METAMORFO (ESSE TAL DE ROCK “N” ENROW) —I—
METAMORFO (ESSE TAL DE ROCK “N” ENROW)
Roque por vezes imaginava desaparecer em meio aos colegas de turma durante o recreio. Não tinha afinidade com eles. Configurado em outra dimensão que não a deles, penetrava em seus pensamentos facilmente, via o que eles viam, pensava no que eles pensavam nesses momentos de variegadas realidades, via fluir de dentro de sua mente para a mente deles um fio de fibra invisível que invadia suas mentes apropriando-se da atenção de cada um e todos eles.
A paisagem próxima ao alcance de seus olhos, o campo visual mais distante que esbarrava nos muros da escola, a vida familiar limitada pelo que lhes era oferecido no lar em conforto e em possibilidades futuras. Estava ali o cercadinho mental dessas criaturas que faziam parte de seu dia dia escolar e social. em toda as adjacências. O máximo que conseguiam de suas mentes era tramar uma traquinagem, uma reinação a partir da qual se julgavam mais espertos que outros.
As explicações do professor ficavam cada vez mais tediosas à proporção que insistia em repetir verbalmente a escritura do quadro negro que era verde. Roque, feromônios agitados, percorria muitas vezes a extensão dentro das seis paredes que limitavam a sala de aula e logo buscava uma saída no formato de um pássaro, um falcão peregrino, que saía a sobrevoar alto o passeio ajardinado ao lado, adentrando, por vezes rapidamente, a Igreja das Dores, as construções aos arredores da Praça João Luís Ferreira frente à entrada principal do Colégio Diocesano.
O bico pequeno, semelhante uma pequena foice, a bater asas, por vezes rumo à Praça da Bandeira, outras, adentrando os espaços por sobre a Praça Pedro II. O professor perguntava coisas aos alunos, Roque configurava-se, quando perguntado, na representação do aprendiz que acompanhava o ritmo da aula, ao abrigar-se na forma bípede dos demais alunos, súbito impacto da ave que voltava para dentro da cabeça com irritação por ter interrompido a sensação de liberdade do voo.
Interrogava-se se os outros demais alunos tinham a habilidade de sair de si mesmos, do ambiente claustrofóbico de suas mentes e sobrevoar espaços mais amplos, menos uniformes e previsíveis. Ele ficava a intuir que não poderia, de modo algum, prosear com nenhum deles sobre as proezas nessa mobilidade fluida dos espaços abertos, não limitado
à zona da caixa craniana condicionada pelos condicionamentos do lucro interesseiro por detrás das motivações de aprendizado no lar e no ginásio.
Roque visualizava seus colegas de turma e via que nenhum deles tinha vontade de sair da zona de conforto em que a experiência da liberdade poderia acontecer. A iniciativa de autonomia e autodeterminação não era certamente para eles. Eles se julgavam muito espertos e deliberados a seguir o caminho do rebanho. Trajetória indicada por pastores terceiros que com seus cajados de apascentá-los e dirigi-los aos currais eleitorais de obediência, dos quais não sairiam nunca e os direcionava pelo ecossistema social vegetativo, que não pararia nunca de degluti-los como se fossem minhocas na fritura condicionante da antropofagia globalizada dos celulares, no entretenimento caipira dos quintais e festas de São João.
II
Roque intuía não ser saudável compartilhar essas percepções com os demais alunos do colégio. Certamente seria ridicularizado. Na sequência genética do ADN ou seguimento do DNA dele, havia com certeza, uma representação estrutural com inteligência eficaz com informações que não faziam parte do DNA deles. Isto o tornava um menino isolado e arredio à companhia dos demais colegas de classe. Em seu código de instruções gênicas havia algo diferencial em seus cromossomos. Ele não saberia explicar o quê.
Começou ele a pesquisar possíveis diferenciações genéticas que o conduziram ao estudo dos receptores de hormônios da tireoide, coletores tipo “TR”. Qualificou-se no estudo de livros sobre mitologias mesopotâmicas, metamorfos e criaturas sobre-humanas do hinduísmo e da ficção científica, narrativas sobre mutantes, shape-shifter”, “changelings”, seres que podem expressar-se sob diversas formas ou metamorfoses, transfigurações e mimetismo animal, revelações de seres sobrenaturais.
A cultura machista do paternalismo decadente, os costumes e hábitos sociais dos filhinhos riquinhos de papai, sobressaía-se. A arbitrária condição de mando e desmando da classe dominante, suas facilidades e confortos, a certeza de que não dependeriam de trabalho porque a condição de privilégios lhes daria tudo, sem que precisassem se ocupar em conseguir emprego, lhes concedia a ilusão de que poderiam praticar “bullyng”, ou assédio moral, impunemente.
Roque pregava-lhes peças. Aproveitava a falta de um membro do grupo de “bullyng” para substitui-lo entre os seus, inserindo no meio deles conflitos e desavenças. Vardin encobria o fato de que tinha QI baixo e pagava ao Chicão para passar pequenos pedaços de papel ou “pesca”, de modo a ganhar boas notas nas provas de matemática, e outras, ao “colar” os resultados de questões passadas por Chicão e outros que também ganhavam com transcrições de resultados de problemas transcritos nas provas de fim de mês. “Bolinhas de papel” eram jogadas para ele, aproveitando-se de descuido do professor.
No exame decisivo, de fim de período, Chicão faltou. Roque/Metamorfo aproveitou a falta e substituiu Chicão passando para Vardin “colas” com resultados propositalmente errados, em respostas a quatro questões tidas por decisivas na prova final de matemática. Semana seguinte ambos se desentenderam e chegaram à promover agressões físicas ou às vias de fato, no que resultou lesões corporais em ambos, devido à violência com que se agrediram. Desse dia em diante a amizade entre ambos gorou. A partir daí a turma do “dinheiro ou beliscão” passou a fazer vítimas raramente. Arrefeceram os ataques, as vítimas dos beliscões tornaram-se raras também devido, não apenas a inimizade entre os membros da gangue, como também às coletas de informações nas investigações policiais e denúncias de evidências da participação eles.
Vardin era conhecido larápio entre as garotas de programa do meretrício diurno e noctívago. Confiante de que estava acima da lei, ou que a repressão policial não causaria, em última instância, nenhum dano à sua pessoa de marginal chique, porque o dinheiro do pai estava sempre presente para resolver qualquer imbróglio, abacaxi ou pepino no qual ele estivesse envolvido. Sua autoconfiança em roubar as garotas que se prostituíam para arcar com despesas de sobrevivência precária e auxílio à família, quando a tinham, contava com a segurança do drink “Boa Noite Cinderela” para sonorizá-las e depois aproveitar-se delas como quisesse: sodomizando e as roubando, segundo elas mesmas diziam a Roque em conversas de alcova.
Roque frequentava as cortesãs do lugar. Algumas delas, muito novas, de mocidade recém-chegada, mas com experiência em malandragens. Tão novas, mas já cobras criadas que traziam na mochila de suas vidas, todo um cardápio de sacanagens dos mais variados menus de taras arquivadas em programas com personalidades da noite, algumas procedentes de várias cidades do interior, com passagem para capitais do nordeste, chegando ao mestrado e ao doutorado no circuito Rio-São Paulo.
Carla e Juju eram chegadas amigas que trocavam endereços de contatos em programas nas cidades litorâneas próximas. Telefones de clientes. O celular para elas era uma mochila cheia de “selfies” com frequentadores da noite em cidades tais como Natal, Fortaleza, Teresina, São Luís. Quanto mais cresciam em poder de sedução e satisfação de desejos, os mais bizarros, mais passavam no vestibular que as levaria às universidades das anomalias sexuais noturnas, com clientes de boates, inferninhos, saunas e casas de encontros São Paulo-Rio.
III
Roque visualizava através de contatos telepáticos, pessoas das mais diversas procedências sociais. Obtinha delas contato interativo com revelações do Inconsciente Pessoal e do Coletivo, da família e da cidade. A mente de cada pessoa é um gerador elétrico de energia. Ele trazia naturalmente todas as realidades das mais diversas conjunturas ou combinações de acontecimentos, ao campo magnético interior da própria mente. O eletromagnetismo coletivo, ou campo eletromagnético de interações da cidade, interage em todas as mentes que estejam, de algum modo, associadas por proximidade.
Cada cérebro representa dois por cento do peso corporal e consome vinte por cento do oxigênio e da glicose do organismo. A variação do fluxo magnético de seu cérebro interagindo com outros cérebros, gerava aumento na corrente elétrica interna entre sinapses, neurônios e neurotransmissores. Havia uma indução magnética entre ideias e tensões que os cérebros conectados vivenciavam.
O aumento da tensão eletromagnética entre dois cérebros provocava nele uma exacerbação da relação de forças entre eles, cérebros, e a consequente cólera, ou aumento da energia invasiva de um psiquismo com relação ao outro. A força na ressonância eletromagnética entre eles, os cérebros de Roque e da pessoa por ele contatada, permitia a ele a visualização de um horizonte de eventos do qual o cérebro conectado não podia sair. Ao tentar libertar-se, o cérebro do outro gera um estímulo impetuoso na mente de Roque. Envolvido por esse poderoso campo magnético, os átomos de hidrogênio da mente, agora antagônica, permanecem alinhados à vontade de superação dos recursos de defesa da pessoa semelhante e ao mesmo desigual e adversa.
Desse confronto, Roque absorvia as ondas de radiofrequência que provocava a mutação ou mudança de direção da energia coletiva armazenada no Inconsciente Pessoal do cérebro adversário por ele monitorado. A compreensão da fisiologia do cérebro ainda está a engatinhar. As pesquisas de Roque no sentido de se traduzir, só obtinha resultados especulativos. Era o máximo que conseguia compreender de si mesmo.
IV
— “Aquele cara da TV”, riquinho, diretor dono da estação retransmissora da Globo, Juju configurou Vardin, — “família rica, mas ele rouba as garotas só de sacanagem, maldade, não precisa do dinheiro”.
— “Dinheiro para essa gente nunca é demais”, — pontuou Roque, fazendo um alongamento de braços e pernas na cama do motel. Sadismo para ele é divertimento, mais vale que o dinheiro que rouba de vocês. Roque lembrou do palavreado trocado entre o pessoal bebum na mesa noturna do decadente “Clube dos Diários”, próximo ao Teatro 4 de Setembro, frente à Praça Pedro II. O lugar reunia todas as noites antigos colegas de escola e jogos de futebol em fins de semana no que a molecada chamava de “Campo de futebol do Horácio”, porque ficava, na época, em frente à residência do pai dele., um médico conceituado na cidade.
Em um desses papos de jogar conversa fora, ficou evidente as muitas ocasiões em que Vardin se afirmara um sujeito mau caráter, segundo narrativas sobre suas façanhas, a exemplo do “dinheiro ou alicate” diversão da “turma do beliscão”.
Roque contara a história da Juju, que, por sua vez, Carla tinha-lhe contado quando foi por ele dopada, roubada e abandonada sozinha no quarto de motel para pagar a conta.
— O Vardin não tinha limite, confiava nas boas relações do pai com os imponderados da sociedade: políticos, militares, coronéis policiais, juízes. A “turma do beliscão” passou um tempo enorme atuando, até que todo mundo já sabia quem eram os protegidos dos delegados de polícia. Essa, foi forçada a intervir, via um delegado transferido de um município distante da capital, longe das influências dos empoderados locais. Diligências por ele investigadas prenderam dois membros da gangue. A partir daí, via acordo entre familiares e autoridades, o bando rareou as abordagens sádicas, até que parou de vez com os estragos feitos nos braços, rostos, orelhas, nariz, ventre e pernas das vítimas. As pessoas que sofriam os ataques, diziam deles: “depois de sangrar as vítimas que não tinham dinheiro, eles saiam rindo a valer”.
— Roque ficara sabendo das façanhas do bando de Vardin que, entre outras, se gabava em defecar na piscina do Diocesano, ou na piscina do Jóquei Clube, onde costumavam assaltar os armários dos banhistas que deixavam roupas e pertences nos bolsos de camisas e calças. O tempo passou, os moleques amadureceram dentro da bolha de proteção de seus pares. Agora se concentravam em contribuir para arruinar a vida aflita das moças do trottoir. Vardin, afligido pela pulsão de praticar abusos, talvez não soubesse como amadurecer e se tornar um sujeito com boas práticas sociais.
Para mostrar que tinha poder sobre empresas e pessoas, Vardin extinguiu a agência de publicidade de um certo amigo de Roque, Josias Milk Sobrin. A empresa terminou suas atividades empresariais devido a ambos os sócios não terem caído na simpatia de Vardin, que abria caminho para amigos e simpatizantes concorrerem no mercado de agências de propaganda na capital do Piauí. Havia apenas a Tv Globo, na época a única Tv visão da cidade, dádiva do pai, por ele e o irmão comandada. Vardin passou a não aceitar, a barrar a inserção de comerciais nos programas da retransmissora Globo no Piauí. Com isso acabou com ela, agência. Josias Milk Sobrin, pai de família, publicitário formado, suponho, na Universidade Federal do Ceará. Começara a beber demasiado. Ceifado os dias caído na vala de um esgoto próximo na casa da mãe onde passara a habitar. Feneceu após um ataque cardíaco, retido na vala comum da indigência.
V
Dizia um ditado: “pau que nasce torto não tem jeito morre torto”. A bolha social de proteção que blindava Vardin e seus sequazes, talvez tenha garantido que alguns deles tenham conseguido escapar das ações conscientes de causar danos a seus semelhantes. Talvez não soubessem como se engajar num plano coletivo abrangente em benefício de seus conterrâneos de geração. Ou talvez se julgasse superior às demais pessoas que não nasceram sob a égide familiar e social, garantia de seus privilégios. Para mostrar a suposta superioridade inexistente, queria fazê-la acontecer na marra, à força da pressão pessoal extremada e perversa.
Ao Sair dessas ruminações reflexivas Roque estica os membros na cama, lembra que amanhã será um dia de agenda cheia. Ju se veste após o banho apressando-se em dizer que o filho recém-nascido havia ficado sozinho no berço do lugar em que habita, no outro lado do Rio Parnaíba, na cidade de Flores, já em território maranhense. Dirigindo o carro pela Ponte Velha, chegaram num lugar mal urbanizado onde, com dificuldade estacionou em meio à vegetação. Caminharam por um pedregulho até a palhoça iluminada por um candeeiro sobre o tamborete de madeira escurecida, talvez pela fumaça negra que saía do lampião e negrejava as folhas de palha seca que cobriam o barraco.
Essa parte do submundo assustou Roque. Como ela poderia ter largado aquele bebê num berço de madeira próximo a um candeeiro que poderia ter caído e incendiado o lugar matando a criança??? Roque não a censurou. Sabia que a dificuldade de sobrevivência, a falta de educação e raciocínio, eram características de mulheres jovens entregues às mais diversas condições de dificuldades que as conduziam ao abismo de uma sina de infortúnios aos quais nem mais sentiria incômodos, devido à quantidade soberba de privações e adversidades que foram e seriam as marcas viscerais de sua subvida insípida.
— “Quantas vidas secas”. Exclamou de si para consigo Roque, disfarçando a estupefação diante de um quadro pessoal e social de grande sordidez. Quanta obscenidade aquela quase criança tinha de aturar todas as noites para conseguir o alimento para si e a filha em condições de carência extrema de salubridade. Ju olhou para ele com olhos de quem compreendia seu desconcerto em presença de condição tão miserável. Sorriu sem jeito disfarçando sorrir. Sem querer Roque a tinha humilhado ao descobrir que suas roupas, sapatos e aparência de cocota classe média não passavam de fachada para atrair os clientes sedentos de sexualidade pornô.
Roque passou-lhe mais algum dinheiro e pensou que por ela e a filha não poderia fazer mais muita coisa. No mesmo dia comunicou a Anita, uma assistente social de seu conhecimento, a condição em que mãe e filha viviam. Sem esperança de que, no fundo, no fundo, sua vida pudesse mudar de direção. Não poderia permitir sentir-se culpado por usufruir das delícias oferecidas por sua profissão. Indignado, visualizou a careta cínica, insolente e debochada do Tartufo Vardin, pai da criança.
VI
Roque não tinha pleno controle da bizarrice que lhe permitia metamorfosear-se na aparência de outras pessoas. A tênue linha quase invisível de luminescência que migrava de sua mente até a psique de outras pessoas, não era condição característica de um Metamorfo. Metamorfos não são camaleões que assumem formas e cores da vegetação em redor, ou de outros animais, tipo o polvo nas profundidades marinhas. Não. Ele exteriorizava a forma facial de outros seres humanos em ocasiões de erupção de um impulso mental interno parcialmente incontrolável. Ele não faz isso para se proteger de predadores do meio ambiente. Ele pratica a metamorfose no intuito de equilibrar relações arbitrárias entre pessoas em situações de inconveniência ou aflitivas. Pelo menos é o que ele pensava que acontecia.
Seu sentimento de responsabilidade com outros seres dito humanos, era para ele um chamado à razão. Saber o que é joio e o que é trigo, fazer a distinção. Esse desassossego que o distingue das demais pessoas, faz valer uma certa equidade entre elas. Um fulano como Vardin não era punido porque tinha um pai protetor com poder político e econômico de livrá-lo das penalidades das leis. Ele se achava acima delas. E essa proteção o fazia um sujeito socialmente desembestado.
Esse poder pessoal, que Roque julga sobrenatural, permite os mimetismos que o habilitava a frequentar locais reservados à boemia endinheirada da cidade.
O sentimento sádico de se privilegiar impunemente da condição de fragilidade financeira, econômica e social de garotos e garotas adolescentes, aumentava em Vardin a necessidade, nele básica, de exercer soberania impiedosa e desalmada nas pessoas por ele exploradas intencionalmente. Seria, talvez, um sentimento de soberania e sujeição próximo à afeição e ao apego que um coroinha, sob a influência de um clérigo da liturgia cristã, que ajuda no ritual da missa, sente por alguém que, por algum motivo, está sob sua influência deletéria.