujo desenho era uma cereja estava vísível sob a alça esquerda do sutiã preto, que surgia debaixo de uma camiseta regata também preta com a estampa do disco 'Cure for Pain', do Morphine. A garota tinha um cheiro delicioso que lembrava iogurte. Brito ficou ali por duas horas.
Conversou com Djalma, que lhe contou sobre o fato de estar se despedindo do centro da cidade. Mudaria para o bairro da Saúde, porque sua namorada de longa data ficou grávida. A mãe de Djalma gostava da garota e da idéia de ser avó, então convenceu-os de se mudarem para uma casa que ela tinha alugado e cujo contrato do aluguel havia terminado, sem que houvesse interesse do inquilino em renovar.
Braga não havia aprendido isso. Não haveria de aprender tão cedo, afinal não sabia que Brito tinha o visto naquela situação ridícula. Braga talvez deixasse de lado aquele grupo de amigos do centro por causa da vergonha, mas para ele Brito não esteve lá. Sendo assim, Braga poderia ressurgir a qualquer momento, e estaria ainda mais confuso.
Djalma, Dema e Brito conversaram e beberam até Brito sentir cansaço e uma embriaguez comprometedora para dirigir de volta para casa. Saiu dali acompanhado de Dema, que já cambaleava, mas que estava perto de sua casa.
Capítulo 7 – Pão e circo para conter rebelião
Brito pediu enfaticamente a Vânia para que fosse discreta na sua chegada ao prédio dele. Tinha pedido com antecedência ao porteiro que quando Vânia chegasse ela subisse sem a necessidade de interfonar. Isso só para que seu pai não ouvisse o interfone do outro apartamento.
As cozinhas dos apartamentos de Brito e de Britão eram dividias apenas por uma parede e de um lado era possível ouvir o interfone do outro apartamento caso houvesse algum silêncio. A mãe de Brito havia viajado no dia anterior para o casamento de uma sobrinha. Era prima de Brito e tinha trinta e um anos.
Brito havia perdido o contato com todos os seus primos, mas lembrava de quando essa garota nasceu. Manteve algum contato com ela e suas irmãs até a época em que essa que se casaria tinha doze anos.
Deixou de frequentar festas de família. Naquele momento em que Brito esperava por Vânia, ele tinha se desfeito de parte da família original sem que tivesse montado uma só sua. Já não conhecia mais sua prima que ia casar e ela também não o conhecia mais.
Já Britão havia usado a desculpa de dor nas costas e sonolência por causa dos remédios para ficar em casa sozinho no fim de semana. Vânia disse que chegaria ás 22 horas e Brito ficou em sua sacada fumando e olhando para baixo até às 22 horas e 26 minutos.
Havia adiado a primeira dose de uísque para que pudesse beber depois de transar, mas a demora de Vânia o fez queimar a largada. A garota chegou às 23 horas e 11 minutos e subiu sem que o porteiro interfonasse enquanto Brito estava ouvindo o disco .Revenge of the Goldfish, dos Inspiral Carpets.
O som estava razoavelmente alto, e ainda assim Vânia bateu à porta errada. Estava fumando maconha na ponte antes de ir à casa de Brito. Então ela bateu na porta errada e Britão, já completamente alcoolizado e esperando por uma pizza, achou que era o entregador.
Vânia só usou a campainha quando já havia dados vários cascudos na porta de Britão, e ele já estava muito próximo da porta, bêbado e perplexo com o abuso de quem ele pensava ser um garoto que tinha uma moto e entregava pizzas.
Britão abriu a porta e uma boa parte de sua embriaguez baixou quando viu o nível de espetacularidade de Vânia naquela noite.
Alguns segundos de silêncio de ambos foram interrompidos com Britão quebrando o gelo, enquanto Vãnia não tinha nem ao menos assimilado o tamanho da vergonha que começou a sentir. _ Ah, minha filha!! Vou apresentar uma peça hoje à noite! Uma grande peça! Pode entrar... Vânia desmaiou e caiu para trás, com a cabeça batendo diretamente na porta de Brito.
Naquele momento, Britão teve seu grau de embriaguez ainda mais reduzido. _ Não faça isso, minha filha! Meu Deus! - gritou Britão, enquanto Brito acordou de seu exercício de melancolia dentro de seu apartamento.
Os segundos que levou para se levantar e correr até a porta foram suficientes para que Brito se perguntasse porque as pessoas com quem convivia precisavam se comportar de modo que ele ficasse triste e constrangido, mesmo que naquele momento ele ainda não soubesse exatamente o que estava acontecendo. Bastava saber que seu pai e Vânia estavam envolvidos naquilo.
Brito não podia evitar ser filho de Britão, mas podia desistir de conviver com quem não fosse obrigado. Esse tipo de situação o expunha diante da vizinhança e seus esforços para se manter afastado dos comentários iam por água abaixo exatamente quando começava a se alegrar por sentir que estava começando ser esquecido pelos vizinhos. Brito abriu a porta e antes que visse Vânia desacordada, deparouse com Britão, que naquele momento teve empalidecida sua face rosada.
O sangue parecia ter simplesmente sumido da sua cara. Os olhos esbugalhados faziam Britão parecer convencido, pelo menos por alguns segundos, do quão bizarra tinha sido sua existência burguesa até então.
_ O que essa cretina está fazendo caída, pai? Eu não sabia que vocês se conheciam, mas há uma lógica pra isso. Vocês conseguem descer cada vez mais baixo... - disse Brito antes de fazer com que Vânia ficasse esticada no chão.
_ Veja como fala comigo, moleque! Você é um vagabundo que só serve pra encher a privada de merda! - disse Britão.
_ Você constituiu uma família, e disso eu jamais poderei ser acusado! Eu jamais vou contribuir pro aumento da população! Você deveria ser capado antes que pudesse ter filhos, e então eu seria poupado disso tudo! Você é um burguês porco que se mistura com essa gentalha da Bela Vista! Todo o esforço que eu faço pra ser discreto é jogado fora por sua causa! Sou oposição a tudo que você faz, pensa e representa! - disse Brito Eles discutiam e Vânia continuava inconsciente no chão. Ela jazia entre um pai bêbado e um filho que não podia acreditar que aquilo estava acontecendo.
Quando os dois silenciaram ao mesmo tempo houve uma preocupação de ambos com o estado de Vânia e com o que os vizinhos podiam pensar. Como só haviam dois apartamentos por andar e ambos pertenciam ao clã dos Britos, então o risco era menor. Vânia tinha um metro e setenta e três centímetros e pesava sessenta e três quilos, e foi levada com alguma dificuldade por Brito até seu sofá, observada por Britão, que de tão bêbado, mal conseguia se lembrar de como aquilo havia começado. Brito esticou-a no sofá e voltou para a porta, de onde Britão ficou parado olhando sua ação,
. _ Vou dormir! - disse Brito. _ Antes disso você deveria dar uma boa galada nessa morena. Provavelmente ela veio aqui pra isso... - disse Britão com a voz pastosa de bêbado, e em seguida virou-se, entrou em seu apartamento e fechou a porta.
Depois de devidamente acomodada no sofá, Vânia não demorou para acordar. E acordou só para chamar Brito de alcoólatra por ele estar tomando uísque sozinho. Ela nem ao menos perguntou o que havia acontecido antes.
Dormiu na sequência, virando o rosto para o encosto do sofá e sua bela bunda envolta por uma calça jeans que parecia ter sido feita sob medida para o olhar de Brito, que já devidamente alcoolizado, foi dormir no quarto.
Naquele momento, o fato dela querer dormir ali por contra própria era mais importante que sexo para Brito.
Capítulo 8- Coexistência
Os moradores mais velhos do condomínio viviam apáticos em seus microcosmos, cheios de medo na fase final de suas vidas. Se pudessem imaginar o que aconteceria com o mundo a partir de 2020 estariam mais tranquilos por terem certa longevidade garantida antes da pandemia.
Tinham medo do dia seguinte. As crianças descontroladas viviam sofrendo com a falta de espaço e estavam sempre cheias de energia ruim por causa do excesso de açúcar no organismo.
A repressão sobre elas vinha das câmeras instaladas nos elevadores, nas escadas e no hall de entrada do prédio. Através do canal de TV que transmitia o que essas câmeras captavam, Brito assistia de seu apartamento a essa movimentação sufocada e lembrava que em seus tempos de criança as coisas eram diferentes.
Mesmo sendo ele um cara que também foi criado num prédio de apartamentos. Uma cidade dormitório. As imediações da Avenida Paulista não eram apropriadas para nenhum deles. As ruas ali em volta poderiam ser perigosas demais tanto para os octogenários e nonagenários, quanto para as crianças. Tanto à noite como durante o dia.
Alguns dos velhinhos resistiam à idéia de mudarem para cidades menores, pois pensavam que a assistência médica supostamente superior a que tinham acesso em São Paulo poderia lhes dar mais alguns anos de vida. Mal sabiam onde isso tudo isso chegaria,
Outros continuavam a viver perto da Paulista por não terem opções práticas de mudança.
Teoricamente poderiam vender o apartamento bem valorizado daquela região e comprar uma casa agradável no interior e investir o que sobrasse do dinheiro. Assim estariam mais preparados para a vindoura pandemia, com a qual ninguém nem ao menos sonhava naquele tempo.
Seu Ciro era um senhor de oitenta e dois anos a quem Brito conhecia desde as suas primeiras lembranças, na mais tenra infância. Eram os anos setenta e aquele mesmo prédio não tinha nem ao menos um portão que isolasse a calçada dos canteiros da parte frontal. Não havia a guarita externa para o porteiro.
Não se sonhava com câmeras de segurança, naturalmente. E seu Ciro ainda era um cinquentão robusto, com muito cabelo, todo ele tingido de um preto quase azulado. Foi síndico do prédio muito antes de Britão ocupar o cargo. Sua esposa era Dona Michele, uma senhora muito religiosa a quem Brito só via sair de casa para ir à igreja e para levar pedaços de pizza para os porteiros do período noturno.
O casal nunca teve filhos. Fã de Vicente Celestino e Ataulfo Alves, Seu Ciro foi uma influência para que Brito se interessasse por música. A coleção de discos de Seu Ciro era sensacional. Nesse e em outros aspectos, Brito era muito mais influenciado por ele do que por seu pai. Seu Ciro era aposentado e saía de seu apartamento pela manhã para fumar seus cigarros sentado num banco na frente do prédio. Dona Michele não o deixava fumar dentro do apartamento.
Seu Ciro já não tinha tanto cabelo na parte de cima da cabeça, mas também não era muito careca. Havia desistido das tinturas muitos anos antes e isso melhorou muito sua aparência, mesmo com a idade mais avançada. Tinha um bigodinho branco aparado e óculos de Buddy Holly. Era baixinho e troncudo. Setenta e cinco quilos para um metro e sessenta e cinco de altura. Não andava curvado nem tinha um aspecto cansado. A janela do apartamento de Seu Ciro era voltada para os fundos do prédio, de modo que ele não precisava se preocupar com o fato de sua mulher o vigiar de casa.
Quando alguma garota que o agradasse visualmente entrava ou saía do prédio, ele a acompanhava com o olhar e quando ela estivesse próxima, dizia: "Sou um seresteiro da velha guarda, minha filha!" Seu Ciro, assim como Brito, fumava Dunhill. Numa ocasião em que ele cochilou e roncou no banco próximo ao jardim da parte da frente do prédio, um garoto matreiro, sobrinho de Cleitom, substituiu parte do recheio do último cigarro de seu Ciro por maconha.
O pobre velhinho fumeta acordou do cochilo e resmungou ao tirar o último cigarro e jogar fora a caixinha vazia. Teria que ir até a padaria comprar mais cigarros. Ele sempre ficava nervoso quando o maço chegava ao fim. Acendeu o cigarro e nem percebeu o cheiro diferente. Apenas tragava e resmungava palavras incompreensíveis.
Enquanto isso, Brito sem perceber desfrutava de alguma paz, porque naquele momento já tinha feito o que considerava necessário para que começasse a tomar uísque sem ter mais preocupações pelo resto do dia.
Estava livre dos inconvenientes da urgência. Exercitava sua solidão e seu desprendimento social através do piloto automático. Ouvia o disco Argus, do Wishbone Ash.
Sua relação com o pai estava abalada por causa da última briga. Isso acontecia de tempos em tempos. Havia um lado bom nesses períodos, porque caso Britão cometesse alguma trocidade, Brito poderia simplesmente aproveitar o simples fato de ser oposição automática ao fato. Jogaria isso na cara do velho caso fosse necessário ,
Por outro lado, sua reclusão não permitia que sua vizinhança soubesse das divergências com o pai, ou pelo menos das razões das divergências, ainda que elas se resumissem ao comportamento e estilo de vida de Britão.
As brigas não aconteciam o tempo todo porque Brito não as alimentava. Seria burrice fazê-lo. Tentar mudar seu pai seria como querer mudar o resto do mundo.
Britão era a parte mais próxima do resto de um mundo que Brito repudiava. Então ele foi fumar na sua sacada e lá de cima viu Seu Ciro gesticulando no que parecia uma alegre conversa com Guido.
Ambos estavam sentados encostados no muro do hospital em frente ao prédio. Brito desceu para saber o que acontecia. Podia evitar, mas não parecia uma situação normal e ele estava curioso. Desceu rapidamente pela escada achando que até o momento em que chegasse ao térreo a cena já poderia estar desfeita.
Lá embaixo era Cleitom quem estava na portaria. Brito foi novamente chamado de 'pessoa' por Cleitom, mas não se aborreceu porque bem naquele momento que constatou que Seu Ciro e Guido ainda estavam na frente do prédio, sentados do outro lado da rua. Brito rapidamente saiu do prédio e se aproximou, sendo imediatamente saudado por Guido: _ Brito!!! O vovozinho fumou um cigarrinho de carnaval!! - disse Guido.
_ Que doidice é essa? Seu Ciro, o senhor conhece o Guido? - perguntou Brito ao mesmo tempo em que constatava que a roupa de Seu Ciro já estava de tal forma suja que a cena lhe parecia quase inacreditável.
_ É o filho do Britão!!! - gritou Seu Ciro, antes de se acabar numa bela gargalhada.
Capítulo 9
Então Zími contou a Mila Cox que naquele momento Brito em sua lembrança era apenas o filho do Britão, que é um tipo de pessoa que não se enquadra no que se espera de um mundo renovado depois da pandemia.
Pelo que podiam saber através de seu perfil na internet, Brito parecia estar bem e não ter tido qualquer problema com o fato de se manter em isolamento. Estava à beira dos cinquenta anos e provavelmente estava em seu apartamento vendo o mundo em chamas pela televisão, ironizando o fato de que as pessoas votam para isso.
Zími pensava então em como estariam os outros dos quais lembrou para poder situar Brito em seu passado. Provavelmente não os reconheceria na rua, por trás da máscara e do tempo que passou.
Capítulo 10- Ressignificando
Mila Cox estava ouvindo na vitrola uma coletânea de ‘one hit wonders’.
Falou para Zimi que não sabia que Thunderclap Newman era uma banda. Pensava que fosse um cantor solo.
Zimi disse que era adolescente quando comprou esse disco e ficava pensando no que tinha acontecido com cada um daqueles caras que sumiram depois de alcançar um único sucesso antes que ele tivesse nascido.
Comentou também que somente com o advento da internet conseguiu os ver se mexendo nos vídeos. Antes era somente pelas fotos nas capas dos discos.
A irmã Sara Cox trouxe os discos de Zimi para o rancho sem nome porque decidiram que iriam viver ali de acordo com sua ordem natural. Sara tinha uma Variant 76 laramja.
Era naquele carro que viajava, quando a banda Crop Circles (duo composto por Mila Cox no baixo, vocal e efeitos e Zimi na bateria) tinha algum show fora de São Paulo.
A pandemia tinha parado com isso e agora estavam em isolamento social e fazendo novas músicas que agora eram lançadas aos pares em formato de single virtual e vendas do disco físico sob demanda.
Mila conhecia Zimi desde que nasceu, através de sua tia Lola Cox, que tal qual Zimi sempre dizia que alguma coisa muito louca iria acontecer com o mundo para que eles finalmente deixassem de ser vistos como deslocafos e pessimistas.
Lola era herdeira do rancho, que pertencia a seu ex-companheiro Tuco Alomar, que Mila nunca conheceu, sempre ouviu falar e sobre o qual finalmente perguntou a Zimi, que preferiu se concentrar na narrativa de um período específico para que ela soubesse um pouco mais sobre o sujeito.
Capítulo 11- No mundo que não existe mais
São Paulo, 21 de Agosto de 1988.
"Faça um contrato de moradia com ela, Isso não vai ter o mesmo efeito moral de um casamento, mas pelo menos você terá a vantagem de seguir sua vida de uma maneira menos claustrofóbica. Faça alguma coisa para não ter uma sina tão miserável quanto a minha. Tenho dois filhos que só servem pra encher minha privada de merda!" - foi o que Tuco ouviu seu pai, Getúlio Alomar, sentenciar aos berros para Éder, seu irmão mais velho, quando soube da gravidez da namorada deste.
Éder apenas ouvia olhando para baixo e balançando a cabeça negativamente.
Tuco também se chamava Getúlio, mas não gostava do nome, e gostava menos ainda de ser chamado de Getulinho. Convencionou-se então na família Alomar que o caçula seria chamado de Tuco.
Em 1988. Tuco tinha dezesseis anos e Éder, dezenove. Éder havia ingressado no curso de Direito da Puc e estava apenas no segundo semestre quando soube da gravidez de sua namorada, a primeira e única.
Até então os irmãos Alomar haviam dividido o mesmo quarto de quinze metros quadrados, cuja janela era virada para a parede do prédio vizinho. Não bastasse a falta de privacidade para os irmãos, ainda tinham uma vista limitada e desoladora. Havia uma cama principal e uma segunda, mais baixa, que na verdade era um suporte para o colchão, que era puxada debaixo da outra quando iam dormir e empurrada de volta quando acordavam. Os irmãos se revezavam a cada noite no uso de cada uma das camas.
Àquela altura, ter dezesseis anos representava para Tuco duas desgraças ao mesmo tempo: o fato de teoricamente já ter tido tempo de começar com algum sucesso a vida sexual, esportiva, musical, intelectual ou que quer que fosse, embora ainda não tivesse atingido esse retrospecto favorável; além disso ainda tinha um ano e meio de colégio pela frente. A vida era como um trem fantasma que corria descontrolado e com muitas surpresas e descobertas desagradáveis a cada curva.
Tuco queria deixar o cabelo crescer, mas a partir de um determinado ponto era sempre obrigado a cortar. Somente após a morte de seu pai, tempos depois, conseguiu concretizar o projeto, que nunca mais foi abandonado. Tinha cabelos castanhos claros e lisos, e quando estavam em crescimento, antes que fosse obrigado a cortar, jamais os penteava.
Anos mais tarde, olhando em retrospecto, pensava que sua baixa autoestima, sua desesperança e sua falta de perspectivas eram em parte o resultado daquilo que mais tarde ficou conhecido como bullying, que sofrera nos primeiros anos escolares.
Sofrera mais que uns e menos que outros. Seu problema era a timidez e a falta de vontade de se entreter com seus colegas, mas por outro lado sua salvação era o fato de se destacar nos jogos de futebol de salão da educação física, atuando como goleiro. Ninguém queria ser goleiro e normalmente todos de cada time se revezavam na posição.
Tuco era um jogador mediano na linha, e na quarta série começou a se aprimorar como goleiro, tendo mais tempo para jogar do que seus colegas, que eventualmente tinham que sair do jogo para dar lugar a outro. Como goleiro, Tuco tinha lugar garantido nos jogos e muitas vezes era escolhido antes dos outros.
Aperfeiçoou seu posicionamento e acostumou-se com as boladas, e a partir de então, ano após ano, era o melhor goleiro de sua classe, o que lhe agregava certa credibilidade.
Voltando ao bullying, naquela época nada saudosa nem ele próprio podia esperar que um dia aquele tipo de prática cruel viesse a ter um nome, e muito menos que veria campanhas televisivas contra ela. Tuco havia aceitado a situação simplesmente por nunca ter encontrado uma solução para ela. Era algo encarado por quase todos como natural, para que diariamente se provasse algo.
Na adolescência, apesar dos problemas, ele já mantinha algum respeito em seus círculos sociais restritos a quem ele conseguia lidar. Bastava juntar-se a outras pessoas medianas, com boa índole e que não sofressem da necessidade de autoafirmação, como era o caso da maioria dos jovens que conhecia naquela época.
Ainda assim esse círculo privado era bastante vulnerável às pressões externas. Apesar de saberem que o ridículo humano não tinha limites, a condição de jovens praticamente os obrigava a se sujeitarem ao que suas famílias lhe impunham. Eram matriculados em escolas onde professores eram entusiastas de Ivan Lins, num momento da vida em que queriam Twisted Sister e Motörhead.
Sentia-se melhor nos momentos em que podia selecionar suas companhias, ou isolar-se para ouvir algum disco novo. Como se a paciência para suportar as diferenças entre ele e a maioria das pessoas ao seu redor sumisse. Esses momentos pareciam passar tão rapidamente que na volta para a escola ou para alguma outra atividade burocrática Tuco sempre sentia que não estava devidamente recuperado e que a médio prazo essa louca sequência de voltas à parte ruim da vida o destruiria.
Sua família de classe média também não lhe proporcionava tranqüilidade, nem qualquer tipo de sentimento humano que não fosse movido pela missão semanal de ter as contas domésticas pagas. A mensalidade do colégio particular em que Tuco estudava fazia parte dessas despesas custeadas por seu pai. Não houve um só dia desde a mais remota infância até o término do ensino médio em que Tuco não ouvisse seu pai se queixando do dinheiro gasto com a educação formal dos filhos. E para Getúlio isso pesava muito mais do que todas as restrições as quais seus filhos eram submetidos.
Getúlio dizia que era ‘demagogia’ basear-se nos exemplos de famílias que viviam em volta dos Alomar e que indubitavelmente eram mais felizes, independente do carro que tinham na garagem, quando tinham algum. Tuco procurava ir na contramão de tudo o que Getúlio pensava e fazia.
Uma moça chamada Mirna fazia faxina toda terça-feira na casa dos Alomar. Pelas histórias que contava, tinha uma vida até certo ponto sofrida, mas parecia muito mais feliz do que qualquer uma da família do patrão. Morava no Grajaú e sofria uma barbaridade para chegar na Avenida Paulista para trabalhar. Getúlio costumava dizer que o Grajaú era tão longe que tinha outro fuso horário e referia-se a Mirna como ‘bugra’.
Nos primeiros anos escolares Tuco não poderia recorrer ao termo ‘bullying’, mesmo que naquele tempo isso fosse usual.
Não podia nem ao menos conversar sobre a situação, pois seguramente seria chamado de frouxo e covarde e correria o sério risco de ser submetido a desdobramentos ainda mais desagradáveis. Parecia mais viável esperar que aquele tempo passasse ou que algum milagre acontecesse. Às vezes parecia mais lógico reclamar na escola por estar sofrendo ‘bullying’ em casa do que o contrário, se fosse o caso. Em muitos casos presenciados por Tuco na escola, as vítimas tinham ao menos famílias aparentemente tranqüilas. Tinham alguma condição de se recuperarem entre um e outro dia de aula. Isso fazia com que de vez em quando pudessem se rebelar contra quem os ofendia na frente dos outros alunos e com a conivência dos professores.
Falaremos sobre a escola em si nas próximas páginas. Um episódio cuja lembrança nunca se apagou da memória de Tuco aconteceu quando um colega japonês chamado André ouviu de outro, na frente de uma professora e dos demais colegas: ‘Japa, segure me temaque!’
O agressor era chamado de ‘paraguaio’ pelos outros alunos e não queria ser o último da classe no hall dos mais avacalhados e direcionou sua revolta sobre o colega oriental, que abriu a calça, mostrou o pau e disse: ‘Dê uma olhada e veja como o Japão é maior que o Paraguai!’
O japonês foi expulso da escola, mas era bom aluno e conseguiu facilmente uma vaga em outra escola próxima dali, mesmo com o ano letivo em andamento. O episódio citado acima foi o estopim para que finalmente se rebelasse, mas os problemas que enfrentava na escola vinham de anos anteriores.
Como só falava japonês em sua casa, André tinha algumas dificuldades com a fala de algumas palavras em português e se enrolava com palavras com as letras ‘R’ e ‘L’. Era ridicularizado quando dizia ‘escalola’ ao invés de escarola, sempre que perguntado sobre o seu sabor de pizza preferido. Além, é claro das tradicionais piadas sobre orientais terem o pau pequeno.
A vida de Tuco em família e com seu pequeno grupo de amigos em seu prédio e nas redondezas de casa era paralela e quase sem conexões com a vida na escola. Na escola Tuco sofria ainda mais. Para lá ele carregava os traumas familiares e a asfixia da vida doméstica e ali esses dramas eram potencializados.
O caminho inverso também era percorrido, mas na escola os outros jovens pareciam mais descontrolados e sentindo uma necessidade maior de destruir lenta e diariamente a vida dos outros, com os mais perversos modos de humilhação.
Tuco tentava em vão recuperar-se dos traumas de casa enquanto estivesse na escola, e dos traumas da escola enquanto estivesse em casa, como que para reverter a polaridade desses dois ambientes tão devastadores.
Os Alomar moravam no número 157 da Alameda Rio Claro, o Edifício Thaís, no bairro da Bela Vista, região central de São Paulo.
Na infância, Tuco e Éder não tiveram espaço adequado para jogarem futebol, ou correrem pela rua, ou qualquer outra atividade recreativa importante para crianças normais e saudáveis.
Nos fundos do prédio havia uma pequena quadra improvisada onde crianças e pré-adolescentes que não saiam do prédio sem os pais disputavam cada centímetro quadrado.
A poucos metros do prédio em que moravam havia uma padaria, onde Tuco era conhecido por ser filho de Getúlio.
Essa situação limitava ainda mais o restrito mundo de Tuco, pois por causa da vergonha era preciso evitar ao máximo a padaria, estivesse Getúlio lá ou não. Tuco seria associado ao pai em termos de comportamento e mentalidade e isso o deprimia.
Tuco e sua família moravam no nono andar, num apartamento virado para a parte da frente do prédio.
O formato das janelas favoreciam o abrigo das pombas, que muitas vezes passavam noites inteiras nas janelas do prédio, deixando cagalhões épicos nos vidros das janelas e sobre as pastilhas que revestiam toda a parte externa do edifício.
Para Tuco, no entanto, a proximidade com as pessoas de sua idade era mais feliz em sua vizinhança do que na escola. Havia tanta maldade na escola (católica) que o garoto pensava que se Deus existisse, era um bom filho da puta. Ele acreditava mesmo é que alguma força cósmica um dia consertasse as pataquadas humanas. Ele não costumava tocar em assuntos relacionados a alienígenas para não ser chamado de maluco ou ser ridicularizado por quem achava que a Terra era o único lugar em que havia vida.
Suas crenças consistiam no fato de que em algum momento adequado uma intervenção externa aconteceria. Bem no limiar de sua consciência algo lhe dizia que o equilíbrio seria alcançado e que as desgraças que via e vivia ficariam para trás como parte de um processo necessário para que esse tal equilíbrio fizesse ainda mais sentido. Nascido em 1972, Tuco viveu toda sua infância numa São Paulo estranha, violenta, feia e suja. Não tinha contato com tiroteios e chacinas na periferia, mas as crianças da região central vindas da classe média eram o resultado crônico e sintomático da fase pela qual o Brasil passava. Uma época nada saudosa, evidentemente.
Tuco ouvia falar em casa, na rua e na escola sobre crises econômicas intermináveis pelas quais o país passava. Era um estado perene de descontentamento, insegurança, falta de dinheiro. Ele não entendia nada do que os economistas falavam e não se importava com aquilo. Tuco começava a desenvolver a noção de que a primeira coisa a ser mudada com urgência na humanidade tinha muito mais a ver com o comportamento individual das pessoas e seus problemas mais imediatos do que alguma manobra político-econômica de algum governante.
A passividade da massa era para ele um tipo de corrupção ainda pior que a governamental. Todos escravos inúteis. O simples fato de existir um governo já era para Tuco algo que não poderia ser levado a sério. Pessoas dotadas do mínimo de integridade não poderiam levar aquilo a sério. Era difícil entender porque ele próprio conseguia enxergar essas coisas e a maioria das pessoas à sua volta não.
Seus pensamentos então entravam em parafuso, porque não sabia se isso era bom ou ruim. Enxergar algo que parecia óbvio e que os outros não viam podia, em seu imaginário, colocá-lo numa posição privilegiada, mas por outro lado estava submerso num lodo existencial que parecia infinito.
Quando seu irmão mais velho começou a flertar com teorias da conspiração, Tuco entendeu que toda aquela engrenagem que envolvia governantes e governados, com um grande abismo entre eles, era algo com o qual ele não deveria gastar seu tempo de vida.
O povo sofria e gritava gol ao invés de se rebelar de alguma maneira convincente, como largar empregos burocráticos e ter uma vida mais humana num lugar mais verde.
Ele sabia que o país estava realmente enterrado numa desgraça econômica, política e social, mas o que mais o incomodava era a passividade das pessoas ao lidar com isso.
A verdadeira compreensão da estrutura global das relações era algo que estava tão longe da realidade de Tuco, que ele pouco fazia para se manter informado. Não haviam fontes confiáveis, pelo menos ao seu alcance.
Vivia desgostoso por não entender porque tanta gente parecia aceitar e até mesmo se identificar com uma estrutura social que para ele era opressora. Pensava que num mundo tão doente, não seria nada saudável se adaptar a ele tão facilmente.
Vez ou outra lia ou ouvia alguma pessoa mais velha e aparentemente coerente discorrer sobre como o mundo sempre foi uma merda, e Tuco via-se diante de uma batalha perdida. Às vezes, em análises mais otimistas, imaginava a vida como um
jogo no qual cada ser humano, que nascesse sob qualquer circunstância, lugar ou época deveria situar-se e escolher um caminho que o conduzisse a um final que fizesse seu nascimento ter valido a pena
Às vezes pensava que a grande maioria das pessoas não concordava realmente com o que o mundo havia se tornado, apenas aceitavam justamente por não compreenderem.
Como parte da forte manipulação a qual eram submetidos, o fator medo era incorporado às suas vidas, juntamente com a contínua manutenção da ignorância individual, que torna-se coletiva à medida que a humanidade ‘avança’.
O que Tuco não entendia com clareza era como os formadores de opinião da massa conseguiam com tanta facilidade controlar tanta gente ao mesmo tempo.
Essa não compreensão estava ligada não aos métodos usados por esses formadores de opinião, que pareciam até bastante simples e basicamente calcados no parágrafo acima, mas pela passividade com que as massas se deixavam enganar sem qualquer tipo de questionamento, individual ou coletivo.
Na verdade fazia parte do funcionamento da engrenagem desencorajar e destruir qualquer fagulha de questionamento individual para que nunca se tornassem coletivos. A única coisa coletiva que poderia se perpetuar eram em primeiro lugar a ignorância e o medo do novo.
O analfabetismo funcional era um conceito muito curioso e triste para Tuco. Fazia parte de seu cotidiano, especialmente porque vivia numa região muito populosa de São Paulo. Pais, professores, vizinhos.
Muita gente muito burra que sufocava seus questionamentos.
Esse tipo de gente tinha um grande pavor do experimental.
Isso ao longo dos anos fez com que Tuco pensasse em como poderia ‘doar’ sua vida a algo experimental e menos palatável, seja lá o que fosse ou o que esse conceito ainda vago em sua cabeça significasse.
A princípio bastava ser uma pessoa completamente diferente do que seu pai era, fazia e representava.
Capítulo 12- No Brain No Pain
O grupo de amigos que Tuco tinha na vizinhança e na escola não se misturava. Pouquíssimos eram os casos de amigos que fossem vizinhos realmente próximos a Tuco e que estudassem no Colégio Imaculada Conceição, também conhecido como Imaco. A escola ficava situada na Bela Vista, mais exatamente na Rua Cincinato Braga, número 500. Mais tarde, em 1989, o colégio foi vendido pelos capuchinhos, depois de mais de setenta anos de funcionamento.
Por anos aquela época de vida escolar ficou documentada pela família apenas num álbum de fotos da primeira comunhão dos irmãos Alomar, álbum esse quase esquecido numa gaveta de Mariana, a mãe de Tuco. Os irmãos Alomar nunca o encontraram, caso contrário o teriam destruído. Os traumas causados nos irmãos pela comoção religiosa gratuita daquele evento nunca os deixaram em paz.
Hoje uma grande academia de ginástica funciona no endereço anteriormente ocupado pelo colégio, mas a igreja naturalmente ainda está lá, cercada por grades que não existiam nos anos 80.
Naquela época, mendigos mitológicos da Bela Vista passavam os dias pedindo esmolas jogados na porta da igreja sem serem incomodados.
Eram mendigos gordos, sempre rodeados de pratos de papel alumínio com comida e garrafas de bebida. Alguns deles viveram muitos anos além daquilo, pedindo esmolas em outros pontos do bairro como as estações de metrô da Paulista que só surgiram nos anos noventa.
Do ponto de vista imobiliário, a localização do colégio era boa. Ficava próximo às avenidas Paulista e Brigadeiro Luís Antônio. Não era das instituições mais famosas do cenário educacional.
Era uma escola católica que encerrou as atividades em 1989, ano em que Tuco cursou o terceiro ano do ensino médio. Ele considerava isso um grande azar, porque naquele ano a escola já havia comunicado os alunos e seus pais sobre o fim das atividades a partir do ano seguinte.
Tuco teria gostado de estudar numa escola mais liberal e sem envolvimento religioso, algo que para seus pais jamais foi sequer cogitado.
Os vizinhos de Tuco que estudavam em colégios mais tradicionais e caros gabavam-se, cada um defendendo suas escolas no que dizia respeito à tradição e falando todo tipo de absurdo sobre a qualidade de ensino do lugar.
Tuco apenas sonhava em se livrar da escola, de preferência concluindo o ensino médio o quanto antes.
Até que finalmente conseguisse terminar o colégio, Tuco sofreu uma barbaridade com recuperações no final do ano, férias abreviadas e muita tensão familiar. Da quinta série até o terceiro colegial Tuco pegou recuperação em pelo menos duas matérias, todos os anos. Fazia as últimas provas em dezembro, num calor desgraçado e passava de ano na pia das almas, com as notas sempre no limite.
Era ameaçado por seus pais de ser transferido para o Colégio Rodrigues Alves, na Paulista, próximo do Imaco, caso fosse reprovado. Era um colégio estadual, e antes que sofresse uma reforma nos anos 90, via-se ratos entrando e saindo, principalmente nos domingos, quando ficava fechado.
Mariana vivia dizendo a Tuco que por causa de seu baixo rendimento escolar ele se tornaria entregador de compras no Jumbo Eletro, o mercado que ficava ao lado do Imaco.
De fato parecia um trabalho bastante árduo. Os entregadores eram bastante jovens e franzinos e os carrinhos eram grandes, pesados e difíceis de conduzir, mas Tuco preferia lidar com essa previsão de sua mãe como sendo uma agressão desesperada, praticada não porque realmente acreditava que seu filho fosse cumprir aquele destino, mas porque ela já tinha arruinado a própria vida.
Tuco via em alguns daqueles entregadores muito mais alegria do que sua família jamais teve desde que foi constituída. Mais tarde o Jumbo virou o supermercado Extra, mais ou menos na época em que o Imaco virou academia.
Na mesma época Tuco costumava ouvir seu pai dizer que ele seria tão fracassado que quando se tornasse adulto tomaria banho com sabão de coco e limparia a bunda com sabugos de milho. Suas crises de identidade juvenil eram agravadas, mesmo que soubessem que seus pais já tinham se consagrado como fracassados.
Durante os anos de ensino fundamental e médio Tuco de vez em quando cabulava aula no parque do Ibirapuera.
Isso sempre lhe causava problemas a partir do dia seguinte, porque comentários sobre sua ausência na escola chegavam até seus pais, por intermédio de algum funcionário da secretaria da escola, que às vezes ligava para a casa do aluno ausente para saber o porque da falta. Em outras vezes Mariana ficava sabendo através das mães de outros alunos.
Na primeira vez que Tuco foi ao Ibirapuera para cabular aula tinha onze anos e cursava a quinta série.
Escolheu uma terça de manhã em que tinha um trabalho a ser entregue e que ele nem ao menos havia começado a fazer. Eram várias páginas de papel almaço a serem escritas sem rasuras. Pior era quando esses trabalhos eram em grupo e ele não podia faltar.
Ele ainda não fumava cigarros nem maconha, nunca tinha ido a pé de sua casa até o Ibirapuera mas estimava que o tempo gasto na ida e na volta seria longo o
bastante para que não precisasse passar tantas horas no parque. Levou apenas um pacote de bolachas de chocolate recheadas. Desceu pela Brigadeiro Luís Antônio até o ponto que o parque podia ser avistado.
Dentro do parque caminhava e observava garotas andando de bicicleta ou patins. Sua aula terminaria uma hora da tarde, de modo que ele deixaria o parque por volta do meio dia, já que no caminho de volta enfrentaria uma grande subida. Mas o tempo custou a passar e depois de se envolver num jogo de futebol de salão onde permaneceu por uma hora, sentiu cansaço e preocupação. Ainda faltavam vinte minutos para as onze da manhã. Lavou-se na medida do possível num banheiro do parque e por sorte tinha levado uma camiseta reserva na mochila. Matou tempo deitado debaixo de uma árvore e partiu de volta para casa. Não era uma manhã desagradável nem divertida, mas melhor do que muitas outras.
O caminho de volta foi penoso. Fazia um calor desgraçado, suas pernas doíam e ele não sabia se alguém da escola havia ligado para sua casa para comunicar sua falta. Chegaria exausto em casa e subiria pelo elevador com medo de que sua mãe já estivesse sabendo que ele não foi à escola. Mas não foi o que aconteceu. Não daquela vez. Passou a tarde fazendo o trabalho para entregar no dia seguinte e pensando que havia cometido a maior contravenção de sua vida até ali, salvo as vezes em que roubava dinheiro da carteira do pai.
Pensar que ainda estava na quinta série e que tinha seis anos de escola pela frente, sem contar um eventual ingresso na faculdade depois disso, era algo que o fazia sofrer. Aquela saga duraria anos. Em ocasiões futuras, quando já fumava cigarros e maconha, cabulava aula em grupo, e em algumas foi descoberto, entregue por algum cagueta. Numa ocasião Tuco foi caguetado por uma vizinha do prédio, que o viu em horário de aula no fundo do Masp fumando maconha em meio a hippies que faziam malabarismo ali. Essas pessoas para as quais Tuco gostaria de ser invisível e seu velho coxismo estavam sempre assombrando Tuco.
As excursões organizadas pela escola eram inacreditáveis, porque ali as professoras perdiam completamente o controle sobre os alunos e o bullying e as drogas corriam soltos. Geralmente iam ao zoológico, ao Playcenter ou ao Museu do Ipiranga. Eram distribuídos toddynhos no ônibus e quando chegavam ao destino os alunos mais marginais saíam de perto do grupo para fumarem maconha, cheirarem cocaína, tomarem cachaça ou bafarem cola.
Além do mais completo desinteresse pelos estudos, no Imaculada Conceição Tuco desenvolveu uma completa aversão à religião, especialmente ao catolicismo. Teve problemas por causa disso, pois a partir dos 15 anos de idade, quando já estava no ensino médio, começou a se declarar ateu, o que era inconcebível naquele ambiente.
Em 1987, quando Tuco cursava o primeiro colegial, a mãe de um de seus colegas flagrou o professor de ensino religioso alugando fitas de vídeo eróticas na locadora 2001, localizada na Avenida Paulista, desencadeando uma crise que se não teve nada a ver com o final definitivo das atividades da escola, pelo menos serviu para que alguns alunos trocassem de escola naquele momento..
Tuco ficava muito intrigado por parecer o único aluno ali, ou um dos poucos que não se sentia à vontade. Naturalmente as razões pelas quais os outros se sentiam à vontade eram muito erradas. Não que os outros gostassem da escola.
Os que realmente gostavam da escola eram poucos, e os demais não gostariam de nenhuma outra escola como muitas crianças não gostam. Mas pareciam aceitar com certa naturalidade a aparente falta de escolha.
O que Tuco sentia era diferente. Era um tipo de repulsa que o fazia refletir sobre problemas que tinha em outros setores da vida. Naquela época os únicos outros setores de sua vida eram o familiar e seu pequeno grupo de amigos, geralmente vizinhos. Antes disso, quando tinha 10 anos e cursava a quarta série do ensino fundamental e se preparava para a primeira comunhão, viu um padre interromper uma das aulas de catecismo para chamar a atenção de uma garota inquieta.
Era uma garota negra a quem Tuco conhecia desde a primeira série. O padre interrompeu a aula quando a garota falava paralelamente a ele, chamou-a à frente da sala. Então levantou-se, esfregou a ponta do dedo indicador no fundo de uma caixa de giz, desenhou com o dedo uma cruz banca na testa da garota e a mandou voltar calada para sua cadeira.
Aquela cena chocou Tuco de uma maneira muito profunda, principalmente porque em casa ele já convivia com seu pai racista. Os adultos com quem convivia se afundavam cada vez mais ao tentar bizarramente controlar o que costumavam chamar de ‘impulsos perigosos da juventude’.
Mais tarde, na sexta série e com 12 anos de idade Tuco começou a ser ameaçado por um sujeito do colegial, que já tinha até barba, era maior de idade e ainda não tinha se livrado da escola porque era repetente. Tuco era acusado por ele de bulinar sua irmã mais nova numa festa promovida pela escola, festa essa em que ele nem ao menos estava presente.
A tal garota era de sua sala e também tinha 12 anos. Era uma ruivinha bonita, meiga e boa aluna, mas que nem ao menos chamava de verdade a atenção a atenção de Tuco.
Haviam outras garotas que para ele pareciam mais interessantes, mais contraventoras, daquelas que provocavam dúvidas sobre suas virgindades e coisas do tipo, eram pegas fumando escondidas por algum bedel e que naturalmente só davam atenção aos caras mais velhos do colegial.
Eram garotas um pouco mais velhas, que haviam repetido de ano. O tipo de garota que ridicularizava os garotos mais novos e os da mesma idade, que só queriam jogar futebol no recreio e que também se ridicularizavam entre si.
Aliás essa era a tônica daquela geração: ridicularizar ao máximo o próximo, para não correr o risco de ser considerado o pior, ou o mais fraco, ou o menos popular da escola, como se houvesse uma tabela de classificação com a pontuação de cada aluno nesses quesitos.
Os professores do Imaco faziam vistas grossas a esse tipo de atitude. Eram sempre os mesmos alunos humilhando outros que também eram sempre os mesmos a serem humilhados. Tuco não era o mais forte, nem o mais bonito e nem o mais popular, e safava-se a duras penas desse pesadelo diário.
Décadas depois, com o surgimento e popularização das redes sociais Tuco pode comprovar em grupos virtuais relacionados ao nada saudoso Imaco que os mais populares alunos da escola transformaram-se no que há de pior na espécie humana.
O tipo de gente que entre outras bizarrices, postavam fotos em que seguravam copos de cerveja e montaram famílias parecidas com as de seus pais. Destinos para os quais aqueles infelizes foram pré-programados sem jamais terem se dado conta disso.
Depois de décadas do fechamento da escola, as professoras que ainda estavam vivas publicavam para os poucos alunos interessados fotos de seus antigos diários de classe dos anos oitenta, com o nome completo dos alunos e com suas ridículas fotos dos anos oitenta, de modo que aqueles que até já tinham esquecido que um dia estiveram no Imaco fossem procurados pelos que viam essas publicações.
Mas a história daquela escola e especialmente seu fim foram tão melancólicos que nenhum desdobramento relevante se originou dessas investidas. Alguns encontros em pizzarias
foram o ápice das homenagens ao passado. O próprio Tuco recebeu mensagens de outros ex-alunos o convidando para esses encontros.
Os alunos se conheciam pelo nome e sobrenome, e nas ocasiões em que Tuco foi abordado virtualmente para participar dos encontroa, verificava a lista de pessoas que haviam confirmado presença. Lembrou de vários nomes, e vagamente das feições daquelas pessoas. Então olhava os perfis cheios de fotos e pensava que em comparação aos outros, até que ele próprio estava bem.
Lembrou-se amargamente de como as professoras ridicularizavam certos alunos por causa de respostas absurdas nas provas. Não apenas deixavam de coibir o bullying como o estimulavam. Em seus perfis nas redes sociais despejavam nostalgia de um tempo que Tuco abominava. Um tempo em que seus professores agiam de um modo em que misturavam incompetência com má fé.
Capítulo 13- Trouble Pie (Memories can’t wait)
Corria o ano de 1984 e mesmo sendo jovem demais para entender a fundo questões políticas (e mais do que isso, sentindo que não havia mesmo o que entender no que a mídia mostrava e o povo acreditava), Tuco pôde presenciar um dos momentos mais bizarros da história política do país.
O movimento das ‘Diretas Já’ unia estranhamente pessoas que tinham passados políticos e ideológicos completamente distintos. Emergia uma esperança moribunda do povo de que algum milagre pudesse tirar o país da limbose em que estava afogado. As mesmas famílias de políticos continuariam se perpetuando no sempre triste cenário político brasileiro.
Nada poderia ser mais ridículo do que pessoas adultas pensando que a ditadura tinha chegado ao fim. Uma profunda ferida geracional estava aberta e entregue ao cuidado dos civis.
O imaginário nacional estava entorpecido por mais de duas décadas de um governo militar que destruiu pelo menos duas gerações de brasileiros. Mudou apenas o fato dessas pessoas votarem sempre nos mesmos políticos escrotos e se tornarem cornos eleitorais. Ano após ano o Brasil reestrearia apenas em março, depois de muita histeria coletiva e gravidezes indesejadas.
O pior ainda estava por vir. O país das piadas prontas tornaria-se pioneiro num tipo de apuração de votos no mínimo suspeito. Ao longo desse processo de ‘redemocratização’ as urnas eletrônicas fariam com que misteriosamente um país politicamente imundo onde nada funciona direito, o processo eleitoral se tornasse o mais moderno do mundo.
Uma minoria quase irrisória da população conseguiu enxergar o quanto era ridículo comparecer à ‘festa da democracia’ e passou a aproveitar o dia da eleição para atividades mais proveitosas, enquanto o resto da massa votava, urinava na rua e ia atrás do trio elétrico.
Os eleitos já assumiam suas funções como pequenas peças defeituosas na mesma engrenagem sinistra de sempre. O povo continuaria pagando impostos e financiando o verdadeiro crime organizado.
Mas desde 1984 bastava para Tuco saber que ainda haveria um governo para que ele não nutrisse qualquer interesse por política partidária. Lidar com as pessoas
à sua volta e com tudo o que isso representava já era uma atividade política que lhe ocupava os dias. Basicamente todas as pessoas com quem Tuco convivia eram disfuncionais. As questões político-partidárias ensinadas na escola o faziam pensar em como os professores podiam ser pessoas tão bisonhas. Pensar que aqueles infelizes tinham como missão fazer dele um discípulo de suas ideologias desesperava Tuco, que não via em seus colegas de escola nem a mais remota resistência contra aquela situação.
Olhando em retrospecto, aquela era uma época em que adultos de trinta anos pareciam incrivelmente velhos se comparados ao que Tuco e algumas outras pessoas de sua geração se tornariam quando tivessem quarenta ou até mesmo cinquenta anos. No ano anterior, 1983, o Van Halen e o Kiss vieram tocar no Brasil e felizmente deixaram algumas marcas profundas.
Pelo menos no caso do Van Halen, uma grande banda de rock chegava ao país no auge, encontrando um país sem qualquer know how para eventos desse porte. Mas foi o Kiss quem proporcionou na vida escolar de Tuco seu momento mais bizarro e que fez sua vida começar a tomar outro rumo.
T uco tinha apenas onze anos na época e a banda lhe chamava a atenção visual e sonoramente. Se ele e seus amigos não tinham qualquer esperança de ir ao show, ao menos a presença da banda no país dava o que falar entre jovens estudantes e na mídia, já que mais vídeos do Kiss eram exibidos na TV, ainda que em raros programas dedicados à música, e em revistas oportunistas traziam posters.
A parte bizarra da história começou num dia em que a aula de ensino religioso foi toda dedicada a convencer os alunos a não irem ao show e não comprarem os discos e não ouvir a banda em hipótese alguma.
Aquilo era como pedir a um garoto confuso de onze anos que tampasse sua única válvula de escape e se tornasse para sempre um morto vivo que caso viesse a ser um adulto ‘bem sucedido’ passaria a vida trabalhando como gerente de banco, ou advogado, ou cirurgião.
O ápice da bizarrice foi atingido quando na mesma semana um bedel interrompeu uma aula para comunicar que as freiras falariam aos alunos na quadra da escola. Todos alunos da primeira à quarta série reuniram-se diante de um pequeno palco improvisado na quadra poliesportiva e enquanto um funcionário da escola tentava fazer com que o microfone funcionasse, o pandemônio infantil estava armado.
Pouco importava para cada uma daqueles crianças o que havia a ser dito pelas freiras. O importante era a aula interrompida. Eis que quando o microfone foi ajustado e passado para a mão de uma das freiras, que histericamente tentava controlar centenas de crianças, o tal funcionário pegou um disco da mão de outra feira e começou a olhar para ele de maneira entusiasmada e ao mesmo tempo surpreso.
Era um exemplar de ‘Love Gun’, do Kiss. Percebendo que aquilo chamou a atenção de muitas das crianças, que subitamente reduziram em oitenta por cento o barulho e a baderna que faziam, o sujeito mostrou a capa do disco com uma das mãos, enquanto a outra fazia os sinal dos chifrinhos.
Aquela cena levou a criançada ao delírio e então a freira que empunhava o microfone gritava loucamente para que as crianças fizessem silêncio. Foram necessários mais 10 minutos para que a infeliz conseguisse começar a falar. Logo que começou, tomou o disco da mão do funcionário e protagonizou algo que nunca mais abandonou a memória de Tuco, e provavelmente de vários outros garotos presentes.
A freira citou todos os boatos ridículos que circulavam sobre o Kiss; desde o suposto significado do nome da banda (a lenda segundo a qual KISS seria uma sigla que significava Kids in Satan’s Service) até a lenda que eles pisoteavam dezenas de pintinhos sobre o palco. A última frase dita pela freira antes de anunciar que a palestra estava encerrada foi: ‘Eles tem conta com o cão!’.
Aos onze anos Tuco presenciava uma cruzada moral baseada principalmente na falta de informação e na mais completa falta de senso de ridículo. O mais irônico e contraditório dessa história é o fato de Tuco ter aprendido a gostar de Rock na escola. Antes disso o professor de ensino religioso levava fitas K7 com gravações de MPB da época e algumas mais antigas. Tuco não se identificava com aquilo desde o começo, e por achar perda de tempo argumentar com o professor sobre os gostos musicais individuais, considerava que aquilo era apenas uma entre tantas partes chatas e inúteis da vida escolar.
Era triste e constrangedor ouvir as análises do professor sobre as ‘mensagens’ que aquelas músicas traziam. As músicas tristes não diziam nada, pois geralmente falavam sobre o quanto a ditadura censurava os artistas, sendo que o próprio professor veio a censurar uma banda de rock. E as músicas alegres diziam menos ainda, porque Tuco tinha que ir para a escola cedo e fazer lição de casa a tarde, o que definitivamente não fazia dele uma pessoa feliz ou otimista.
Naturalmente outros professores nutriam aquele sentimento nacionalista burro e estéril, que deixavam Tuco enojado. Era difícil para crianças ou préadolescentes daquela época descobrirem se as múmias do AI-5 eram ou não piores do que os professores esquerdóides, que se diziam defensores da liberdade, mas que eram inacreditavelmente reacionários e autoritários, além de serem fãs de Geraldo Vandré e Milton Nascimento (a quem Tuco se referia como Milton Falecimento). Tuco odiava MPB de maneira visceral. Aquelas rodas de violão com hippies cantando `Travessia’ em acampamentos lhe dava calafrios.
Quando encontrava seus amigos nos fins de semana ouvia seus amigos falando sobre as opiniões de seus pais direitosos que tinham medo do Brasil tornar-se socialista.
Naquele momento, nada para ele podia ser mais valioso culturalmente do que músicas ou artistas que falassem mal de escolas, professores e vida familiar. Não importava o país de origem desses artistas. Tuco pensava em si como um terráqueo, não como brasileiro. Os dicionários de inglês usados na escola tinham essa maravilhosa utilidade, a de possibilitar a tradução de algumas letras de música.
No que dizia respeito à sociabilidade, ao longo de sua vida escolar Tuco se sentia esmagado entre aqueles que queriam vê-lo humilhado diante dos colegas de classe, como o cara mais velho que o ameaçava, e as patrulhas politicamente chatas, as quais ele tinha verdadeiro pavor. De qualquer maneira esses dois grupos eram no fim das contas uma só massa homogênea de jovens teleguiados.
Quando Tuco estava na oitava série ouviu uma conversa entre sua mãe e seu irmão. Éder estava no terceiro colegial, e ainda que pretendesse fazer alguma faculdade, sentia alívio e ansiedade por estar prestes a concluir o ensino médio. Já considerava que isso era um feito notável. Mariana havia perguntado o porque de Éder não estar estudando para uma prova de história que teria na manhã seguinte. Éder lhe respondeu:
“Não há nada para estudar em história, pois se trata da história oficial, própria para as salas de aula, e portanto mentirosa. Reduz acontecimentos complexos a símbolos. A verdadeira causa para a desgraça que nossa espécie vive hoje é a história verdadeira e secreta. A essa história não temos nem jamais teremos acesso, principalmente na escola ou na frente da televisão.”
Capítulo 14- April Fool (Even Today!)
Naquele momento de descontrole de seu pai durante a conversa com Éder sobre a gravidez de sua namorada, Tuco entendeu que o tal contrato de moradia a que seu pai se referia era aplicado por ele à sua família também, desde que foi constituída, mesmo com a formalidade do casamento. Seu pai nunca havia tentado ocultar esse seu conceito de família, apenas nunca tinha usado aquele termo antes. Contrato de moradia!
Tuco não almejava a glória nem os holofotes aos dezesseis anos. Para ele bastaria escapar de alguma forma da triste vala comum a qual a maioria das pessoas próximas estavam invariavelmente condenadas e não pareciam se importar, ou pareciam não se dar conta. Sabia que tinha mais conhecimento e consciência do que muitas pessoas, mas também tinha menos que outras.
Tinha uma desprezo significativo pelos que tinham menos conhecimento e consciência que ele, ao mesmo tempo que queria que o mundo se desintegrasse e varresse a consciência dos que sabiam mais. Enchia-lhe de pavor a idéia de permanecer para sempre refém da sórdida burocracia que tanto o oprimia.
Esperança para ele significava poder atingir a vida adulta negando com muito mais veemência os valores falidos aos quais ele foi submetido e já negava na infância e na adolescência. Ele ouvia a palavra ‘esperança’ ser dita com muita freqüência, mas raramente com uma conotação que lhe convencesse. Intimamente Tuco sempre guiou-se pela consciência de suas limitações e pelo senso de superação necessário para fazer com que cada dia valesse a pena. E cada dia começava de maneira penosa, quando tinha que levantar-se e ver que seu pai tinha acabado de entrar no banheiro para fazer a barba e tomar banho e que não teria pressa para sair. Era preciso fazer com que os dias não terminassem tão deprimentes como começavam.
Mas Tuco podia ver com sinceridade a beleza de ser um sujeito mediano que se mantinha longe do lodo social em que vivia. Havia, entretanto, um sentimento íntimo que o fazia saber que não era uma pessoa convencional, ou que pelo menos o faria deixar de ser convencional quando atingisse a vida adulta. Quando esse momento finalmente chegasse, Tuco poderia se livrar de toda a ruindade burguesa de seu pai. Às vezes Tuco pensava que sua família era uma escola que ensinava de maneira sintética aquilo que ele não poderia se tornar como pessoa.
Ele temia que a chegada da vida adulta fosse um momento tardio para tentar a libertação. Achava que se arrumasse um emprego num banco seria um escravo para o resto da vida. Liberdade significava para Tuco não precisar buscar fora de si alguém que resolvesse seus problemas.
Aos dezesseis anos seu maior problema era ter um contrato de moradia com seu pai. Aquilo representava um rompimento com sua inocência no que dizia respeito a sua família, mas Tuco não reclamaria do velho Getúlio; aguentaria o modo grosseiro como todos eram tratados por ele e então continuaria vivendo no mesmo apartamento. Diariamente seu pai tecia comentários terrivelmente preconceituosos sobre a composição étnica do povo brasileiro, especialmente contra negros, o que era bastante constrangedor para Tuco, que àquela altura já vivia uma proximidade intensa com todo tipo de gente, pelo simples fato de viver num bairro super populoso.
Situada entre o centro antigo da cidade e a Avenida Paulista, a Bela Vista era um eixo poderosamente corrompido pela proximidade entre ricos e pobres. Em alguns lugares isso poderia ser um fator de comunhão entre classes sociais, mas não ali.
“Aqui na Bela Vista a qualidade humana é baixa demais! Esse povo ribeirinho me tira do sério! Mamelucos! Essa massa anônima, passiva, currada. Rebanho gripado, machucado, teleguiado! Quando formam filas ficam um pouco menos deselegantes. Deve ser porque eles adoram formar filas! Na época em que eu comprei esse apartamento o bairro ainda não era assim! Só não mudo agora porque fui astuto na parte financeira da coisa e essa porra está valendo muito mais do que quando eu comprei, e ainda vai valorizar mais! Um dia eu vendo e faço minha independência financeira! Eu queria viver num mundo eugênio! Toda essa afro-brasilidade vai me enlouquecer! Infelizmente o Brasil inteiro é assim! É uma colônia agrária lusoafricana!” – era o que geralmente a família de Tuco e os vizinhos ouviam daquele homem em discursos histéricos e inflamados.
Getúlio era advogado, e dos bons, pelo menos no que dizia respeito ao conhecimento da legislação e na habilidade para tirar dela argumentos que o favorecessem. Não se importava com a ética. Para ele bastava ter o respaldo da lei.
Liquidava seus oponentes nos tribunais na maior parte das vezes, mas quando perdia uma causa ficava furioso por dias. Era especialista na área de família, o que para seus filhos era uma contradição incrível. Sua habilidade, conhecimento e experiência na profissão não rivalizavam com suas qualidades humanas. Um sujeito de feitio intratável, destruído espiritualmente e com o resto de suas forças cegamente voltadas para obrigações civis tão débeis quanto seus discursos. É verdade que ele tinha alguns dramas de consciência, mas eram poucos e passavam logo.
Trabalhava num escritório de advocacia no bairro da Lapa e na ida para o trabalho enfrentava pela o trânsito das Avenidas Paulista, Doutor Arnaldo e Heitor Penteado. No fim da tarde o trânsito no sentido contrário parecia ainda pior, o que o deixava transtornado e fazia com que seus filhos e sua mulher sempre torcessem para que ele demorasse o máximo possível para chegar em casa.
Em dias em que ganhava alguma ação para seus clientes chegava com euforia interior, que não era dividida com seus filhos e sua mulher. Ficava ao telefone falando com colegas de trabalho e gargalhando alto. Quando perdia não jantava em casa. Chegava por volta da meia noite, quando Tuco e Éder já tinham se recolhido, mas o ouviam entrar. Nos dias comuns chegava entre sete e meia e oito horas da noite. Invariavelmente entrava rápido, sem dizer uma só palavra, carregando sua pasta para dentro do quarto, onde ficava trancado sozinho por cerca de trinta minutos. Depois jantava sozinho na mesa da sala. Comia salada de rabanetes e tomates, antes de um bife e arroz grego.
Getúlio tinha então quarenta e nove anos, um metro e setenta e oito de altura e naquela fase da vida estava com cento e dez quilos. Uma grande barriga projetava-se acima da cintura relativamente fina. Suas pernas também eram finas. As laterais da cabeça eram cobertas por cabelos brancos e curtos e o topo ostentava uma franja lisa e de cor cinzenta, que cobriam parte da testa e não conseguiam disfarçar as entradas profundas. Usava quase exclusivamente camisas pólo, que em diversas cores dominavam suas gavetas.
Tinha seis graus de miopia e ia à loucura sempre que seus óculos sumiam de seu alcance tátil e ele não conseguia encontrá-los, especialmente quando cochilava no sofá da sala e os largava em qualquer suporte que estivesse ao seu redor.
Muitas vezes os óculos sumiam porque Éder os escondia antes de tentar roubar algum dinheiro da carteira de Getúlio enquanto ele dormia. Ele acordava sem enxergar nada e de tão furioso e descontrolado que ficava antes de achar os óculos, poucas vezes percebia que tinha sido roubado enquanto dormia.
Não fosse pela cegueira de Getúlio, seus filhos teriam sido flagrados algumas vezes com a mão dentro de sua carteira enquanto separavam alguma cédula que julgavam não fazer falta ao pai. Quase sempre Getúlio se dava conta dos roubos, mas a falta de provas efetivas fazia com que toda a família fosse punida com seus gritos. O resto da família Alomar não podia mais controlar esse tipo de ação por parte de Getúlio. Parecia estúpido demais da parte dele se expor tanto diante da vizinhança, mas não havia meios de convencê-lo disso. Se Getúlio fosse mais discreto e mais fino a vida naquele bairro teria mais qualidade. Seria possível para os outros Alomar andar por ali sem que fossem associados aos gritos racistas de Getúlio.
Tuco achava que a fúria de Getúlio contra o povo da Bela Vista era mal direcionada. Apesar de odiar a brasilidade enlatada que tomava conta do bairro, da cidade e do resto do país, Tuco lembrava-se sempre do que seu irmão havia dito à sua mãe a respeito da verdadeira história mundial que era a causa do mundo arruinado em que viviam. A programação televisiva tinha um caráter de oficialidade que fazia a massa acreditar em tudo o que ali era exibido.
Para Tuco já não havia mais qualquer chance de fazer com que esse domínio retrocedesse. Seria preciso fazer algo através de ações individuais que em seu caso certamente seriam massacradas.
No fundo, todos na família tinham medo de serem expulsos de casa ao tentar controlar as loucuras de Getúlio. Os Alomar podiam ver durante as noites os mendigos da Bela Vista pela janela transitando pelos arredores, quando já não havia mais trânsito nem barulho naquele bairro que é um pandemônio durante o dia e não parecia tentador para qualquer um deles cumprir esse destino. Enquanto a cidade repousava, um ou outro mendigo vagava enrolado num cobertor arrastando um pedaço de papelão para se acomodar mais adiante.
Os Alomar sabiam que toda liberdade pressupõe riscos, e a cada dia abriam mão dessa liberdade em troca da falsa segurança e da infelicidade estável. Com toda a truculência de suas leis e padrões, a casa da família Alomar ainda parecia ser um lugar seguro.
Não havia diálogo nem convivência saudável com Getúlio. Ele era sempre inconveniente e ninguém da família ficava à vontade quando ele estava por perto. Tê-lo por perto podia significar algo mais aflitivo do que arranhar um prato com o garfo ou as unhas num quadro negro. Tuco desenvolveu parte de sua antissociabilidade quando viu-se obrigado a alertar seus amigos da vizinhança a não visitá-lo em casa. A cada vez que isso acontecia, seus amigos podiam ver Getúlio roncando no sofá vestindo seu short adidas dos anos oitenta sem cueca e com os bagos expostos. Ou então encontravam Getúlio acordado fazendo grosserias. Situações como essa se sucederam por anos até se tornarem mais intoleráveis do que a reclusão.
Embora cada um dos Alomar, inclusive Getúlio, fosse capaz de assumir uma vida um pouco mais franciscana em troca de um pouco mais de felicidade, nenhum deles parecia ter a clareza de pensamento suficiente para buscar a libertação. Seria preciso romper com elos familiares que por questões ‘morais’ eram intocados, e até mesmo considerados intocáveis.
Não havia por parte deles qualquer sentimento de débito ou gratidão para com Getúlio. Ele era penas o que se convencionou chamar de ‘pai de família’. Cada um podia libertar-se facilmente, mas a força da inércia imperava entre os Alomar. Havia casa e comida, e o descontrole de Getúlio era o preço a ser pago.
Era um acordo feito com palavras não ditas, e o pagamento era feito de parte a parte diariamente. Na cabeça de Tuco, se por alguma disfunção ideal do destino cada um dos Alomar pudesse começar a vida novamente, também não haveria necessidade de qualquer acerto de contas pelo passado em comum.
Ali nunca houve um lar. Só um apartamento mobiliado de forma burocrática e nada funcional. Na sala, duas cristaleiras inúteis roubavam o que seria um bom espaço útil, ainda que fosse usado somente para transitar pela sala.
Nas cristaleiras jaziam copos e taças que Getúlio e Mariana ganharam em seu casamento e jamais usaram. Havia uma estante com um aparelho de som que entrou em desuso e alguns discos de vinil com as capas arruinadas. Somado a isso havia o fato de os títulos dos discos não serem dignos nem mesmo das prateleiras de promoções de um real nas lojas que ainda existiam.
Era sempre conveniente que o deslocamento fosse rápido por ali, seja em direção aos quartos, à cozinha ou à porta da saída. Apenas Getúlio utilizava a sala como área útil naquele apartamento.
Ele não proibia que a mulher e os filhos a usassem de maneira semelhante, mas havia tanta certeza por parte deles de que Getúlio não se conteria com a presença de algum deles por perto, que preferiam deixá-lo sozinho ali. Getúlio haveria de interagir de maneira rude, mesmo diante da mais discreta presença de algum dos familiares diretos.
Era triste vê-lo jogado no sofá, com a almofada por baixo dele deslocada da sua posição original, enquanto ele assistia alguma trocidade na televisão ou dormia com a TV ligada. Quando dormia ali, tinha um sono agitado, doentio, paranóico. Falava, roncava e se contorcia. Entre roncos e palavras incompreensíveis jorravam xingamentos racistas desconexos. Até nos sonhos aquele homem vivia atormentado. Quando estava acordado alternava sua atenção entre a TV e o jornal. Durante as leituras diárias repetia as mesmas palavras ácidas direcionadas à sua visão de mundo. “Precisamos de bons inseticidas sociais!”, repetia quase diariamente.
A mãe de Tuco, Mariana, apenas olhava tristemente para o marido quando ele finalizou a frase sobre o contrato de moradia do filho mais velho, e aquele olhar revelava uma mistura de agonia apática e um estranho tipo de medo. Um olhar galináceo, perdido. Como sempre, não havia revolta aparente nela e isso deu um nó na cabeça de Tuco. Ele não podia conceber a idéia de uma mulher aceitar ser humilhada de forma tão passiva, sem ao menos ensaiar alguma resposta. Apenas olhava, triste e entregue.
Isso comprovava o fato de que Mariana já tinha consciência de que o tal contrato familiar era o alicerce de seu próprio casamento farsesco. Tuco tentava se consolar pensando que esses problemas familiares podiam fazer dele alguém completamente diferente de seus pais. Poderia fugir desse destino trevoso, ainda que naquele momento não soubesse exatamente como.
Mariana tinha então 46 anos mas aparentava ter 60. A magreza dos ombros, os seios caídos, o abdome volumoso, os cabelos originalmente castanhos escuros dando lugar rapidamente ao branco e ao acinzentado, as rugas muito visíveis nos cantos dos olhos, vincos verticais profundos nos cantos da boca, as pernas flácidas e cheias de varizes faziam Mariana aparentar uma idade que ainda não tinha. Havia ainda o fato de seu marido não mais se interessar sexualmente por ela, sem que ao menos disfarçasse esse desinteresse de alguma forma. Getúlio dizia que Mariana tinha ‘as pernas lamentáveis da meia idade’. Havia na sala do apartamento uma foto de Getúlio e Mariana no dia em que se casaram. Getúlio dizia que Mariana parecia um sorvete de creme na imagem.
Tuco e Éder nunca souberam porque os pais não tiravam aquela foto dali. Isso a fazia supor que ele a traía, naturalmente. E essa não era nem de longe sua maior preocupação, nem sua maior frustração. Ela e Getúlio eram capazes de agüentar qualquer coisa um do outro, porque não tinham mais ninguém.
Os irmãos não compreendiam a razão pela qual seus pais se casaram. Éder era o único que levantava esses questionamentos quando entrava em alguma discussão doméstica com Getúlio ou Mariana, sem jamais conseguir uma resposta que não fossem gritos e ameaças de agressão física. Tuco tentava sozinho encontrar alguma resposta para isso. Nada na personalidade ou no comportamento de seus pais sugeria que pudessem de fato terem formado um casal algum dia. Tinham um casamento farsesco que só trouxe sofrimento e infelicidade a eles e aos filhos.
Na casa dos Alomar não se falava sobre a juventude de Getúlio e de Mariana, salvo algumas vagas menções aos famigerados bailes dos anos 60. Casais se formavam ouvindo Johnny Rivers e Tuco não havia nascido nessa época. Parecia haver algo de bonito e puro nisso, embora Tuco nunca tenha conseguido levar Johnny Rivers a sério.
Na família de Tuco os remédios sempre pareciam ser ainda piores que as doenças, tanto por serem de péssimo gosto como por serem ineficazes. A avó materna de Tuco foi a única pessoa desse gênero familiar com quem ele teve algum contato. Os outros três avós morreram antes de seu nascimento.
Desde suas lembranças mais remotas sobre a avó que chegou a conhecer, Tuco já a tinha apenas como uma senhora cansada, religiosa, surda e desgostosa com a vida. Ela costumava dizer que ‘o pior palhaço é aquele que se leva a sério’. Também dizia que ‘as dores da vida são a síndrome de abstinência da morte’. Havia mais uma frase, que geralmente era dita aos gritos no final das brigas com Getúlio, em que ela dizia que a família era uma ‘entidade sacrossanta!’
Tuco cursava o segundo ano do ensino médio. Talvez por força das circunstâncias, se sentia um completo idiota, um derrotado, ou pelo menos alguém que teria muito o que fazer dali em diante para se afastar de tanta contrariedade. Qualquer teoria da conspiração ainda lhe parecia algo cruel demais para a humanidade, mesmo que a vida ‘real’ fosse tão amarga. Ouvir falar sobre ‘nova ordem mundial’ lhe deixava preocupado.
Embora Tuco sentisse que quase todas as pessoas que conhecia fossem realmente escravos, ele tinha problemas para digerir esse fato. Ele também se sentia escravo e logo as solicitações práticas da vida adulta poderiam perpetuar essa condição. A partir de então Tuco entendeu logo que a escravidão nunca foi de fato abolida. Ao contrário, ela apenas cresceu e incorporou escravos de todas as cores.
Tuco era o retrato típico do adolescente de classe média se afogando na mais completa falta de informação sobre o mundo e sobre si mesmo. Oprimido por uma estrutura familiar falida. Sua falta de autoestima o fazia pensar que logo se tornaria um paciente de depressão terminal. Tinha grandes conflitos sobre seu verdadeiro valor, conflitos esses alimentados por algo que em seu íntimo o faziam pensar que um dia seria recompensado de alguma forma por ser oriundo de uma família tão desestruturada. Queria ser mais que um estudante nauseado espremendo espinhas, mas não tinha qualquer perspectiva de encontrar um caminho para a dignidade.
Intimamente, no entanto, uma fagulha de esperança o mantinha de pé, pois todo esse sofrimento acabaria por valer a pena se Tuco simplesmente se tornasse um adulto diferente de tudo para o qual foi empurrado. Em alguns momentos de otimismo chegava a pensar que seus problemas até mesmo poderiam ajudá-lo a se tornar um dos melhores indivíduos que nossa espécie poderia prover.
Ingênuo e ignorante das próprias necessidades, ficou confuso naquele momento em que seu irmão se complicou, virando motivo de galhofa para seu pai. Apesar de tudo, Tuco via na situação vivida pelo irmão mais velho um certo tipo de manifestação de masculinidade, mesmo com os desdobramentos catastróficos que invariavelmente viriam a seguir num caso assim. Mas até aquilo era melhor do que ser o que ele era, porque não havia para Tuco naquele tempo nem mesmo a perspectiva de conseguir arrumar uma namorada, ter sexo seguro e garantido, além de companhia para ouvir música de sua coleção de fitas K7. Então, diante das circunstâncias, para ele a situação de seu irmão não parecia tão patética quanto era na realidade.
Até então, seu irmão era um crítico dos valores familiares e Tuco tinha esperanças de contar com seu apoio involuntário contra as bizarrices da família, as quais ele mesmo não conseguia formular argumentos bons o bastante para evitar ouvir como resposta para alguma reivindicação razoável o clássico 'caso não esteja satisfeito arrume um emprego e suma daqui!'.
Então Tuco viu seu irmão aos dezenove anos se revelar um cretino e acima de tudo, um hipócrita. Éder poderia ser um testa de ferro por mais algum tempo. Ainda que ele mais tarde sucumbisse ao modo de vida da falsa segurança e da acomodação, do emprego, da família. Mas ter arruinado tudo naquele momento tão precoce foi um golpe duro para Tuco. Éder era mesmo um cretino que começava a se reproduzir e que teria sua própria família, que se desenvolveria de maneira débil como veremos mais adiante. Getúlio se propôs a pagar as mensalidades da faculdade de Direito até o fim daquele ano, enquanto Éder decidiria o que faria de sua vida a partir de então.
Talvez o que de pior tenha acontecido para Tuco naquele momento tenha sido a brecha que seu irmão deu a Getúlio para que este passasse a dizer diariamente que Tuco também seria um fracassado, seguindo o exemplo do irmão mais velho.
Na ausência de Getúlio, Éder era duro com a mãe, questionando-a sobre os motivos que a levaram a se casar com Getúlio. A cada discussão com Mariana ele dizia:
“É inconcebível que você como mulher e ser humano tenha se sujeitado a uma imundice dessas. Eu sei que as vidas de toda a sua geração foram destruídas pelos costumes da geração anterior e que você se sentia obrigada a se casar e se reproduzir. É pena que você não tenha se rebelado contra isso. Eu não teria nascido nessa família, mas onde quer que eu estivesse, teria orgulho de você. Mas você sucumbiu a essa fraqueza, e está pagando com sua vida, com sua saúde e com a sua falta de felicidade. Há duas hipóteses apenas para decifrar a razão da sua união com esse cara obtuso. Ou você não o conhecia direito e casou-se impulsivamente pra pagar uma dívida social e se deu muito mal, ou se deu mal porque conhecia de fato esse animal, e mesmo assim se casou com ele. As duas situações são muito mais que contraditórias. Conte pra mim como você o conheceu! Você nunca me contou!”
Quando a conversa chegava nesse ponto Mariana perdia o controle e atirava em Éder qualquer objeto que estivesse a seu alcance. Invariavelmente ela chorava quando Éder fugia do objeto atirado e ia embora.
De fato ela nunca contou aos filhos como conheceu o marido, pois sabia que eles não tinham qualquer interesse nessa história, e sabia que Éder só perguntava sobre isso para provocá-la. O gatilho para essas discussões eram geralmente a falta de espaço e privacidade dentro do apartamento.
De qualquer modo, não havia nada de extraordinário que Mariana pudesse esconder e também não havia nada de empolgante ou romântico para contar sobre as circunstâncias em que conheceu o marido. Getúlio estudava Direito no Largo São Francisco e vivia no pensionato dos pais de Mariana, na região central da cidade. E freqüentavam os bailes dos anos 60.
Tuco era um filho dos anos setenta e para ele esses bailes são míticos, da década anterior ao seu nascimento e que ele tentava imaginar o que acontecia ali. Tentava imaginar o perfil da juventude brasileira nos anos sessenta. Uma época que o Brasil assimilou com muitos anos de atraso. De uma certa forma os anos sessenta só terminaram no Brasil em 1975. Nesse contexto, também tentava imaginar o tipo de abordagem Getúlio usou para se aproximar de Mariana e que tipo de conversa tinham nos primeiros tempos em que se conheceram. O mundo que os havia tornado possível certamente já tinha morrido faz tempo.
Para Tuco era ainda mais difícil entender o porque de seu pai ter constituído família, pois teria podido viver uma vida muito mais viável sem ela, tanto no que diz respeito à liberdade e tranquilidade como também no lado financeiro. Aparentemente não havia nada que o impedisse de ter uma casa para viver só e com mais dinheiro, mulheres e outras coisas antagônicas à formação de uma família.
Provavelmente a inércia do senso comum o tenha levado a isso. Era estranho para Tuco, mas para seu pai esse caminho alternativo de vida nem ao menos parecia existir. O casamento parecia o passaporte definitivo para a escravidão até o fim da vida. Era uma segunda etapa de uma vida como refém.
Tuco sabia disso pelo que via acontecer com a vida de seus pais e de outras pessoas, e ouvia dessas pessoas que realmente o casamento muitas vezes era uma grande cilada.
Não seria apropriado que Getúlio ou Mariana alegassem que se casaram por amor ou por medo de ficarem sozinhos. Pelo tipo de casal que formavam essas desculpas soariam ridículas.
Nada poderia amedrontar mais alguém do que destruir a própria vida justamente no momento em que se consegue autonomia para escolher o que fazer com a própria vida. Tuco ouvia algumas pessoas dizendo ter medo da solidão.
Para ele isso parecia uma mistura de fraqueza com burrice. Geralmente essas pessoas eram do tipo que também tinham grandes dificuldades em permanecer caladas nos momentos oportunos, o que certamente era também um grande sintoma de burrice.
Era triste ver que Éder precisou engolir tudo o que dizia sobre o quanto o conceito de família era falido e decadente durante os almoços domingueiros da família, mesmo com a presença de Getúlio. Éder costumava dizer que a única coisa que poderia ser pior do que uma família é uma família brasileira.
Triste também era ver um possível aliado se desarmar por conta própria, e anos depois, seus amigos de infância montando suas próprias famílias com toda a convicção de que não havia outro caminho a ser escolhido. O fato de que nesses casos não havia necessidade de remediar um acidente, como uma gravidez indesejada fazia Tuco pensar o porque ele tinha tanta aversão pelo senso comum.
Alguns desses amigos continuariam fumando maconha, mas escondidos, agora de suas esposas ao invés de seus pais. Isso parecia ainda mais bizarro aos olhos de Tuco. Esses velhos amigos também teriam que trapacear suas esposas para aproveitarem outros prazeres que deveriam ser exclusivos de quem não tem ninguém esperando em casa. Como justificativa para manter a farsa de seus casamentos eles alegariam que a 'segurança afetiva' era importante para suas vidas.. Também costumavam chamar de 'estabilidade emocional' aquilo que buscavam com o casamento.
Tuco era a parte mais baixa de uma hierarquia familiar que se revelava cada vez mais perversa. Era o caçula, de modo que seu nascimento consolidava sua família como um grupo padronizado, voltado para um estilo de vida para o qual criou precoce aversão. Seu pai encabeçava o grupo, naturalmente.
Aquele era um sujeito convicto quanto à sua condição de pai generoso e participativo. Como pudemos constatar no começo do texto, a visão que Getúlio tinha de uma família era no mínimo equivocada, burguesa e desumana. Antes, havia errado na opção relativa ao estilo de vida, e depois errou durante toda a execução de seus planos.
Um sujeito grosseiro, deselegante de origem e de vocação, dono de uma intransigência burra e inabalável e que regularmente explodia em acessos de uma
vulgaridade bestial, praguejando contra negros e homossexuais. Era um machista praticante.
Nada parecia ser suficiente para fazer com que ele revisse certas posições que só traziam sofrimento a ele e a quem estivesse por perto. Defensor dos propósitos mais inviáveis, ele não cabia em si, expondo a família em meio a um ambiente que se não primava pela qualidade humana da vizinhança, pelo menos não tinha nela um representante tão expressivo em termos de falta de classe.
O período em Getúlio que foi síndico do prédio em que moravam foi o auge da agonia de Tuco. Seu pai foi o responsável por Tuco crescer moldando para si ideais individualistas e estilo de vida reservado, tendo a privacidade como chave para seu bem estar pleno. Privacidade essa que ele aprendeu a valorizar porque nunca a teve de fato antes de atingir a vida adulta.
Especialmente pelas manhãs a casa dos Alomar era um cenário de horror e paranóia. Haviam dois banheiros na casa. O principal era usado preferencialmente por Getùlio, porque era ele quem trabalhava e pagava as contas. Para irem para a escola a tempo, Tuco e Éder tinham que usar o banheiro menor, no fundo da área de serviço do apartamento, ou acordarem antes de Getúlio.
Naquele período as coisas para Tuco não eram melhores fora de sua casa. A escola e a vizinhança não lhe traziam qualquer alívio. Todas as pessoas em que Tuco depositava algum tipo de esperança presepavam, mais cedo ou mais tarde.
Em seu íntimo sempre existiu um fiapo de certeza de que num dia qualquer todas as pessoas que o entristeciam teriam uma resposta cósmica, e assim Tuco seria alçado a um patamar existencial mais nobre elevado, seja lá o que isso significasse.
Ele sofria com um tipo de claustrofobia causado pela falta de horizontes e de perspectivas, e ainda tinha medo das consequencias de um eventual rompimento com esse mundo salafrário. As pessoas de bem, as que nunca haviam presepado, pareciam sempre distantes o bastante para não conseguirem intervir a seu favor em seu microcosmo de desolação.
Se por um lado sua família não o satisfazia em termos afetivos, por outro lado também não possibilitava uma atmosfera propícia para que ele conseguisse isso por conta própria. Tuco era um jovem confuso. Não era propriamente medroso, mas ainda não rompia as convenções e paradigmas que o atormentavam. Ele apenas esperava.
A jornada escolar de Tuco foi infeliz do começo ao fim, mas houve uma longa pausa entre a conclusão do que na época era chamado de segundo grau, hoje chamado de ‘ensino médio’, e o ingresso na faculdade.
A última tentativa de conseguir uma graduação viria finalmente aos 32 anos, na forma de uma dívida a ser quitada com a sociedade. Ingressou no curso de jornalismo do Mackenzie. Uma formalidade, apenas, mas que saiu pela culatra novamente, quando foi seduzido pelos bares da região, sempre cheio de colegas mais jovens que ele.
Muito antes disso, aos dezessete anos e meio, quando já era tio de uma criança estúpida e mimada, com quem tinha pouco contato, principalmente por causa dos atritos entre seu irmão e seu pai, e quando estava se formando no ensino médio, o local escolhido para a viagem de formatura do colegial, no sul, ficava próximo à cidade onde Tuco tinha parentes de primeiro grau.
Ali vivia a família de um tio, irmão de sua mãe. Isso possibilitou a ele permanecer por mais tempo afastado de seus pais e da escolha do curso superior, além do sufoco da correria atrás de uma vaga na faculdade por todo o ano seguinte. Foi como que se estivesse em férias escolares prolongadas.
A esposa de seu irmão sempre fazia com que os atritos familiares piorassem, porque vivia exigindo que Éder não fosse frouxo e enfrentasse o pai, e a viagem de formatura era uma bênção naquele momento.
Tuco ainda era jovem e nunca havia sido reprovado na escola, o que lhe dava algum crédito junto à família. Também não tinha uma namorada grávida para cuidar, o que foi levado em conta por seus pais.
Para sua surpresa não foi necessário um esforço muito grande para convencer seus pais de que entrar na faculdade com dezoito ou com dezenove anos faria pouca diferença no futuro.
A aceitação desse fato por parte deles foi agradável para Tuco naquele momento. Ele naturalmente argumentou também que ao longo daquele ano poderia escolher com mais cuidado o que gostaria de estudar nos próximos anos.
Disse também que aproveitaria esse tempo para trabalhar, promessa que cumpriu parcialmente, pois no interior do Rio Grande do Sul procurava apenas por trabalhos temporários, intercalados por períodos de ócio que julgava produtivos, já que o ambiente ali era diferente de São Paulo, única cidade onde havia morado até então.
Passou quatro anos vadiando por parques, quase sempre sem dinheiro no bolso, mas com comida e cama na casa dos pais. Pedia dinheiro em casa, às vezes conseguia, às vezes não, mas havia sempre um mal estar muito grande quando esses pedidos eram feitos. Quase não valiam a pena, mesmo quando eram atendidos. Explorava namoradas eventuais que nunca levava para casa; a elas dizia-se pobre, que morava em pensão e que o dinheiro que ganhava era enviado para os pais que viviam num estado longínquo. Geralmente escolhia os estados da região norte como sendo o local onde seus pais viviam.
Tuco ouvia desde muito jovem seu padrinho dizer que 'a verdade é um acordo entre mentirosos'. Assim procurava criar em cima da verdade quando era preciso fazer com que alguém o ouvisse. Convenceu-se de que sua aversão ao trabalho era uma qualidade; qualidade essa oriunda de um caráter menos materialista e extravagante. Saber que tinha um preço lhe parecia uma forma de libertação.
Com o pouco que eventualmente conseguia comprava algumas cervejas, um pouco de maconha no próprio bairro, ou fazia com que suas amigas lhe dessem essas coisas, porque afinal de contas, elas tinham interesses nessa relação, ainda que não fossem financeiros.
Talvez o interesse fosse a alma de Tuco, talvez o corpo, talvez as duas coisas. As garotas com quem ele se envolvia sentiam-se sós e desprestigiadas sem ele, apesar de ser considerado um playboy, almofadinha e vagabundo por alguns de seus velhos conhecidos do prédio, da rua e do bairro.
Até mesmo por alguns amigos. Nunca conseguiu livrar-se da sina de desgraçado. O que alimentava essa sina era o fato de seu padrinho ser um velho amigo de seu pai dos tempos em que ambos estudavam Direito. O sujeito dava dinheiro a Tuco sem fazer perguntas; fazia apenas piadas e comentários machistas relativos ao cuidado que Tuco deveria ter com as mulheres.
O padrinho de Tuco era conhecido entre os Alomar por Ortega. Ele tinha outras frases que ajudaram a moldar os ideais de Tuco. Esse sujeito era um amigo de juventude de Gutúlio. Incrivelmente picareta e canastrão, era um sujeito folclórico e cheio de autoestima, o que fazia com que Tuco procurasse nele certas respostas para suas frustrações. Mais confiante e articulado do que qualquer um dos Alomar, Ortega de vez em quando dizia a Tuco:
"Seja sempre um defensor ferrenho das suas convicções, seja qual for o preço a ser pago por isso. Eu sei que você já se ligou que há muita coisa errada borrando e emperrando nossas vidas! Ver os dois lados de uma questão é não ver absolutamente nada! Vá direto para o lado certo! Só peixes mortos vão a favor da correnteza! A imaginação é a verdadeira força por trás da evolução! Historicamente os inovadores sempre foram os marginais! Os conservadores não apóiam mudanças porque não se beneficiariam com elas, ou por serem idiotas que tem medo de deixarem de ser eternamente molestados. Dadas as circunstâncias do mundo atual, deveria ser fácil escolher o lado certo, mas a massa estará sempre do lado errado. Tenha em mente que o que é certo continua sendo certo mesmo que ninguém o faça, e que o errado continua sendo errado mesmo que todo mundo o faça. E a opinião dos outros, mesmo sendo sobre você, continua sendo dos outros."
O primeiro contato com a família aconteceu quando Ortega, ainda estudante de Direito, foi estagiário no escritório de advocacia que o pai de Tuco trabalhava quando era solteiro. A desenvoltura do rapaz para lidar com clientes e certos casos que deixavam advogados experientes atordoados logo fez com que fosse considerado um prodígio pelos colegas de escritório. Era um rapaz mimado também. Havia tentado se tornar oficial da marinha antes da faculdade. Queria conhecer outros países, mas na última hora desistiu e esperou para viajar depois que se graduasse.
Não foram poucas as que Getúlio o viu chorar quando não tinha suas vontades satisfeitas pelos colegas de trabalho.
Desde aquela época Ortega fazia questão de expressar sua paixão pelo dinheiro. “Dinheiro não traz felicidade. Mas eu não quero ser feliz. Quero ser rico!”, repetia sempre que o assunto vinha à tona. E sempre que Mariana ouvia um dos filhos repetir a frase de Ortega, ela dizia: “Pouco tem quem tem só para si mesmo.” Os irmãos Alomar compartilhavam mais das idéias de Ortega e seu espírito empreendedor..
Ortega vestia-se num estilo Miami Vice, com calças largas, paletós claros de linho, camiseta e tênis. Colecionava relógios e óculos escuros. Media um metro e setenta e pesava sessenta e cinco quilos. Os cabelos muito negros, o penteado firme para trás e a barba sempre escrupulosamente feita lhe davam um ar de bon vivant.
No dia seguinte às visitas de Ortega, Tuco sempre encontrava pentes Flamengo entre as almofadas do sofá de sua casa depois de terem caíso do bolso do padrinho. Desde quando Tuco podia lembrar, o sujeito tomava cerveja sem álcool. Por vaidade e por recomendações médicas ele deixou o álcool e os cigarros de lado.
A mãe de Tuco lhe contava que Ortega antigamente tomava uísque antes, vinho durante e conhaque depois dos almoços na casa da família Alomar, além de fumar uma barbaridade, antes mesmo de Tuco nascer.
Ortega ainda costumava dizer que ‘não há nada que um bom whisky não resolva’. Ou então que ‘vinho é bom, mas uísque é mais rápido’.Tinha liberdade para freqüentar a casa dos Alomar porque Getúlio o considerava um sujeito divertidamente excêntrico.
_ Ele bebia mais do que um Opala seis cilindros! Era um playboy arrogante e cheio de si! Quando perdeu uma namorada no incêndio do Edifício Joelma mergulhou na bebida! Só parou no começo dos anos 80 porque não conseguia levantar mais o copo! - dizia Mariana sobre Ortega. Tuco também ouviu de seus pais que Ortega usava uísque como loção de barba, tamanha era sua paixão pelo álcool. No entanto nunca se lembrara de ter visto Ortega embriagado naquele período. Talvez por que fosse muito criança e passasse as tardes de sábado e domingo jogando futebol enquanto Ortega visitava os Alomar, e assim tenha tido menos contato com ele naquele tempo.
Ortega largou a advocacia pouco depois de conseguir o diploma. Foi viver por algum tempo nos Estados Unidos, onde trabalhou como animador de boate de cassino em Las Vegas, exercitando sua veia artística. Falava muito também sobre sua experiência como músico, na época em que era baixista em bandas de baile. “As mais sólidas e verdadeiras experiências que um músico pode ter eram adquiridas tocando em bailes. Eu tocava das 10 da noite até às 4 da manhã!”, era o que Ortega dizia sobre o assunto.
Ortega sempre foi solteiro e lidava bem com a solidão em sua casa, mas não com o tédio fora dela. Quando voltou para o Brasil, andava em carros esportivos, pequenos e caros, enquanto o pai de Tuco sempre dirigiu aquelas enormes peruas para as famílias grandes, que para Tuco simbolizavam um sonho burguês corrupto e fracassado.
Na verdade os únicos carros que Getúlio teve foram uma Belina bege de 1971, comprada quando Éder já tinha dois anos, e uma Caravan Comodoro de 1982, da qual se orgulhou por muitos anos. Era o modelo de quatro cilindros, e não gastava tanto como o de seis cilindros. Durante muito tempo os irmãos Alomar ouviram seu pai discutindo com outros donos de Opala ou Caravan qual seria o modelo mais viável. Era uma época em que pouquíssima gente no Brasil tinha carro importado.
Ortega dizia que carros rápidos o faziam se sentir mais vivo, mesmo que não se sentisse mais jovem. Ele sempre enfatizava a importância de ter duas vagas na garagem de seu prédio. Ele nem podia imaginar que anos depois, com o I.P.I. reduzido qualquer coitado conseguiria ter um carro. Também não imaginava que o trânsito em São Paulo pudesse ficar pior do que já era.
_ A última descoberta da juventude é descobrir-se não mais um jovem. Eu procuro remediar as situações da melhor maneira que posso. Já que é impossível remediar o envelhecimento, deve-se aprender alguma coisa com ele. Os jovens são cada vez mais idiotas. Quanto mais velho eu fico, mais eu perco a paciência com o frenesi juvenil. O ser humano precisa de problemas, para que sirvam de estímulo para se aprender a pensar. Tudo o que eu sei intuitivamente já foi ou será posteriormente confirmado pela ciência. Posso me considerar um cara aventureiro, termo que muita gente usa de maneira pejorativa. Se não fossem pelas minhas aventuras, tanto as literais como as intelectuais, eu não teria histórias para contar hoje em dia. Sou aquele tipo de sujeito pelo qual as pessoas conservadoras dizem ter desprezo, mas o que eles tem é inveja por terem se tornado mortos vivos movidos a prazos e horários. Suas vidas são uma mentira. Sempre fui muito contestado e quando era criança e adolescente era chamado de vagabundo. Eu não gostava de lidar com a selvageria desse sistema imundo em que vivemos, e com o tempo percebi que se me empenhasse em algo, o que quer que fosse, eu conseguiria vencer. Atingiria meus objetivos, porque o nível da concorrência é sempre baixo demais. E atingiria mesmo que errasse durante as tentativas. Sempre preferi errar sozinho, para que não tivesse que colocar a culpa em outra pessoa. Assim não perderia tempo e consertaria minhas próprias cagadas. O que eles tem a favor deles é o fato de estarem acostumados a essa selvageria, seja pela busca de um emprego ou por uma trepada. É um tipo de postura indecorosa. Eu sempre me vi como parte de uma outra linhagem humana.– dizia Ortega em um de seus inflamados discursos.
Ortega não gostava de mulheres grávidas e repudiava ao máximo a idéia de ser pai. Dizia que a emoção que sentia ao ver uma criança correndo sobre um gramado era a mesma de ver um ônibus passando na Nove de Julho. Nunca se deixou abater por dificuldades financeiras. Já foi rico e pobre. Já fretou avião e também passou por baixo da roleta de coletivos da CMTC.
Capítulo 15: Tuco In Concert
Pela manhã, diariamente, Mariana via na TV um sujeito extremamente truculento e musculoso com um short de ginástica dos anos 80 e uma regata discreta sendo auxiliado por uma garota atlética mas muito feminina, que certamente (pelo menos para os padrões de leitura de situações de Mariana) ganhava um bom salário para estar ali, além de ser jovem e bonita. A atenção de Mariana para o programa não era completa, e a dupla parecia tentar argumentar que aquela série pífia de exercícios de chão era o que havia lhes tornado atléticos e que dariam resultados satisfatórios para quem se dispusesse a acompanhá-los diante da TV.
Mariana viu na garota da TV expectativas de vida maiores que as dela. O tempo provaria para Mariana que ela própria era um tipo tão equivocado quanto a garota da ginástica na TV, que naquele momento realmente parecia estar em vantagem por causa da juventude, da beleza e do salário pago pela emissora de TV. Naquela época, Mariana estava perdendo energia vital como uma garrafa de café requentado perde seu conteúdo numa redação de jornal corrompido. No entanto aquela garota da TV jogaria fora todas as possibilidades que Mariana via nela anos antes. Até porque aquela garota tinha outros desejos. Desejava somente coisas inúteis assim como Mariana. Também levava uma vida inútil como ela.
A tal garota cumpriu sua função na TV, fazendo com que Mariana e outras expectadoras também se sentissem ainda mais inúteis do que já eram. Então a garota engravidou do professor de ginástica da tv, que era casado e já tinha duas famílias, e fazia o diabo para que não houvessem atritos entre os dois lados. Quando engravidou sua jovem colega de TV, a quem chamava de ‘naco de carne sem alma’, partiu de carro sem destino estabelecido, passando por Minas Gerais e Bahia, com o cabelo grisalho e mais comprido, com a barba que antes era feita escrupulosamente por um velho senhor da equipe de TV, agora comprida e parcialmente branca.
A partir de então fez ainda mais sucesso com as mulheres e deitou e rolou por anos, de cidade em cidade. Foi encontrado morto ao lado da linha de trem. Tentara o suicídio quando estava com a saúde abalada por causa da bebida, das anfetaminas e por falta de sono saudável.
Um andarilho o viu ali deitado pronto para ser fatiado por algum trem e o removeu, tirando-o dos trilhos e o afastando alguns metros dali, quase na beirada de uma extensa área de mato rebelde. Acordou quando um outro andarilho vasculhava seus bolsos, reagiu assustado e foi golpeado com um pé de cabra na base do crânio, morrendo instantaneamente.
O dia em que Mariana viu pela TV a notícia da morte daquele sujeito era uma segunda-feira de manhã. O que a entristeceu naquele momento foi a constatação de que ano após ano até mesmo as sextas-feiras e os sábados eram infelizes para ela, e que a segunda-feira já não a abalava mais, ao mesmo tempo que não trazia alegria alguma.
Naquela mesma manhã Tuco acordou de um sonho em que a cabeça de seu pai explodia ao final de mais um discurso racista, e com a explosão toda a sala ficou coberta de merda, inclusive o próprio Tuco.
A música preferida de Mariana era 'Sunshine on my sholder', do John Denver. Às vezes ela atribuía seu gosto por essa canção ao fato de Denver ter morrido num acidente de avião ao invés de estar vivendo uma vida feliz em algum lugar remoto do mundo enquanto ela agonizava em vida, com cada amanhecer chegando como um tiro nas costas.
Havia outros artistas que ela gostava, mas alguns deles estavam vivos, como Johnny Rivers e Carly Simon, e na cabeça de Mariana esses artistas estavam levando a tal vida feliz e reclusa depois de eternizarem seus nomes na história da música pop, com belas casas campestres repletas de discos de ouro nas paredes, cheques de direitos autorais chegando com regularidade e uma vida afetiva completamente feliz na maturidade.
Um tipo de vida que Mariana cada vez mais idealizava em seus sonhos e ao mesmo tempo via se distanciar de sua realidade.
Ela tinha um casamento farsesco, uma família inacreditavelmente desestruturada e morava num bairro claustrofóbico, poluído e barulhento. Tinha filhos inúteis para seus padrões. Era viciada em ansiolíticos entregues em sua casa pela Secretaria da Saúde e não era desejada sexualmente pelo marido. Os raros lapsos de razão alcançados por Mariana apenas a deixavam mais deprimida. Num desses momentos, concluiu que já não tinha nem mesmo sonhos. Tinha apenas fantasias estéreis, sem a substância necessária para que pudessem ser chamadas de sonhos.
Para Tuco, ‘Sunshine on my sholder’ soava como uma música composta para um octogenário doente à espera da morte, sozinho e abandonado num hospital. Aquilo lhe dava calafrios. Era a trilha sonora que combinaria com a mais densa negritude das trevas. Mariana, que também era fã de Richard Clayderman, a quem considerava ‘um músico de verdade’, não gostava que Tuco ouvisse Alice Cooper, Kiss ou Uriah Heep porque eles eram muito feios.
Parecia ter havido um retrocesso cultural na vida de Mariana. Tuco assistia com a mãe o Programa Carlos Imperial no final dos anos 70 e embora ainda fosse bastante jovem e não se identificasse com aquilo, podia sentir que sua mãe estava perdendo o pouco interesse que tinha por música.
Mariana era do tipo que não falava um palavrão em hipótese alguma, ainda que algum dos filhos a tirasse do sério por alguma razão. Já Getúlio começava e terminava quase todas as suas frases com as palavras ‘porra’ e ‘caralho’.
Seu linguajar fazia com que o calão rasteiro das ruas soasse como duelos verbais entre Hermann Hesse e Marcel Proust. Quando Tuco começou a se apaixonar por cerveja passou por maus bocados, já que a padaria da Alameda Rio Claro, onde moravam, era freqüentada por seu pai, e lá Getúlio promovia verdadeiros pandemônios que deixavam seus filhos muito envergonhados.
Muitos jovens da vizinhança bebiam ali e se divertiam às custas das bobagens escandalosas ditas por Getúlio. Isso fazia com que Tuco e Éder evitassem ao máximo aquele estabelecimento. Eram privados da companhia de seus amigos e ainda eram motivo de chacota na vizinhança.
A família Alomar era culturalmente constipada, mas isso alimentava em Tuco aquele sentimento persistente e misterioso que lhe apontava como salvação a procura por uma vida diferente da que seus pais viviam e cujos valores lhe eram impostos enquanto ele ainda dependia de seu pai para morar e comer.
O Rock era algo culturalmente contestador e o efeito dele em Tuco foi tão intenso como já havia sido para milhões de jovens mundo afora. Nesse ponto, a diferença entre Tuco e os jovens de outras partes do mundo era que Tuco nascera no pais menos rock do mundo.
Èder regularmente atacava a pobreza cultural de seus pais, especialmente quando apenas Mariana estava presente. Costumava dizer basicamente o seguinte:
“É inadmissível que eu tenha nascido em 1969 e que naquela época vocês tenham feito um filho sem ter qualquer noção do que estava acontecendo no mundo. Francamente, porra! Mesmo que fosse só pra vocês se divertirem! Não adianta dizer que foi a ditadura que censurava. A ditadura não terminou. A censura tá rolando brutalmente ainda. A mídia é filha da puta e controla vocês de uma maneira bizarra. Dentro de casa eu nunca tive qualquer tipo decente de orientação cultural. Aqui só apareceu um disco do Led Zeppelin quando eu comprei. Só apareceu um disco dos Beatles quando eu trouxe uma coletânea! Vocês ouviam trilhas sonoras de novela e se rendiam aos mais ridículos artistas brasileiros ou gringos. Ouviam, porque hoje vocês nem ao menos ouvem música, seja ela qual for. Aposentaram-se das funções vitais da alma. A falta completa de discernimento foi a gênese dessa família.”
No mesmo prédio de Tuco morava Rangel D’Angelo, um vizinho da idade de seu irmão e que colecionava discos. Rangel era o mais velho de quatro irmãos, entre os quais o segundo, Renan, era um amigo mais próximo de Tuco, por terem a mesma idade.
O fato de Renan colecionar discos e levá-los ao apartamento dos Alomar o aproximou de Tuco, que se interessava por hard rock, rock progressivo e algumas das bandas de pós-punk inglesas do final dos anos 70 e dos anos 80.
Os quatro irmãos D’Angelo não eram unidos, brigavam com frequência. Tuco sempre imaginava como aquela família de seis pessoas conseguia viver tão apertada num apartamento que para os quatro membros da família Alomar já era pequeno. Cada um dos D’Angelo visitava a casa dos Alomar separadamente. Nunca Rangel e Renan eram vistos juntos fora de casa.
Numa tarde de sábado Rangel tocou a campainha dos Alomar trazendo alguns discos e foi atendido por Tuco, que estava sozinho em casa. Assim que entraram no quarto de Tuco e Éder e fecharam a porta Rangel colocou os discos sobre a mesa e disse:
_ Ontem vi seu pai agredir um Hare Krishna que o abordou na Paulista. Ele segurou o cara pelo pescoço e o empurrou contra um canteiro na frente do prédio da Gazeta. Incensos voaram para todos os lados. Seu pai ficou nervoso...
Tuco ficou bastante constrangido e demonstrou isso em seu olhar. Tinha esperanças de que episódios como esse envolvendo Getúlio já não estivessem mais acontecendo. A única ocasião em que Tuco presenciou seu pai fazendo algo desse tipo foi anos antes, quando ele e Éder eram crianças e foram levadas por Getúlio ao Parque do Ibirapuera. Enquanto os dois andavam de bicicleta num gramado próximo à uma entrada do parque na Avenida Quarto Centenário, com árvores distantes umas das outras, Getúlio estava sentado na grama lendo jornal. Havia um grupo de palhaços fazendo malabarismos por perto e crianças brincando com eles. Um dos palhaços chegou perto de Getúlio e o abordou.
Não foi possível para Tuco e Éder ouvirem o que o palhaço disse a ele. Getúlio se levantou e então o jovem palhaço deu um beijo em seu rosto. Getúlio então de um forte tapa na orelha do infeliz.
Dessa vez muitas pessoas ouviram o barulho do golpe e olharam para Getúlio, que furioso andava em direção aos filhos e ordenava com as mãos e com os olhos para que o seguissem até o carro. Era uma velha Caravan branca de 1974. Do parque até o apartamento nem uma palavra foi dita por nenhum dos três.
A diferença básica entre as duas famílias consistia no fato da família de Rangel ter se desintegrado por completo antes dos Alomar. Os pais de Rangel separaram-se e ele foi fazer faculdade em Araçatuba e nunca mais voltou.
Renato foi estudar em Londrina. Os dois mais novos continuaram ali vivendo com a mãe e durante algum tempo com muito mais harmonia do que antes. Aquele era o tipo de prosperidade que Tuco nunca pôde ver enquanto morou com seus pais. Apesar de tudo eles nunca consideraram a possibilidade de uma separação.
A nova fase da família D’Angelo teve apenas poucos anos de alegria. Em 1992 o terceiro dos irmãos, Régis, antes da maioridade se perdeu no vício em crack. Gostava de frequentar o velho Espaço Retrô, na Santa Cecília, no centro da cidade, e nas imediações fez amizades impróprias, numa época em que a cracolândia paulista já começava a tomar forma e crescer descontroladamente.
Régis começou a roubar dinheiro e objetos em casa, e sua mãe achava que o crack era uma droga como as outras. Para ela as drogas eram todas iguais. Era comum ouví-lo sendo arrastado para dentro do apartamento gritando coisas como ‘eu só quero ficar louco do jeito que eu gosto!’
Capítulo 16- Won’t you come out to play?
O ano de 1988 foi musicalmente relevante para Tuco, Éder e Rangel, que não se identificavam com a maior parte do que a mídia mostrava na segunda metade dos anos 80. Naquele ano o chamado rock alternativo começaria a ganhar um pouco mais de espaço e mais tarde varreria um pouco da afetação da cena musical dos anos 1980.
A mídia televisiva brasileira era praticamente inútil quanto à divulgação do que acontecia musicalmente no resto do mundo. Alguns programas curtos de videoclips saciavam muito pouco do que os jovens interessados em Rock precisavam.
A programação geral das emissoras de rádio também era bastante sofrível, mas alguns programas alternativos podiam ser ouvidos a muito custo nas madrugadas de meio de semana, causando batalhas épicas entre seus ouvintes e o dial dos aparelhos de rádio quando era preciso sintonizá-los no horário dos programas.
As revistas de música tratavam de amenidades, fofocas sobre a vida pessoal de gente como Duran Duran, Sting e Michael Jackson. Algumas traziam posters desses artistas.
Na melhor das hipóteses alguns discos de artistas ‘alternativos’ eram resenhados, mas esses discos quase nunca eram encontrados nas lojas. Tuco nem sonhava com a possibilidade de importar os discos que queria.
Estava submetido à mídia convencional, que apenas desinformava a massa e à lamentável formação cultural de seus pais, que insistiam em ouvir os mesmo medalhões da MPB que Tuco tanto odiava.
Ficava cada dia mais claro para ele que fatores genéticos e principalmente de convivência em família não tiveram qualquer importância na formação de seus valores básicos, não apenas culturais, mas de conduta.
Rangel levava alguns discos para o apartamento de Tuco e Éder e esses materiais eram gravados em fitas K7 enquanto ouviam os discos numa velha vitrola gradiente que os irmãos Alomar herdaram de seu pai quando ele resolveu comprar um novo aparelho de som, que sempre pouquíssimo usado por ele e pelo resto da família.
Era através de discos do Twisted Sister, Kiss e Humble Pie, entre alguns outros, que Tuco procurava moldar seus ideais de vida. A coleção de Renan não era grande o bastante para evitar que ouvissem os discos disponíveis repetidamente. A programação das emissoras de rádio estavam abaixo de qualquer crítica. Eram inclassificáveis. Tuco se interessava em conhecer outras bandas na medida do possível.
Moravam próximos à Avenida Paulista e para alguns vizinhos isso representava algum status. No entanto, as opções de diversão para adolescentes eram muito limitadas. Isso potencializava o interesse de Tuco por rock, apesar de todas as dificuldades para se conseguir bons discos e informações confiáveis sobre música.
Uma das poucas diversões dos jovens daquele prédio era aterrorizar a vida dos porteiros. Naquele tempo a contratação dos porteiros era feita quase aleatoriamente. Ali ainda não se terceirizava a contratação desses profissionais. Alguns dos que os Alomar e os D’Angelo conheceram eram figuras incrivelmente folclóricas. A maioria ficava pouco tempo no emprego.
Exceção a essa regra foi Ivanilton, um pernambucano divertido, que se declarava o maior fã vivo do cantor Raimundo Soldado. Trabalhou no Edifício Thaís por onze anos. A base de sua alimentação era composta por sanduíches de churrasco grego, que comprava no Largo do Paissandu.
Um porteiro contemporâneo a Ivanilton era Exupério, um jovem paranaense que geralmente cumpria o período noturno. Dizia-se fã de Saxon e Def Leppard e definia-se como um ‘voluntário sexual’. Dizia que havia feito uma cirurgia para ‘redução do pênis’, e que a partir de então conseguiu mais sucesso entre as mulheres.
Exupério procurava atender aos pedidos dos moradores para que as crianças e os juvenis não fizessem barulho no térreo quando começasse a escurecer. Conseguia se impor com algum sucesso porque era safo e a molecada tinha um certo medo dele.
Reclamava de seu salário e tinha o sonho obsessivo de conseguir um dia comprar um Escort XR-3. Tinha vergonha de seu nome e dizia às empregadas domésticas do edifício que seu nome era João.
A mesma moral com a juventude do prédio não tinha Adamastor, um negro de meia idade, tímido e bondoso, que para os irmãos Alomar parecia ‘um James Brown cansado’. Quando era incumbido de fazer com que a garotada parasse com os palavrões enquanto jogavam futebol nos fundos do prédio, sempre ouvia o coro ‘OR, OR,OR, pau no cu do Adamastor!’
Havia um sujeito na vizinhança que uma ou duas vezes por semana acordava muito cedo, por volta das cinco horas da manhã, antes que surgisse o cheiro de café e pão com manteiga na chapa vindo dos outros apartamentos e gritava pela janela: "Acorda, Brasil!!", Para o resto da vizinhança isso significava que cada uma daquelas janelinhas dos prédios vizinhos abrigava uma família 'normal', enquanto o cara que gritava era alguém que para eles representava a insanidade.
Tuco também começava a representar a insanidade para Mariana, já que para ele os ingredientes que compunham seu conceito de diversão eram amigos jovens vindos de outros bairros, principalmente da periferia, trazendo bebida, barulho, mau humor e revolta.
Mariana não conhecia tão bem os amigos de Tuco porque era impossível receber visitas na casa dos Alomar. Geralmente esses amigos ficavam esperando por Tuco no térreo do prédio. Mariana conhecia melhor os colegas que Tuco tinha no colégio e também as mães deles. Fazia comparações ridículas entre Tuco e esses colegas, baseada quase exclusivamente no desempenho escolar desses sujeitos e em seus cabelos curtos.
Tuco tinha na época uma banda de fanfarra chamada TORPES, que foi criada para servir como uma espécie de vingança pela cilada que sua vida parecia ser, dadas as circunstâncias a que seus pais submeteram o ‘eu’ de Tuco, que essencialmente pregava a paz. Eram influenciados pela banda UFO, uma das obsessões de Tuco na época. Ele era o baixista, pois era o único dos quatro elementos que tinha um baixo, herdado de seu irmão Éder, que o comprou para montar uma banda de pós punk ,mas entrou na faculdade de direito e abandonou o instrumento.
Certa vez ouviu na rua um mendigo dizer que ‘a privação era a mãe da arte’ e isso foi o suficiente para que se sentisse capaz de se expressar através da música. Tuco sabia desde o começo que essa seria uma missão hercúlea, porque nenhum dos integrantes jamais receberia qualquer tipo de incentivo de quem quer que fosse a não ser eles mesmos.
A precariedade era tanta que quando conseguiam marcar uma apresentação, geralmente em cervejadas onde as pessoas não prestavam atenção na banda, tinham que chegar com bastante antecedência para ensaiar ali mesmo, no dia do show. A banda durou o suficiente para aproveitar o mês de junho em dois anos seguidos e conseguir agendar várias apresentações em festas juninas em clubes, escolas e até em igrejas.
Aquela sensação de que tudo já havia sido tentado na música deixou de ser um empecilho e passou a ser algo encorajador. Afinal, o fracasso ele já tinha, e estava bastante atrelado à sua própria existência e à de sua família.
Numa noite Tuco sonhou que sua banda estava fazendo um show pelo qual seria bem pago e antes do final avistou seu pai na platéia, cantando junto uma das músicas, suando, sem camisa, enquanto esta era rodada como uma hélice acima de sua cabeça. Acordou com muita vontade de urinar, numa manhã bastante fria e triste, enquanto constatava ainda em sua cama que seu pai já tinha se levantado e ocupava o banheiro.
Tuco mais tarde se tornaria bastante recluso, mas até os vinte anos de idade não era totalmente antisocial. A sociofobia foi o resultado crônico dos problemas familiares, da superpopulação do bairro em que vivia e do turbilhão interno que clamava por mudanças nas relações humanas.
A Bela Vista, bairro onde ele havia nascido e vivido boa parte da vida, não permitia que se sentisse confortável se expondo muito fora de seu apartamento. Era um ponto da cidade que para muitos parecia bom para se viver, perto da Avenida Paulista (com seus ridículos relógios sempre errados no horário e na temperatura), e dos Jardins, mas também da área mais degradada da Bela Vista, a parte baixa do bairro, que fica próxima da Praça 14 Bis e dá acesso ao centro velho da cidade.
Tuco pertencia a uma geração que ele mesmo considerava a última a viver, pelo menos por algum tempo, bem antes do conceito de internet tornar-se tão enraizado na vida das pessoas e antes também da telefonia celular se popularizar, no limiar da revolução tecnológica. Tuco sabia o que era telefonar para alguém com quem precisava falar e ter que torcer para que essa pessoa estivesse em casa para atender ao telefone. Comprava cartelas de fichas da TELESP para serem usadas nos orelhões. Muito mais tarde compreendeu que para essas pessoas a internet poderia ser melhor aproveitada.
À medida que os anos passavam, a relação entre Mariana e Tuco se tornava menos uma relação entre mãe e filho e mais uma relação entre pessoas que tinham de fato um contrato de moradia, como aquele que o pai de Tuco havia proposto ao filho mais velho quando sua bisonha namorada engravidou. Se algum dinheiro continuasse a entrar naquela casa, a máquina do sistema funcionaria sem empecilhos.
A falta de amor familiar não existia por causa da máquina. Existia por si mesma e era alimentada pela própria família. Isso sempre passava pela cabeça de Mariana quando ela se sentia apenas uma peça dessa engrenagem. Uma peça gasta e descartável. Ela sabia que as coisas continuariam parecidas assim que ela morresse.
As contradições impostas por essa máquina e pelo senso comum o faziam questionar sobre os teores da ‘normalidade’ e a cegueira de seus pais com relação a isso conturbavam sua mente e deixavam uma série de cicatrizes psíquicas. A consciência cósmica sempre citada por seu irmão mais velho estava tardando a se impor diante de tanto sofrimento.
Enquanto Tuco gostava de pensar em como seria bom morrer dormindo com um disco do Leonard Cohen tocando na vitrola, Mariana devaneava sem a mesma classe. E não era por Mariana não ter quem a orientasse.
A culpa era de sua intuição apagada, seu autodesprezo e seu medo de rever conceitos. Afinal Tuco também não tinha em casa ninguém para ensiná-lo a ser uma pessoa viável e mesmo assim procurava ao menos não ser tão patético como seus pais. Eles serviam como um modelo inverso
quando se tratava de comportamento e de escolhas para a vida.
Não se tratava de mero conflito de gerações. Tuco sabia que existia alguma coisa de errado com o mundo a que era submetido. Sabia disso por meio de um instinto sombrio que vinha sendo grosseiramente reprimido por seus pais desde suas mais remotas lembranças.
Num sábado em que Getúlio e Mariana foram a um aniversário num sítio no interior paulista e voltaria apenas domingo à noite, Tuco arriscou promover uma pequena festa em sua casa no sábado.
Ele nunca havia feito isso e passou todo o tempo pensando que seus pais poderiam voltar antes do planejado e estragariam tudo. Isso não aconteceu daquela vez e então Tuco conheceu Pérola, prima de Ernesto, um amigo do colégio que era o único convidado formal, além dos irmãos D’angelo.
Pérola era uma garota gordinha para os padrões estéticos da mídia, mas era bonita, tinha a pele muito branca, olhos azuis bastante distintivos, cabelos originalmente castanhos pintados de vermelho e era cheirosa como um sachê. Eram cinco jovens reunidos e ela era a única garota. Usava uma camiseta com a mensagem ‘EDUCATE YOURSELF WITH REALITY’ com a gola cortada. A alça do sutiã vermelho aparecendo, ora no ombro esquerdo, ora no direito dava-lhe uma sensualidade exótica.. Tuco naquela ocasião vestia uma camiseta de propaganda da Texaco manchada de molho shoyu, escolhida a esmo pela manhã numa gaveta de seu quarto.
Pérola era a primeira garota um pouco mais próxima a Tuco a fazer parte de uma banda de rock.
Era uma banda indie feminina chamada Larvas do Brejo. Eram quatro garotas, todas menores de idade, e por isso tocavam apenas em festinhas de aniversário e pátios de colégio.
Era uma época em que Tuco era pouco familiarizado com os gêneros musicais mais alternativos.
Naquele tempo o hard rock e o rock progressivo ainda eram as predileções musicais para ele, afinal Tuco era um filho dos anos 70.
Pérola levou uma fita K7 com algumas gravações de sua banda, e pelo pouco de música que se ouvia, os temas pareciam bons.
O resto era chiado, naturalmente. Muito chiado que segundo ela era parte da linguagem musical proposta.
Parecia ter sido gravado dentro de um submarino e com o mais tosco gravador portátil que existia.
No entanto, Tuco gostou porque elas imitavam o Jesus and Mary Chain. Ele ficou curioso em conhecer a baterista, que era completamente desembestada, atravessando todo o resto.
A banda duraria até 1991, mudaria de formação várias vezes e acabaria quando a sonoridade começava a tender para o blues, ficando séria demais para elas.
Todas as garotas que passaram pela banda atribuíam a Pérola a culpa por não terem decolado. Não haveria graça se as garotas surgissem na época dos pro tulls, pois a espontaneidade se perderia facilmente. O curioso é que nenhuma delas escapou de se tornar dona de casa.
No meio das músicas podia se ouvir uns gritinhos das integrantes. Ernesto comentou algo a respeito e Pérola explicou que no dia em que estavam gravando, o namorado da baterista estava presente e atuando como produtor. O sujeito andava no meio das garotas enquanto elas tocavam com o gravador ligado, e do nada beliscava alguma delas. Pérola contava a história com um olhar furioso e dizia que o cara era argentino e um perfeito cafajeste, com cabelo comprido, bigode e costeletas. Além disso, ele não entendia muito bem o português, o que a deixava ainda mais irritada, porque parecia não entender o que ela dizia quando queria ofendê-lo.
Seu primo Ernesto ria e a certa altura comentou: “Se ele fizesse isso com o Ted Nugent tomaria um tiro na cara!”. Para Tuco a atitude de Ernesto pareceu corajosa, pois a garota era brava e boca suja, mas como se tratava do primo dela, deveria saber o que estava fazendo.
A partir de então Tuco começou a desenvolver gosto pelas bandas alternativas, embora o termo indie começasse a significar cada vez menos para ele, e provavelmente para qualquer outra pessoa. Agora ele estava cercado por pessoas com diferentes gostos musicais. Havia desde o fã de bandas escocesas desconhecidas do terceiro escalão até fãs de bandas que vendiam milhões de discos naquela época, especialmente as de Hair Metal, que estavam muito em voga na época.
Naquele período misturavam-se em volta de Tuco desde a garota moderninha com sua franjinha cortada torta de propósito que eram fãs de Pixies (essas geralmente eram trazidas por Pérola) até o poser de bandana e fã de Whitesnake.
Tuco sabia que grandes artistas trancendem gêneros e queria unir o que julgava mais interessante nessas tendências. Tinha impregnado em si o rock da época em que nasceu, de bandas como Wishbone Ash, Rush e Camel, mas o pós-punk o agradava demais também e isso o aproximava dos indies e o afastava um pouco dos roqueiros velhos que diziam que gostavam de rock progressivo e que estavam ficando carecas em cima da cabeça e mesmo assim mantinham o cabelo comprido na parte de trás. Tuco gostaria de nunca ficar como esses caras.
Para os padrões estéticos de Tuco ela não estava tão acima do peso, mas sem qualquer dúvida ele seria chamado de 'namorado da gordinha' caso se envolvesse mais seriamente com ela, ou mesmo se algum amigo seu tomasse conhecimento de eventuais relações ainda que descompromissadas entre eles.
De qualquer forma havia algo nela de arrogante e vulgar, que prontamente lhe chamou a atenção, antes de qualquer outra coisa. Havia a beleza do rosto dela, potencializada pelos grandes olhos azuis. Tuco gostou dos seios Pérola, pareciam ter o tamanho e o formato certos.
Ela não precisaria de mais de dois meses para perder o peso excedente, caso se empenhasse minimamente nessa missão. No entanto era agradável para Tuco vê-la tomando várias latas de cerveja e fazendo bolas com o chiclete que mascava o tempo todo, enquanto seus olhos bonitos e azuis tristemente focalizavam o nada. Até então ele nem mesmo sabia se teria alguma chance de ter qualquer tipo de relação com ela. Pérola parecia mais evoluída que ele no que dizia respeito a aceitar-se como uma pessoa estranha.
Havia um tipo de mágoa naquele olhar que fazia Tuco pensar que ambos sofriam dos mesmos males. Pelo pouco que a garota dizia sobre seus parentes, certamente vinha de uma família totalmente desestruturada; também sofria com seu pequeno excesso de peso e na luta contra os vícios que mal conseguia sustentar. Ambos tinham uma vida de restrições, tanto orçamentárias como afetivas.
Quando ela chegou ao apartamento e foram apresentados, Pérola disse seu nome e em seguida já estava contando como odiava ter um nome pouco comum. Disse que nunca houve uma outra Pérola na escola e que ela nem mesmo conhecia pessoalmente outra garota com esse nome. Tuco chegou a cogitar por alguns segundos dizer a ela que ela não deveria se preocupar com isso, mas preferiu ficar quieto.
Um breve silêncio se seguiu, até ser quebrado por Ernesto, que disse ter conhecido um sujeito chamado Drácula. Para Tuco, naquele momento, parecia arriscado tentar uma aproximação e ser desprezado, fazendo um papel ridículo diante dos amigos em sua própria casa. Pérola poderia facilmente humilhá-lo, mesmo sem querer. Ele não agüentava mais as desilusões interpessoais e preferiu não se expor.
Ela não era do tipo de garota meiga, nem politicamente correta e nem apoiava causas fofas. Bebia e fumava muito e falava pouco, sendo que cada frase dita por ela começava e terminava com palavrões. Dizia que precisava de seus vícios para lembrar que era humana. Ela dizia achar que teatro era muito chato e as pessoas que o
praticavam também, e Tuco concordava plenamente, mas nunca havia se arriscado a manifestar essa opinião a quem quer que fosse, pois temia ser tachado de ignorante. Foi a primeira vez que Tuco fumou um baseado, fornecido por ela.
Tuco fumou e deu boas risadas, mas quando olhava para Pérola pensava que o trauma causado por uma eventual recusa dela a uma tentativa de beijá-la faria com que possibilidades vindouras ficassem comprometidas, tanto com a própria Pérola como com outras garotas que ele conheceria a partir de então.
Seguiu-se então um debate juvenil sobre o quanto a legalização da maconha seria importante até mesmo para quem fosse contra o consumo de drogas. Isso se repetiria por anos em outras rodas de jovens, de adultos, de velhos, e se tornaria realidade em países sérios, enquanto o Brasil mantinha a postura reacionária de sempre com relação a esse e a vários outros temas.
Embora Tuco tivesse dezesseis anos, estivesse cheio de testosterona e até certo ponto desejasse aquela garota, em sua cabeça havia preocupações mais imediatas com as quais teria que começar a lidar rapidamente, muito embora sua virgindade o fizesse sentir que era um homem incompleto e ignorante, que ainda não tinha experimentado um dos maiores ou talvez o maior de todos os prazeres mundanos. Isso o atormentava , mas não tanto como outros fantasmas que rondavam sua cabeça, como os problemas familiares perenes. Seu irmão mais velho, quando tinha dezesseis anos passava algumas noites de sexta-feira comendo miojo e assistindo ao Globo Repórter ou ao Sala Especial, e aos dezenove se tornaria pai, o que para Tuco naquela época não era um caminho tão desastroso quanto permanecer virgem por tempo indeterminado. As alternativas para se divertir e conhecer garotas eram poucas e quando ele saía passava o tempo bebendo e observando as táticas que outros caras usavam, mas nenhuma delas parecia conveniente, e quando o dia clareava Tuco não tinha pegado nem a tiazinha do caixa.
Antes de Éder tornar-se pai, de vez em quando recebia telefonemas de amigos o convidando para sair. Como não trabalhava, atendia o telefone em voz alta o bastante para que seus pais o ouvissem dizendo que não sairia porque estava sem dinheiro e desligava o telefone. Conseguia com isso que Mariana lhe desse uma quantia mínima para que pudesse ao menos estar na rua, fosse comprando uma carteira de cigarros ou uma cerveja até que, caso tivesse alguma sorte surgisse alguma festa em que não fosse necessário gastar ou algo assim. .
Há tempos ele vinha sentindo medo de que algo realmente ruim acontecesse com alguém de sua família, ou com toda ela. Havia uma tal ‘maldição do bisavô’, à qual Tuco ouvia seu pai e seu irmão falarem vez ou outra, mas sempre que ele entrava na conversa para saber do que se tratava, era prontamente enxotado dali. Tuco sabia apenas que se tratava de uma doença mental hereditária que se agravava com o tempo. Sentia que a família poderia desmoronar antes que ele atingisse a vida adulta, e assim estaria encaminhado para a ruína pessoal.
Esses problemas somados o deixavam deprimido e confuso, às vezes perdendo a clareza para diferenciar aquilo que temia daquilo que desejava. Sentia-se preso entre ‘o pior já passou’ e ‘o melhor ainda está por vir’. Mas sem dúvida o que estava por vir era o pior.
O fato é que sua mãe estava começando a ser vista andando descalça pela rua e falando sozinha. Falava palavrões, praguejava contra quem passasse por perto, cuspia nas pessoas.
Primeiro, soube através de uma velha vizinha do prédio. O choque misturava-se a uma remota esperança de que a vizinha estivesse enganada. Pouco depois foi levado por seu irmão até o hall do prédio, de onde era possível ver a mesma vizinha tentando conduzir Mariana de volta em mais uma de suas andanças, novamente descalça e falando sozinha.
Tuco achou que teria um surto de pânico, tamanho foi o choque que aquela cena lhe causou. Era como se a desgraça que sua intuição previa tivesse chegado antes da hora. Mariana foi levada para dentro do apartamento pelos dois filhos e pela vizinha, que no elevador dava conselhos aos rapazes.
Falava sobre a obrigação que eles tinham como filhos de dar atenção aos pais ao invés de enlouquecê-los. Enquanto isso Mariana olhava calada para baixo, vendo com aparente surpresa a sujeira que seus pés trouxeram da rua para o tapete bege do elevador.
Entraram no apartamento e levaram Mariana para sentar numa das cadeiras que rodeavam a mesa da cozinha. A vizinha não falou uma palavra enquanto esteve dentro do apartamento, apenas encarou severamente os irmãos Alomar antes de sair.
Era como se ela pensasse que Mariana estava adoecendo por causa de seus filhos e não por suas escolhas ao longo da vida. A tal vizinha conhecia os garotos desde que nasceram e era de se esperar que ela entendesse o contexto daquela história.
Para Éder e Tuco seria razoável que ela que enxergasse a família Alomar como um equívoco não daqueles irmãos, e sim de seus pais.
A depressão se abateu de uma tal forma sobre Tuco que ele teve vontade de chorar só de imaginar que muitos dos seus vizinhos tinham ao menos uma vida tranqüila, sem tanta insanidade por parte dos adultos. Naquele exato momento Tuco e seu irmão puderam ouvir um dos vizinhos atenderem ao entregador de pizzas. O cheiro do queijo derretido invadiu a cozinha dos Alomar deixando-os ainda mais melancólicos.
Era um domingo à noite e Tuco viu-se diante de um desespero nunca antes sequer concebido por ele. O fato de Mariana estar pirando certamente se espalharia com rapidez pela vizinhança, o que poderia custar a ela uma internação, e por conseqüência Getúlio seria diagnosticado louco também, e naquele momento qualquer perspectiva de vida para Tuco parecia caótica e inviável. O terror estava anunciado. Nunca antes o sentimento de solidão e abandono lhe pareceu tão intenso, cruel e doloroso.
Os irmãos Alomar não sabiam se seria bom que Getúlio chegasse rápido ou não. Quando ele finalmente apareceu, mais de uma hora depois, Éder se encarregou de falar sobre Mariana, indo direto ao assunto. Getúlio imediatamente teve um ataque histérico e aos berros acusava os filhos pela situação de Mariana. No auge de sua fúria, saiu batendo a porta com força e alucinado continuou gritando no corredor até que o elevador chegou e Getúlio entrou e desceu. Menos de cinco minutos mais tarde, quando a desolação e o desespero tomavam conta do ambiente, o interfone tocou.
Tuco e Éder pensavam que era algum vizinho reclamando de mais uma baixaria protagonizada pelo pai dos rapazes. Éder atendeu e o porteiro avisou que Getúlio havia sido encontrado morto no elevador. De maneira fria e direta Éder passou a informação a Tuco, que sentiu um frio nas tripas, mas logo em seguida concluiu que para o resto de sua vida não precisaria temer por mais nada. Éder saiu pedindo que Tuco acionasse seu padrinho Ortega, que não foi encontrado. Mariana apenas olhava abstratamente para o nada, ainda sentada junto à mesa da cozinha.
Getúlio quase nunca bebia em casa e tinha garrafas de vinho em seu armário. Tuco foi abrir uma. Encontrou mais bebidas do que esperava, inclusive meia garrafa de uísque White Horse, então deixou o vinho de lado, para ser tomado em
outro momento. Ocorreu-lhe que a partir de então poderia fumar maconha em casa, ao invés de ir até uma ponte perto de sua casa, localizada atrás do Masp.
Seu amigo Rangel havia lhe dado uma pequena quantidade de maconha, suficiente para dois baseados. Bolou um com um pedaço de papel de seda que encontrou dentro de uma caixa de sapatos que encontrou no quarto do pai. Acendeu o baseado e foi até a janela da sala, de onde viu o alvoroço causado pela morte de Getúlio, com moradores e populares curiosos em frente ao prédio.
Tinha a desculpa de estar cuidando de Mariana para não precisar descer. Seu irmão cuidaria de Tudo, como de fato o fez com desenvoltura, tanto no que dizia respeito às providências mais imediatas como a burocracia que viria depois.
Getúlio não foi discreto nem mesmo em sua última e triste cena. Tuco só esperava que o tempo apagasse da memória de seus vizinhos a existência de seu pai, para que a partir de então pudesse ter uma vida tranqüila.
Não havia testamento e Éder providenciou como inventariante toda a parte burocrática nas semanas seguintes. Era uma oportunidade de mostrar que o curso de Direito que freqüentava serviria para alguma coisa.
Enquanto ainda estava apoiado na janela e fumando maconha olhando para baixo, Tuco ouviu Mariana começar a falar sozinha. Então Tuco terminou de fumar o baseado e foi para seu quarto com a garrafa de uísque. Colocou o disco ‘After the gold rush’ do Neil Young e dava goladas de uísque diretamente da garrafa. Antes de dormir ainda levou Mariana para a cama dela e comeu um pão com mantega. Éder ainda não tinha voltado.
No dia seguinte Tuco foi acordado pelo irmão, que lhe disse que Getúlio havia morrido de um derrame fulminante e que seria cremado no crematório da Vila Alpina naquele dia.
Capítulo 17- Northern lights, Southen Cross
Curitiba, Maio de 1997.
Então com vinte e cinco anos de idade, Tuco ainda não era o que se poderia chamar de homem realizado. Desde criança acreditava que essa era uma idade de transição definitiva para a vida adulta. Os dezoito e os vinte e um teoricamente significavam para ele as primeiras transições, mas faziam parte de um processo de amadurecimento do qual pensava não ter tirado muito proveito.
Entre os poucos amigos que ainda tinha havia firmado uma imagem eremítica, geralmente atribuída por eles a anos de sofrimento com uma família desestruturada. Para Tuco a sua inaptidão para a vida era mais que suficiente para justificar sua pouca sociabilidade. Depois de anos vendo a maneira como seu pai se
expunha ao ridículo, Tuco desenvolveu a idéia de que quanto menos se expusesse sem razão, melhor. Correria menos riscos de fazer algum papel ridículo.
Naquele ano Tuco comprou seu primeiro computador e como milhares de outras pessoas de todas as idades ao redor do mundo, começava a deslumbrar-se com as novas possibilidades proporcionadas pela internet num momento em que esta começava a se tornar acessível.
Tuco ainda tinha grande estima pelas hoje saudosas lojas de discos e por sua modesta coleção, que crescia de maneira lenta e penosa. A internet ainda não era para ele um portal que servisse como fonte de pesquisa, como viria a ser nos anos seguintes. A primeira mudança significativa para ele foi a chance de conversar em tempo real com pessoas de lugares diferentes.
Numa noite em que tomava cerveja e ouvia o recém adquirido álbum ‘Rock On’, do Humble Pie, Tuco iniciou uma conversa com uma garota de Curitiba que também se interessava por música. Essa conversa teve início no chat da Uol e continuou por email. Chamava-se Laura e contava como a cidade era chata, fria, chuvosa, provinciana e reacionária, além das dificuldades em encontrar os discos que procurava. Falava também da escassez de shows relevantes na cidade. Ela conhecia São Paulo e comentou entre outras coisas como era vergonhosa a comparação entre a Rua Augusta e sua ‘similaridade’ com a Trajano Reis, em Curitiba.
Tuco ainda não conhecia a cidade, e os comentários que tinha ouvido sobre ela até então eram bastante favoráveis. Pouco depois ele se deu conta de que esses comentários vinham justamente de pessoas reacionárias, de modo que ele preferiu acreditar naquela garota que estava começando a conhecer virtualmente.
Foi apenas no terceiro dia de conversa que eles trocaram fotos. Até então não haviam comentado ou perguntado um ao outro sobre suas características físicas. Isso agradou Laura, que já tinha um pouco mais de experiência com internet e dizia que os caras com quem conversava anteriormente imediatamente perguntavam sobre sua aparência e lhe pediam logo que os enviasse fotos.
Laura tinha vinte e dois anos e estava prestes a se formar em Ciências Sociais na Universidade Federal do Paraná. Tinha cabelos loiros cacheados, olhos azuis e uma pele muito branca. Parecia uma bonequinha polaca. Falaram então por telefone e Tuco gostou de sua voz delicada.
Como Tuco a questionara sobre o fato de Curitiba ser considerada por muita gente uma ‘cidade modelo’, ela sugeriu que ele fosse até lá passar uns dias. Indicou-lhe inclusive um hotel econômico no centro da cidade. Era o Hotel Mandarim, na Tobias de Macedo, no centro da cidade. Os proprietários eram chineses.
Parecia uma boa idéia conhecer a garota e sua cidade, e o gasto estimado para a viagem estava dentro dos padrões orçamentários de Tuco naquela ocasião. Agradava-lhe a idéia de fazer esta que não seria nem uma viagem curte nem longa. Iria para outro estado, mas chegaria lá em poucas horas. Encheu uma mochila que não usava desde o terceiro colegial e foi ao Terminal do Tietê. Chegou pouco antes das 23 horas e comprou uma passagem para a meia noite. A chegada à Curitiba estava prevista para as seis da manhã. Teria tempo para aproveitar o café da manhã do hotel, que era incluso na diária.
Enquanto esperava pela hora do embarque, Tuco, que já estava chapado de maconha, que fumou na Avenida Cruzeiro do Sul, tomou três latas de cerveja e fumou três cigarros na rodoviária, até dirigir-se à plataforma indicada na passagem. Conseguiu dormir logo que o ônibus partiu e quando acordou com vontade de urinar, constatou que o ônibus já tinha feito sua parada em Registro. Foi ao banheiro do ônibus e na volta, antes de dormir novamente, assistiu por alguns minutos a luz do sol começar a emergir e anunciar que logo estaria em Curitiba. Chovia e fazia frio no Paraná.
No dia anterior Laura havia lhe dado instruções para que chegasse facilmente ao hotel. Quando desembarcou na rodoviária a chuva tinha diminuído e era então uma garoa fina e fria. Tuco deu uma volta pela rodoviária e ao atravessar um canteiro para pedir informações num ponto de taxi, pisou numa poça d’água e encharcou o tênis e a meia do pé direito, o que o motivou a fazer o percurso até o hotel a pé mesmo, ao invés de pegar o ônibus indicado por Laura.
Sua bagagem resumia-se a uma mochila, então na haveria problemas. De acordo com um dos taxistas a caminhada não duraria mais de 30 minutos. Seria bom para começar a conhecer a parte mais central da cidade. Acostumado às grandes distâncias de São Paulo, aquele passeio matinal seria proveitoso, até porque já estava sem cigarros e os compraria com o dinheiro da passagem de ônibus.
Tuco chegou ao hotel às sete e meia da manhã sem ter feito reserva previamente, mas havia muitas vagas, então pegou a chave de um quarto para uma pessoa no segundo andar. Verificou que a estrutura era suficiente para ele, pois o chuveiro era quente. Tomou banho, trocou de roupa, desceu para o café da manhã que era servido até às nove horas. Era um café da manhã farto o bastante para que agüentasse algumas várias horas até que fosse almoçar.
Todos os outros hóspedes que tomavam café naquela manhã se conheciam. Havia uma garota jovem, loira e bonita acompanhada por um sujeito também jovem que mesmo numa temperatura de menos de 10 graus usava uma
camiseta regata do Chicago Bulls e que não parava de buliná-la na frente dos outros sem qualquer pudor. O único que se sentia levemente constrangido era Tuco.
Também havia entre eles um paraense que era chamado pelos outros de ‘ribeirinho’. Usava um agasalho do Clube do Remo e falava pelos cotovelos, com um sotaque que parecia uma mistura de carioca com baiano.
Um senhor sério vestindo terno e com cerca de 70 anos de idade que provavelmente era advogado comia uma fatia de mamão enquanto lia a Gazeta do Povo como se os outros presentes nem ao menos existissem. Numa outra mesa uma mulher chinesa tomava café com duas crianças, uma menina que aparentava ter três anos e um garotinho de menos de um ano.
Era esposa do dono do hotel e Tuco já a tinha visto na recepção minutos antes, quando chegou. Ela falava apenas em chinês com as crianças, que não diziam uma só palavra em resposta.
Tuco comeu três pães franceses com manteiga, três ovos cozidos, leite com Nescau, uma fatia de mamão, suco artificial de laranja e uma xícara grande de café puro antes de voltar para seu quarto para dormir algumas horas.
Faltavam poucos minutos para as duas da tarde quando foi procurar um lugar para almoçar nas imediações do hotel. No pequeno hall de entrada o paraense o abordou pouco depois de Tuco deste dizer ‘boa tarde’ a um senhor que ia entrar no elevador quando Tuco estava saindo dele.
_ Vi você hoje pela manhã tomando café! Você é paulista, né?- perguntou o paraense a Tuco.
_ Sim, como você sabe? Suponho que você seja do Pará, por causa desse agasalho do Remo. – respondeu Tuco ao rapaz.
_ Pois é, sou de Belém, mas já morei em vários estados do Brasil, inclusive em São Paulo. Você vai sair pra almoçar? Aqui no centro tem muitas opções de comida boa e barata. Eu vou almoçar também, freqüento um restaurante a duzentos metros daqui, onde come-se bem e gasta-se pouco. Se quiser me acompanhar fique à vontade. Estou com uma fome sagaz!
Tuco o acompanhou porque simpatizou com o sujeito, que no caminho do restaurante apresentou-se como Benê e disse ter 29 anos, embora aparentasse ter quase quarenta, em parte por causa da calvície acentuada, em parte pela pele judiada pelo sol.
Pararam num restaurante na Rua Riachuelo, onde havia opções de comida por quilo e a la carte. Benê ao entrar logo cumprimentou alegremente todos os funcionários e alguns dos clientes, em voz alta e com seu sotaque peculiar. Tuco ficou satisfeito ao constatar que a comida era mais barata ali do que em São Paulo. Era uma terça-feira e naquele momento a movimentação do horário de almoço no centro
da cidade já estava acalmando. Benê sugeriu que optassem pela comida por quilo. Serviram-se e foram para uma mesa, e Benê não parava de falar um só segundo, falando sobre sua andanças pelo Brasil, mas enfatizando sempre suas aventuras em Belém. Era um verdadeiro cronista da vida na região norte.
Contou que em sua terra natal já vivido tanto num hotel de luxo como em palafitas. Falava sobre política, futebol, mulheres e banditismo paraense. Voltaram duas vezes para servirem-se de mais comida.
Benê deixava clara sua predileção pelas carnes mais pesadas e gordurosas que estavam disponíveis. Muitos corações de frango, lingüiça, cupim, costela e muito vinagrete de repolho. Pediram café depois da refeição e Benê anunciou que partiria para um compromisso em Araucária, mas que à noite ele estaria de volta ao hotel e que caso Tuco estivesse lá, poderiam tomar cerveja em algum bar no Largo da Ordem.
Despediram-se afetuosamente e Tuco, antes de voltar para o hotel, ligou para Laura de um telefone público e combinou de encontrá-la às nove e meia da noite no Bar do Alemão, pois naquele dia ela teria apenas a primeira aula na faculdade.
Foi fácil constatar que pela quantidade de mulheres bonitas na cidade, Laura era como mato ali, pelo menos em termos de beleza. Havia garotas bonitas trabalhando em postos de gasolina, padarias, caixas de supermercado e como garçonetes. O que também lhe chamou a atenção foi a quantidade de mães bastante jovens, em comparação ao que via em São Paulo.
Muitas eram mais jovens do que ele, que àquela altura nem ao menos poderia imaginar-se como pai, talvez por ser tio , já que o filho de seu irmão Éder tinha então nove anos. Ser tio era um aprendizado para Tuco, que apesar de ser amigo de seu sobrinho, tinha vontade de esbofetear sujeitos que diziam que ter filhos ‘é um barato’. Aos vinte e cinco anos, Tuco tinha que correr atrás do tempo perdido. Crianças geralmente o tiravam do sério.
Seu irmão Éder havia assumido a responsabilidade de inventariante após a morte de Getúlio, e descobriu que o pai tinha um seguro de vida até certo ponto surpreendente por seu valor. À revelia de Tuco, Éder se apossou de uma cota leonina do dinheiro, o que não estranhamente enfureceu Tuco, que ao mesmo tempo responsabilizava a si mesmo pelo seu prejuízo, já que não se empenhou para ajudar o irmão nas burocráticas tarefas de inventariante. Se tivesse feito isso, teria pelo menos consciência da cifra deixada pelo velho Getúlio.
Na época, o entusiasmo com o qual Éder se propôs a assumir a função de inventariante reforçou a noção que Tuco tinha de que eram pessoas muito diferentes. Éder revelou-se um caloteiro. Nasceu diferente de Tuco mas havia sofrido os mesmos traumas que permearam a vida de irmão. Isso fez com que Tuco o perdoasse mais facilmente. Getúlio havia morrido em 1995, vítima de um aneurisma
abdominal congênito que o preocupava em dobro, pois sabia da seriedade da doença mas tinha medo de se submeter à cirurgia.
Na volta para o hotel, Tuco parou numa livraria na Nestor de Castro e depois num mercado, então voltou para o hotel às quatro e meia da tarde com duas garrafas de vinho argentino para tomar enquanto esperava pela hora de sair e encontrar Laura. Um termômetro de rua marcava sete graus e Tuco ficou em dúvida se teria agasalhos suficientes para enfrentar o frio da noite.
Comprou um cachecol de um ambulante. Nunca havia usado cachecol porque achava que era coisa de hipster mas naquele momento o acessório se fazia muito necessário.
Já dentro de seu quarto, à medida que escurecia a temperatura caía sensivelmente. O vento era gelado e cortante.
Mesmo uma pequena fresta aberta na janela do quarto do hotel já era suficiente para desencorajar a maioria das pessoas a ir para a rua. Mas o frio fazia parte do passeio a que Tuco havia se proposto a fazer no sul, e enquanto abria a janela para ver se estava suficientemente agasalhado para sair, ouviu barulhos de vidros quebrados no andar de cima e uma voz de mulher gritando em português errado: ‘ME POTREGE! ME POTREGE!. E mais vidros se quebraram até que o silêncio fosse retomado.
Às oito e quarenta Tuco deixava seu quarto vestindo uma calça jeans por cima de outra de moletom, uma camisa de flanela, uma blusa de lã, uma jaqueta de couro e o recém adquirido cachecol. Desceu semiembriagado de vinho pela escada até o térreo, onde encontrou Benê conversando com o dono do hotel. Cumprimentou-o rapidamente e saiu dizendo que ia encontrar uma garota. Benê sorriu e sugeriu que no dia seguinte tomassem uma cerveja enquanto contasse como foi o encontro.
A sensação térmica na rua era polar e o vento alcançava sua pele como se Tuco estivesse nu. Ainda faltavam dez minutos para as nove horas quando Tuco chegou ao Bar do Alemão. Então entrou e verificou que Laura ainda não estava lá. Mesmo com o frio, ele achou que fosse uma boa idéia esperá-la do lado de fora. Havia muitas mesas vagas e o cheiro da comida o estava enlouquecendo.
Quando avistou Laura subindo o Largo da Ordem andando rápido e com os cabelos loiros encaracolados balançando ao vento, sentiu as tripas gelarem, mas procurou acalmar-se nos segundos que antecediam o encontro. Abraçaram-se timidamente e entraram no bar. Tuco pensou naquele instante que jamais esqueceria aquele cabelo maravilhosamente cheiroso.
Escolheram uma mesa na parte interna e foram prontamente atendidos por um garçom que segundos limpava a mesa ao lado. Pediram uma porção de mandioca frita e dois chopes escuros. Enquanto conversavam sobre como tinha sido a viagem de Tuco e sobre o dia de Laura, a porção de mandioca sumiu rapidamente,
assim como o conteúdo do copo de Tuco, que pediu mais uma porção igual e mais um chope escuro.
Tuco sentia que apesar de tudo ter corrido bem até aquele momento, o encontro não duraria muito, porque Laura bocejava e queixava-se do frio a todo momento. Quando terminaram a porção e as bebidas, Laura sugeriu que pedissem a conta. Quando estavam se dirigindo à saída, perceberam ao mesmo tempo que uma chuva bíblica caía sobre Curitiba. ‘Seja bem vindo a Curitiba...’, disse Laura, que logo em seguida associou o clima da cidade à sisudez de seu povo.
Antes de chegar na cidade, Tuco não sabia que curitibanos tinham essa fama, principalmente entre eles mesmos, o que motivou entre Laura e ele um debate sobre as diferenças entre paulistas e paranaenses. Laura havia vivido um ano em São Paulo, quando tinha dezessete anos, cursava o terceiro ano do ensino médio e morava na casa de uma tia na Aclimação. Nos anos seguintes voltou à cidade à passeio algumas vezes já conhecendo-a razoavelmente.
Quando a chuva diminuiu despediram-se e combinaram que no dia seguinte entrariam em contato para sair novamente. Laura, que morava no São Francisco, bem perto dali, subiu o Largo da Ordem e Tuco foi na direção contrária, voltando para o hotel no centro.
No dia seguinte Tuco acordou às oito e meia para pegar o café da manhã do hotel e depois, sob garoa e frio, passeou nos arredores. Almoçou no mesmo restaurante que tinha conhecido através de Benê e voltou para o hotel com duas garrafas de vinho argentino. Mandou um email para Laura pedindo que ela sugerisse algo para fazerem naquela noite. Ela respondeu-lhe que não iria para a faculdade porque iria encontrar um amigo de Porto Alegre que chegaria a Curitiba por volta das oito da noite, e perguntou se ele gostaria de ir junto.
Ocorreu a Tuco naquele momento que provavelmente qualquer possibilidade de aproximação seria inviável, pelo menos naquele dia, mas mesmo assim respondeu a ela que iria. Encontraram-se sete e meia na porta do hotel e pegaram um táxi.
O motorista estava ouvindo Steely Dan, e Tuco perguntou a ele se era rádio. O motorista respondeu que era uma coletânea em cd-r. Apesar da viagem ter sido rápida, Tuco achou que a corrida foi barata, pois custou dez reais, menos do que ele gastaria em São Paulo para percorrer o mesmo trajeto.
Laura avistou o sujeito na plataforma, saindo de um ônibus que vinha de Porto Alegre. Era conhecido como Braga e instantaneamente Tuco o julgou um verdadeiro idiota só pelo seu visual hipster, opinião essa potencializada minutos
depois de serem apresentados. Braga escrevia poemas e era blogueiro, considerava-se injustiçado por não ter seu ‘talento’ reconhecido. Um charlatão por excelência.
Assim como Tuco, Braga também conheceu Laura através da internet. Braga parecia tão incomodado com a presença de Tuco quanto o contrário, mas Braga falava pelos cotovelos enquanto Tuco era bem mais ponderado. Ambos prefeririam estar a sós com Laura, mas Tuco tinha o pressentimento de que ela não queria estar a sós com nenhum dos dois, provavelmente a fim de evitar abordagens mais íntimas.
Para surpresa de Tuco, Braga também ficaria hospedado no Hotel Mandarim. Pegaram o taxi para lá e depois que Braga se cadastrou na recepção subiram ao seu quarto, que era melhor que o de Tuco, pois tinha uma pequena sacada voltada para o Paço da Liberdade, enquanto o de Tuco não tinha a sacada e era virado para a rua Tobias de Macedo.
Braga queria fumar um baseado, mas não o tinha e não sabia como comprar em Curitiba. Tuco havia trazido maconha de São Paulo e foi buscá-la em seu quarto. Voltou ao quarto de Braga com o baseado pronto. Tuco não sabia que Laura fumava, porque nunca haviam tocado no assunto. Tuco receava que caso Laura fosse careta, a simples menção à maconha pudesse colocar tudo a perder.
Fumaram e saíram rumo ao Bar do Alemão. Beberam chopes claros e escuros e comeram carne de onça, que Tuco nunca havia experimentado.
Braga recitou poemas de sua autoria, lidos de uma folha de caderno que tirou do bolso. Enquanto ouvia, Tuco tentava se lembrar de alguma situação em que tivesse se sentido tão constrangido. Braga havia mencionado algo relativo à carregar o peso do mundo em suas costas.
Quando terminaram a comida e a bebida, Laura alegou cansaço e disse que precisava voltar para casa. Dividiram a conta e igualmente à noite anterior, despediram-se e Laura subiu o Largo da Ordem e Tuco seguiu na direção contrária, rumo ao centro, mas dessa vez acompanhado por Braga.
Naquele momento o sentimento de Tuco não tinha nome, mas era parecido com raiva, tanto de Braga como de Laura. Pensava na razão pela qual estava ali e não encontrava resposta. Quando finalmente se despediu de Braga no elevador do hotel (Tuco estava hospedado no segundo andar e Braga no terceiro), resolveu que voltaria para São Paulo no dia seguinte sem avisar Laura.
Acordou a tempo de tomar o café da manhã do hotel, voltou ao quarto, pegou a mochila que tinha arrumado na noite anterior, pagou sua estadia na recepção e foi a pé até a rodoviária. Apesar das corridas de taxi serem mais baratas em Curitiba do que em São Paulo, a caminhada faria bem a ele, pois agüentaria mais facilmente a primeira parte da viagem até que o ônibus fizesse sua parada em Registro, no meio do caminho.
Chegou na rodoviária quando faltavam dez minutos para as onze da manhã e comprou uma passagem para as onze e meia. Nesse intervalo saiu para fumar a ponta de um baseado que guardava no maço de cigarros e depois fumou dois cigarros antes de embarcar. Chegou na rodoviária de São Paulo quando faltavam cinco minutos para as sete da noite. Só ligou seu laptop quando chegou em casa. Havia um email de Laura sugerindo que saíssem para beber e ele achou melhor não responder naquele momento. Respondeu apenas na manhã seguinte, dizendo que tinha voltado a São Paulo. Minutos depois veio a resposta de Laura, perguntado sobre o porque. Tuco respondeu que odiava Braga e então nunca mais tiveram contato.
Tuco havia desenvolvido um certo interesse por Laura, mas não era exatamente paixão. Poderia sentir o mesmo por várias outras garotas. Talvez tivesse perdido a capacidade de se apaixonar por não abrir mão de certos princípios calcados num individualismo radical, motivado principalmente por traumas familiares . A viagem a Curitiba acabou valendo como passeio, de qualquer forma. As pessoas faziam cada vez menos sentido.
Capítulo 18 – Pearl, it’s not funny anymore!
Tuco foi acordado por Pérola, que puxou sua coberta de imediato e lhe disse: “Temos que estocar grãos! A casa caiu!”. Era a manhã do dia onze de setembro de 2001. Tuco sabia que quando não levantava rapidamente quando era chamado por Pérola, ela voltaria e derramaria água gelada em suas costas.
Foi urinar e antes de entrar no banheiro pôde ver do corredor que dava acesso a ele e à sala que Pérola e Mariana estavam assistindo à televisão. Mariana estava completamente senil àquela altura e passava seus dias comendo biscoitos de água e sal e assistindo TV.
Pérola detestava televisão. Gostava mesmo era de ficar na internet fumando compulsivamente, mas as imagens de aviões supostamente se chocando com as torres gêmeas a segurava ali. Depois abandonou o noticiário televisivo para ficar horas diante do computador lendo sobre a repercussão do assunto que permeava toda a rede.
Pouco antes disso, enquanto observava sua urina amarela fazer espuma depois de escorrer da borda do vaso até a água, Tuco pensava sobre o que Pérola queria dizer quando com aquela frase sobre armazenar grãos quando o fez sair da
cama. Foi à sala e Mariana virou-se pra ele e apontando para a tela, disse debilmente: ‘Aviãozinho!’. Pérola soluçava olhando a sucessão de replays da cena.
Pérola havia se mudado para a casa dos Alomar porque numa noite de dezembro de 1999 havia brigado com seus pais e com seu namorado (brigou com a família durante o dia e com o namorado à noite) e então, numa iniciativa de puro desespero foi até o prédio de Tuco, interfonou para seu apartamento e o chamou para tomarem uma cerveja na padaria.
Como Getúlio havia morrido e tinha sido esquecido no bairro (para o alívio de Tuco) , tomar cerveja na padaria localizada a poucos metros de sua casa era quase um deleite. Já não o associavam ao pai na vizinhança.
Até aquela altura sua proximidade com Pérola não era forte nem frequente, porque Pérola tinha um namorado com o qual vivia de tempos em tempos, mudando eventualmente para a casa de seus pais. Brigava numa casa e ia para a outra. No entanto era uma boa companhia quando o acaso fazia com que se encontrassem.
Naquela noite Tuco, que emocionalmente estava em frangalhos por causa dos problemas mentais de Mariana, desceu o elevador pensando sobre o porquê Pérola tinha aparecido e logo que viu sua expressão enquanto esperava por ele fumando encostada na árvore da calçada na frente do prédio pôde constatar que havia algum problema sério envolvido, mas ainda assim estava curioso.
Cumprimentaram-se e como sempre Pérola foi direto ao assunto. Tuco podia ver que ela tinha chorado e à medida que percorriam os poucos metros que separavam o portão do prédio até a padaria, Pérola contou que naquele dia havia brigado com os pais e também havia se separado definitivamente de seu namorado.
Trazia consigo uma mochila de viagem com o que era seu. Antes que fossem atendidas pela garçonete da padaria, Pérola perguntou se poderia dormir na casa de Tuco pelo menos naquela noite. No dia seguinte partiria atrás de um emprego e outro lugar para morar.
Quatro dias depois conseguiu um trabalho, o primeiro de uma série, onde fazia transcrições de mensagens telefônicas e então decidiram que ela poderia ficar de maneira definitiva, caso contrário nem ela conseguiria viver de seu salário e nem Tuco conseguiria pagar o condomínio de seu prédio, que desde a morte de Getúlio estava sendo pago por Éder, que não vivia mais ali, para compensar o fato de ter embolsado a maior parte do dinheiro do seguro de vida deixado por Getúlio.
Éder nos três meses anteriores vinha argumentando que já tinha pago o correspondente pelo que embolsou na época da morte do pai e que tinha muitas outras despesas com sua família e pressionava Tuco para que encontrasse um trabalho e se mantivesse.
Pérola gostava de animais e tinha se tornado vegetariana anos antes e estava mais magra do que na época em que conheceu Tuco. Ela tinha um vira-lata
chamado Lafaiete, que havia ficado na casa da mãe, para quem fazia visitas semanais para visitar o cão. Chegou a trabalhar num pet shop limpando gaiolas.
No dia onze de setembro de 2001, Pérola ainda morava lá e tinha passado por vários empregos, ajudando no pagamento do condomínio do prédio de Tuco e eventualmente no mercado. Ela era mandada embora de seus empregos sempre por subordinação. Voltava para casa com cara de quem tinha chorado e voltava a chorar enquanto explicava o porquê de mais uma demissão. Tuco sempre achava engraçado mas com esforço conseguia evitar as risadas.
O curioso é que de uma maneira ou de outra, por mais que escolhesse sempre os caminhos mais difíceis e improváveis, Pérola cedo ou tarde sempre conseguia tudo o que se propunha a fazer. Isso contribuiu para que sua estadia na casa de Tuco, a princípio circunstancial e provisória se tornasse duradoura.
A sorte de Tuco era o fato de Pérola gostar de beber e fumar e dividia as bebidas e o cigarro com ele como parte do pagamento pela hospedagem em sua casa. Tuco se mantinha de maneira minimalista com o dinheiro recebido pelo aluguel da vaga que os Alomar tinham na garagem do prédio. Foi fácil encontrar outro morador que precisasse de duas vagas.
Depois da morte de Getúlio a Caravan que tinha foi vendida por seus filhos. Foi acertado que o pagamento do aluguel da vaga da garagem seria quinzenal, o que ajudaria Tuco a administrar melhor um orçamento tão limitado.
Tuco não mantinha relações afetivo-sexuais com Pérola, porque quando ela voltou a procurá-lo ele já tinha perdido o interesse por ela. Para ele valeu a pena não cair em tentação na época em que se conheceram, porque os anos seguintes o convenceram de que, como a própria Pérola dizia, ela tinha muitos problemas de temperamento instável.
Tuco havia percebido isso desde o começo, mas quando tinha dezesseis anos clamava por sexo e emoções numa vida sentimental que ainda não experimentara.
Os anos que se passaram a partir de então mostraram a Tuco que as conseqüências prováveis de um eventual relacionamento entre eles seriam ainda mais catastrófico para ele do que para ela, caso isso tivesse acontecido quando se conheceram.
Além de Tuco ter perdido o interesse sexual por Pérola, descobriu nela uma parceira para um tipo de vida fora dos padrões imaginados até por ele mesmo, que embora tivesse aversão e quase fobia de famílias convencionais, ainda carregava involuntariamente paradigmas relativos a elas, entre outras coisas por ser oriundo desse universo e por continuar vivendo cercado por uma vizinhança convicta na adoção desse estilo de vida.
A partir do momento do reencontro, uniram-se em torno de uma necessidade que ambos tinham, que era um lugar para viver com as contas pagas, longe de desafetos. Tuco tinha a casa e Pérola, pulando de um emprego para outro
conseguia dinheiro para as prioridades. Certamente ela não poderia pagar um aluguel com o que ganhava com telemarketing, então pagaria apenas pelo condomínio e por parte da comida.
A relutância de Tuco em procurar por um emprego convencional certamente o teria deixado em maus lençóis se Pérola não tivesse surgido com a solução. A proposta partiu de Pérola, o que naquele momento foi favorável a Tuco, que ao aceitá-la em sua casa não teve trabalho em estipular certas condições, principalmente o pagamento do condomínio, que era o que mais afligia a Tuco.
Na única ocasião em que Tuco procurou um emprego, descobriu que era parcialmente surdo do ouvido esquerdo e foi reprovado no exame médico para um trabalho de telemarketing. Ele estava desesperado por algum dinheiro e solucionou o problema deixando de beber por alguns dias e pedindo cigarros aos vizinhos que encontrava pelas redondezas.
O desespero de Pérola na ocasião em que procurou por Tuco também facilitou as coisas para ele. Seu apelo veio de encontro às dificuldades que Tuco tinha de aceitar a necessidade de buscar um emprego. Tuco pôde propor que continuaria sem um emprego, para que pudesse cuidar de Mariana. Dadas as circunstâncias, Pérola resolveu aceitar, até porque quando a padaria fechou e tiveram que pagar a conta e sair, não havia mais ônibus circulando na cidade, de modo que Pérola não teria mais a quem recorrer.
Em poucos dias perceberam que nenhum dos dois de fato levaria vantagem ou prejuízo sobre o outro com o acordo que haviam firmado. Era uma relação de mutualismo na essência da palavra.
A estrutura burocrática que reinou naquela casa por décadas foi abandonada. Numa época em que muito se falava sobre ter saudades dos anos oitenta, Tuco e Pérola não carregavam nenhuma nostalgia. Muito pelo contrário. Odiavam o passado, não sabiam se haveria futuro e viviam cada dia da maneira que podiam. Embota tivessem alguns problemas cotidianos, estavam vivendo o melhor momento de suas vidas, num mundo que estava cada vez pior e pelo qual eles não tinham nenhum apreço ou esperança.
Os desejos e expectativas dos dois se resumiam a um fim de tarde com bebidas e cigarros nos dias comuns, e também com cocaína, maconha e LSD nos dias especiais, geralmente trazidos por amigos que tinham mais dinheiro.
Quando sentiam tédio, acessavam o chat do portal Uol, inventavam um nome de mulher, começavam uma conversa com um punheteiro qualquer e chamavam o infeliz para um encontro marcado num apartamento do prédio em que viviam. Mandavam fotos aleatórias de garotas bonitas que encontravam na internet e
atribuíam a imagem à garota inventada por eles. Então ficavam na janela vendo um ou mais idiotas ouvirem do porteiro que a tal garota não era moradora do prédio. Como estavam no nono andar não ouviam a conversa, mas podiam ver a decepção de cada um deles indo embora, às vezes a pé, às vezes de carro.
O gosto que ambos tinham pela bebida e o gosto musical parecido foram elementos primordiais para que aquela idéia pudesse ser mantida em prática. Mariana dormia cedo, antes das nove da noite, e quando Tuco e Pérola estavam sem dinheiro para bebida, promoviam pequenas festas no apartamento, fazendo com que os convidados levassem as bebidas. Geralmente chamavam pessoas mais jovens que eles, gente que vivia na casa dos pais e que não tinham condições de fazer o mesmo.
Isso contribuía para que o clima naquela casa fosse muito melhor do que quando Getúlio era vivo, e também muito mais conveniente para Pérola do que a vida turbulenta que levava antes, fosse com seus pais ou com seu ex-namorado. Finalmente havia algo ali que os fez conhecer algo próximo de um lar, já que ambos nunca tinham tido um de fato.
Tanto Tuco quanto Pérola tinham vinte e nove anos e as abstratas perspectivas de vida de ambos, por mais contraditório que possa parecer, os ajudaram a olhar para frente sem tantas amarras. Fariam tudo diferente de seus pais. Teriam uma vida adulta mais lúdica e despojada do que tinham na infância e na adolescência. Uma vida simples que seria boa para quem estava acostumado com condições adversas.
Até mesmo os natais que passaram juntos eram alegres. Ambos tiveram natais felizes apenas no começo da vida. Em poucos anos a data se tornaria sinônimo de coroação de mais um ano tenso. Evidentemente os problemas familiares pelos quais passaram tinham relação direta com esse sentimento. Não se tratava apenas de não gostar de natal por causa do proveito que a mídia fazia da ocasião.
Todas as vezes em que passavam juntos na frente da academia onde sua antiga escola funcionava, Tuco dizia: “O Imaco teve o fim que mereceu. Foi um final correspondente à sua trajetória: indecorosa, melancólica e imoral”.
Naturalmente alguns desentendimentos surgiam, mas nada que sequer chegasse aos pés das baixarias às quais os dois estavam acostumados a ver e viver em suas famílias. O desejo intenso que ambos tinham de viver de uma maneira diferente daquela como foram criados fazia com que esses problemas fossem sempre rapidamente deixados de lado.
Na primeira semana em que estava morando na Bela Vista, Pérola fez amizade com Nicastro, um morador antigo do prédio. Nicastro era pernambucano e tinha cinqüenta e oito anos. Tuco o conhecia desde criança, mas apenas de vista,
entrando e saindo do prédio. Era um homem com o espírito jovem mas queixava-se muito da solidão.
Morava em São Paulo havia catorze anos, tinha boa condição financeira, trabalhava no Banco do Brasil, mas não tinha um grupo de amigos, nem mulher. No entanto era um cara extremamente fino e educado, com a dignidade de um lorde e a simplicidade de uma criança. Tinha uma boa forma física e aparentemente tinha ótima saúde. Não era alto, tinha um metro e setenta e dois de altura, distribuídos num corpo robusto e firme. Seu cabelo era grisalho e bem curto, apresentando alguns sinais de calvície no topo da cabeça.
Depois de conhecê-lo melhor durante as conversas que passou a manter com ele e Pérola, constatou que alguns aspectos de sua vida, como a tranqüilidade de receber um bom salário e viver sozinho num bom apartamento seriam bem vindos em seu cotidiano.
Tuco tinha superado completamente a melancolia de uma vida solitária, movido pelo mais visceral descontentamento com as pessoas ao redor e queria apenas estabilidade financeira, para que pudesse comprar a estabilidade emocional, que seria facilmente alcançada com as contas pagas em dia e mantimentos enchendo a geladeira e os armários da cozinha.
Tuco achava estranho que um cara experiente como Nicastro ainda não estivesse convencido disso. O mais difícil Nicastro já tinha conseguido, afinal a relutância de Tuco para arrumar emprego não estava relacionada somente ao trabalho em sim, mas ao pesadelo que seria trabalhar num escritório ou num banco com pessoas que certamente ele odiaria. Não entendia porque aquele bom homem era tão carente de relações humanas.
Quando Tuco pensava nisso sempre chegava à conclusão que a incompletude humana atingia a todos de um jeito ou de outro. De qualquer maneira agora Nicastro tinha feito amigos, ainda que mais jovens e completamente à deriva na vida.
Nicastro não gostava de ser chamado de senhor, e logo passou a freqüentar o apartamento de Tuco, para se dispor a ajudá-lo com Mariana caso fosse necessário, e também para tomar vinho e ouvir música com Tuco e Pérola.
Quando Tuco ou Pérola se queixavam da vida, Nicastro, sempre muito positivo e otimista, dizia: “Antes que tudo dê errado, o pessimista sofre menos.” Outra frase que sempre repetia para os novos amigos era: “ Somente atingimos a felicidade fazendo os outros felizes.” Sobre felicidade também dizia que “a mais autêntica forma de felicidade é ser feliz sem exatamente ter razões para tanto”.
Era um grande sujeito e sua presença equilibrava a relação entre Tuco e Pérola, que viviam bêbados e mau humorados. Talvez o antagonismo entre sua
personalidade e as de Tuco e Pérola fosse um ingrediente enriquecedor no contexto daquela nova amizade.
Apesar de ser mais velho Nicastro tinha perspectivas e esperanças de viver o suficiente para ver um futuro mais digno para a humanidade, algo que Tuco e Pérola nunca tiveram. Pelo contrário, eram imediatistas por excelência e odiavam a espécie humana com toda a veemência possível. Tuco costumava dizer que a ruína do planeta se deu por causa dos polegares opositores aliados à inviabilidade da mente humana.
Nicastro costumava dizer que a maior tristeza de sua vida foi ter que abandonar a convicção marxista de sua juventude, alegando que apesar de generosa, era utópica. Nicastro era sobretudo uma pessoa cujo comportamento se equiparava aos valores que dizia defender, o que é algo um tanto raro.
Naturalmente a misantropia de Tuco e Pérola lhe fechavam muitas portas, mas apesar da admiração que tinham por Nicastro sabiam que eram inaptos para o estilo de vida que ele levava. Nicastro falava a eles tudo que pensava, mesmo que fosse para criticá-los, mas a recíproca não era verdadeira. Até porque temas relacionados a drogas, por exemplo, não eram abordados na frente dele.
Capítulo 19- Putômetro (Terrible things to lose)
Éder vivia na Vila Mariana com a mulher e o filho, mas aparecia semanalmente no apartamento da Bela Vista para prestar alguma assistência à Mariana, que ficava cada dia mais louca. Ele que já gostava de ‘teoria’ da conspiração começou a saborear com voracidade todo tipo de informação que podia alcançar sobre a farsa que foi o suposto atentado às torres gêmeas . Com Getúlio morto e Mariana senil, as palestras eram direcionadas a Tuco e Pérola, quando ia visitá-los na Bela Vista.
Pérola achava Éder um completo idiota e por um milagre qualquer e para alívio de Tuco ainda não tinha entrado em atrito com ele. Tuco pensava que isso não demoraria a acontecer numa ocasião qualquer, quando Éder despejasse seus pitacos sobre conspirações.
Além dos atentados, seus assuntos preferidos eram sobre a Monsanto, sobre venenos que a Sabesp misturava na água e organizações maçônicas que mandavam no mundo. Repetia quantas vezes pudesse que os governantes são
marionetes, seus subordinados eram marionetes de marionetes e todo o resto era composto por escravos inúteis.
Na primeira vez que Éder viu Pérola estabelecida no apartamento em que vivera por mais de vinte anos antes de se casar, pensou que seu irmão e Pérola tinham um relacionamento amoroso e disse ao irmão: “Quem diria... eu lembro dessa garota nos anos oitenta! Ela tem olhos azuis como a camisa do São Caetano! Está mais magra hoje em dia. Nosso velho deve estar se requebrando na tumba, mas eu sei que na guerra qualquer buraco é trincheira...”. Tuco respondeu: “Nós não temos nada, seu palhaço! Eu jamais me casaria! Devo isso a mim mesmo!”.
Naquele momento passou pela cabeça de Tuco mencionar o fato de Éder ter destroçado sua vida por causa de um casamento, ou contrato de moradia, como Getúlio havia sugerido. O fato de a garota ter engravidado não era um atenuante para a situação e sim um agravante. Entretanto conseguiu se controlar e não falou nada.
Éder tinha ido fazer uma proposta a Tuco. O apartamento da Bela Vista estava no nome de ambos e devido à boa localização, especialmente pela proximidade da Avenida Paulista, estava valorizado no mercado imobiliário. A idéia de Éder era vendê-lo e dividir a grana.
Então Mariana passaria a viver com ele ao invés de Tuco. Em setembro de 2001 o apartamento estava valendo 500 mil reais, que divididos dariam, segundo Éder, a possibilidade de Tuco comprar um menor em outra área da cidade e investir o resto do dinheiro. Com sua parte, Éder quitaria o restante das parcelas do apartamento em que estava vivendo com a família.
Tuco aceitou a proposta mas exigiu que Éder se responsabilizasse por todo o processo de venda, mas diferentemente da ocasião em que foi inventariante para conseguir o dinheiro do seguro de vida de Getúlio, teria que apresentar a ele toda a documentação e não apenas fizesse um depósito na conta de Tuco. Éder concordou e antes de ir embora disse que entraria em contato em breve.
A idéia o agradava porque poderia dar adeus ao lugar em que passara toda a vida e desvincular-se definitivamente do passado. Não sabia ainda o que dizer a Pérola, já que seu novo apartamento seria certamente uma quitinete, para que levasse uma vida ainda mais minimalista e o dinheiro fosse suficiente para a compra do imóvel e para os investimentos posteriores.
Éder acionou os serviços de uma imobiliária e quatro dias depois voltou para dizer a Tuco que já tinham encontrado um interessado na compra do apartamento. Nesse período Tuco pesquisou o preço de quitinetes na região central, que na época estava bastante degradada, mas que ele considerava charmosa justamente pela sua decadência. Deu aval ao irmão para que fechasse o negócio.
Um anúncio de apartamento a venda em particular lhe chamou a atenção. O prédio ficava na esquina da Avenida São João com a Duque de Caxias e o proprietário queria vinte mil reais por ele. Caso concretizasse o negócio teria como viver de renda para o resto da vida com o que sobrasse de sua parte do dinheiro.
Era hora de anunciar a Pérola sobre o negócio. Não foi uma conversa tão difícil como Tuco esperava, já que Pérola estava trabalhando com telemarketing no centro e economizaria com o transporte e com o condomínio, que era muito mais barato no centro. A questão do espaço foi deixada para ser resolvida quando estivessem instalados na nova morada. Uma divisória seria suficiente.
A imobiliária a que Éder recorrera ficava próxima ao apartamento almejado por Tuco. Localizava-se na esquina da São João com a Rua dos Timbiras. Quando Éder e Tuco foram assinar o contrato, Pérola foi junto, então ela e Tuco aproveitaram para visitar o apartamento, cuja chave estava disponível na portaria. Eram quarenta e dois metros quadrados, no sétimo andar, um banheiro espaçoso para o tamanho do apartamento e uma boa vista para a São João.
No dia seguinte ao recebimento de sua parte na venda do apartamento da Bela Vista, Tuco, que tinha duas semanas para desocupá-lo, encontrou-se com o proprietário na mesma imobiliária e encomendaram a papelada. Na semana seguinte, assinaram e foram a uma agência bancária fazer a transferência.
No dia seguinte providenciaram um carreto para fazer a mudança. Não levaram nem suas camas, apenas os colchões, para que fossem levantados e encostados à parede quando não estivessem dormindo, para economizar espaço. Levaram também o fogão, a geladeira, o computador, o aparelho de som e a coleção de discos de Tuco, que se não era tão grande como ele gostaria, pelo menos era complementada com a música que ouvia através da internet.
A cracolândia estava em fase aguda, e a condição de abandono da humanidade pela própria espécie ainda era algo considerado normal e qualquer desejo de mudança real na vida de Tuco e Pérola era considerada era algo utópico
Compraram uma divisória retrátil e seguiram a vida. Pérola trabalhava no Anhangabaú, ia e voltava do trabalho a pé. Compraram mais um computador para não terem que dividir o antigo. Encheram as paredes de colagens. Visitavam ou recebiam a visita de Nicastro todos os fins de semana. Tinham a sensação de que suas vidas tinham finalmente começado, principalmente para Tuco, que foi apresentado por Pérola a Lola Cox, que o convenceu a comprar um sítioque na época era barato, no meio do mato, onde conseguiam chegar graças à tração traseira da Variant de Lola, o mesmo carro que depois ficou de presente para Sara.
Capítulo 20- Lola
Nessa época Zimi entregava pizzas a pé.
Lola Cox era vegana e ainda mais sonhadora que Tuco. Foi a primeira pessoa que ele viu colocando em prática princípios de sustentabilidade.
Os dois eram pessoas urbanas e viveram juntos no rancho sem nome por dois meses, antes que Tuco voltasse para São Paulo para trabalhar numa gráfica e depois sumir da vida de Lola, não sem antes passar o rancho para o nome dela, que também voltou para a cidade e quinzenalmente visitava o sítio para cortar mato e colher frutas.
Sua sobrinha Mila Cox passou vários anos da infância e adolescência repetindo que quando fosse adulta passaria a viver ali.
Capítulo 21- Crop Circles
Zimi era contemporâneo de Tuco, e o conheceu num período em que ambos sabiam que somente se alguma coisa muito louca acontecesse com o mundo, eles estariam salvos de um destino terrível.
Tuco conseguiu se firmar como gerente de banco e sumiu do alcance social de Zimi como escravo do corporativismo.
Para Zimi ficou a amargura de um mundo onde jamais se tornaria alguém feliz ou relevante e eis que a pandemia veio quando ele já era um sujeito de meia idade e sem qualquer perspectiva.
Sem endereço fixo, sem renda fixa, sem saber o que faria da vida naquele ano que ao que tudo indicava seria de ruína coletiva.
Mas ele era baterista dos Crop Circles e agora estava com Mila Cox naquele rancho que lhe permitia viver sem a amargura do antigo normal.
Justamente no meio da pandemia, onde bilhões sentiam medo de um futuro que ele imaginava que não teria com a normalidade da época da história de Tuco.
Ele e Cox não seriam mais chamados de indies loucos de LSD tocando Space Rock com letras utópicas.