O DESPERTAR DE UMA VINGANÇA - CAP. 01 - PARTE 2

A medida que nossa consciência amadurece, questões importantes acabam surgindo em nosso mundo, incomodando tanto quanto uma infestação de piolhos. Longe do orfanato, crianças eram acompanhadas por adultos a quem chamavam de pai e mãe. Comecei a perceber que elas possuíam um sorriso diferente, que me parecia mais feliz e natural, por alguma razão que eu desconhecia. A janela do segundo andar por onde eu observa o mundo, transformara-se na minha vitrine, e a vida fora dela, em um caro presente que eu desejava receber de Natal.

Enquanto passeava sozinho pelo casarão, notei Nana recostada na varanda. Ostentava um olhar perdido no horizonte, alheio ao movimento da fumaça que era exalada de seus lábios. O cigarro, preso entre o indicador e o dedo médio estava na metade de sua vida, o que indicava que ela já devia estar ali a um tempo.

- Nana... – chamei-a tímido.

- O que foi Beterraba? – devolveu ela, despertando de suas reflexões – andou aprontando alguma coisa?

Fiz que não com a cabeça.

- Então o que você quer? – devolveu ela sorrindo.

- Se toda criança tem pais, por que eu não tenho?

Nana então respirou fundo. Se antes seu olhar era sutil para com o horizonte, agora pairava-o como um furacão, revirando todos os conceitos do universo atrás de uma resposta para a minha dúvida:

- Ouça Beterraba, as vezes acontece dos pais precisarem fazer algo muito importante. Então eles deixam as crianças comigo. Se eles terminarem o que tem de fazer, eles voltam para buscar a criança, senão eles mandam outro casal para cuidar e amar essa criança. Entendeu?

- Mas por que não nos levam juntos? – continuei.

- É coisa de adulto Beterraba, um dia, quando for mais velho, você entenderá...

Fiquei cabisbaixo por um momento, mas depois recuperei o ânimo. Pensei comigo mesmo que se meus pais não viessem até mim, quando fosse maior, iria procurá-los em uma grande aventura.

- Nana, você conheceu meu pai e a minha mãe?

- Sim... – disse ela em um sorriso distante.

- Como eles eram? – continuei com entusiasmo.

- Vejamos – disse ela – Seu pai era um homem muito forte e inteligente, a sua mãe era uma mulher muito bonita.

- Eu vou ficar igual ao meu pai?

- Vai sim, mas para isso vai ter que comer direito, dormir no horário e ser um rapaz sempre obediente.

- Eu vou ser Nana! – respondi feliz, prestes a retornar para as minhas brincadeiras.

Quando saí, me veio uma outra dúvida. Escondido pela parede, observei o semblante de Nana agora mais triste do quê nunca, sem o cigarro e com uma certa amargura no olhar de quem fosse cair no choro a qualquer momento. Resolvi não incomodá-la e continuei meu caminho, mas sem nunca esquecer aquela que seria a imagem mais fixa da minha mente.

Setembro passou ás pressas, carregado pela ventania da do outono e cada vez mais entregue ás chuvas de outubro que não avisavam quando apareciam e não tinha hora para acabar. Contudo, era um mês de grande espera porque as crianças mais velhas anunciavam que logo seria o dia em que os adultos nos trariam diversos brinquedos. Em meu mundo de pensamentos, pensava que aquela era a ocasião perfeita para uma dupla surpresa, onde meus pais apareceriam com diversos brinquedos, me levando para uma outra casa onde viveríamos sempre felizes. As vezes, percebia o olhar triste de Nana para mim, como se por um breve momento, dispusesse do dom materno de ler os pensamentos de um filho.

Os primeiros dias daquele outubro trouxeram a mim um leve despertar, com o som da chuva colidindo com o teto e a claridade do dia invadindo o quarto pelas frestas. Devia ser muito cedo, já que as outras crianças ainda dormiam profundamente. Aproximei-me da vidraça da janela e percebi a imagem de um veículo preto longo, estacionado do outro lado da rua. Ao passo que também ouvia sussurros, como adultos conversando. Segui cauteloso pelo corredor, até alcançar as escadas que davam acesso ao primeiro andar, foi quando percebi que um homem, acompanhado de outros dois, conversava com Nana. Devia ter por volta dos seus 40 anos, ainda que os tons de grisalho do tempo já escapassem por seus cabelos e longo bigode. Tinha um olhar fixo e compenetrado, como se estivesse a dar uma ordem. Vestido em um terno preto, trazia em uma das mãos uma bengala, mais acessório do que ferramenta de apoio.

Não me lembro de ouvir o que dialogavam, apenas fiquei em choque quando, repentinamente, o homem desferiu uma bofetada no rosto de Nana. A força do golpe fez com que ela caísse sentada, com o rosto avermelhado e um filete de sangue escorrendo pelo canto do lábio. O mundo então pareceu se mover em atraso, onde as informações alcançava a minha consciência só depois de um tempo. Enquanto a razão vinha a tona, percebi que, em um momento de fúria, havia provocado um corte na cabeça do tal homem, após arremessar um brinquedo e ordená-lo aos berros para não machucar Nana.

- Moleque desgraçado! – bradou o homem, vendo em sua mão o sangue morno que começava a aflorar – Peguem ele agora!

Os dois homens que o acompanhavam acabaram me segurando, pouco tempo antes de chegar no quarto e me arrastaram de volta para sala. Nana tentou intervir, mas acabou sendo derrubada novamente, dessa vez, por um soco no estômago que lhe roubara todo o ar.

- Segurem ele. – disse o homem de bigode, enquanto derrubava o vaso de flores que estava em uma pequena estante – E o coloquem aqui!

Eles então me levaram até o móvel, com um deles segurando a minha mandíbula enquanto o outro enfiava alguns lenços na minha boca. Nana continuava se arrastando em nossa direção, com súplicas roucas que em nada influenciavam na situação.

- Esquerda ou direita chefe? – perguntou um dos capangas.

- Melhor a esquerda, que como faziam os antigos, educamos e ensinamos a não ser canhoto – disse se dirigindo à cozinha.

- Minha tia era canhota e era boa pessoa... – comentou o terceiro homem, silenciando-se após confrontar o olhar de reprovação do outro.

Com a mão sobre a estante e um choro abafado pelos lenços, sentia meu corpo exausto e dolorido, após ficar me debatendo e sem sucesso. A força que exerciam no meu antebraço esquerdo era tamanha que por um breve segundo acreditei que seria esmagado. O coração batia de forma intensa e acelerada, espalhando o sangue frio por cada vaso sanguíneo do meu corpo, pressionando-os ao limite. O desespero então chegou ao seu máximo quando o homem de bigode retornou com um martelo, que Nana costumava utilizar para amaciar a carne.

Parado em frente a mim, o homem bradava um sorriso de satisfação, admirando o brilho metálico do instrumento, antes de fixar seu olhar em Nana, que continuava agonizado. Em menos de um segundo, o olhar do homem se transfigurava em uma fonte de ira, e converteu-a em força para a primeira martelada.

O primeiro golpe fez com que minha mão cerrada se abrisse por causa do reflexo. Parecia que os gritos abafados cada vez mais intensos e as lágrimas que desciam do meu rosto, alimentava cada vez mais o ódio daquele homem, que continuava desferindo marteladas na minha mão e nos dedos. Cada vez mais uma dor aguda percorria da minha mão até a espinha, naquela que até então era a pior dor que eu sentia na vida. Nos intervalos entre as marteladas, notei que a marreta estava ensanguentada, e que em minha mão, vestígios de ossos afloravam em meio aos cortes da carne. Minha mente não me permitiu contar quantas marteladas recebi até que me soltassem, apenas percebi que deitado no chão, já não sentia mais minha mão esquerda. Após a saída dos homens, Nana continuou se arrastando até onde eu estava. Sua expressão de choro e frustração deixaram claro que havia sentido em seu coração a dor de cada uma daquelas marteladas. Tudo o que eu conseguia pensar era que se o cenário dos meus pesadelos realmente fosse o inferno, o rosto daquele homem certamente seria o de um dos demônios.