O DESPERTAR DE UMA VINGANÇA - CAP. 01

Capítulo 1

Pesadelos

Era setembro de 1940, quando Redenção se despedia dos dias de tempestade e abraçava a temporada em que uma densa névoa encurtadora de horizontes tomava conta da cidade. Em plena madrugada, quando tudo o que se lia nas ruas eram as silhuetas das luzes amareladas dos postes e o manto de orvalho sobre os carros estacionados ao relento, um silencioso despertar acontecia, evocando fantasmas que levitavam sob os paralelepípedos das ruas e olhavam as janelas à procura de alguém. Através da vidraça de um orfanato, encontraram um órfão que dormia tranquilamente, até que resolveram lhe fazer companhia. Não importa o quanto se tente enterrar o passado, cedo ou tarde, a chuva do destino e o vento da verdade farão o mesmo emergir de seu túmulo apenas para provar que não há como esquecer, especialmente aquilo que para começo de conversa, nunca esteve morto. Os fantasmas do passado haviam me encontrado, e minha história começava com um pesadelo.

Tinha cinco anos quando dei por conta de minha própria existência. Notei que vivia em um enorme casarão, ao lado de outras dez crianças e de uma mulher a quem chamava de Nana. Não sabia como havia chegado ali, mas desde sempre senti que aquela era a minha casa. Não tinha lembranças de um mundo fora dali, ou de qualquer outra pessoa além daquelas com quem convivia todos os dias.

Na noite em questão, experimentei meu primeiro deslumbre de um lugar diferente. Estava em uma sombra no canto de um quarto, onde sentia algo me apertar cada vez com mais força. Havia uma cama, onde havia alguém deitado e totalmente coberto dos pés à cabeça. Na única porta de saída, três silhuetas observavam aquela cena. Repentinamente três clarões tomavam conta do sonho, revelando um rosto diabólico aos indivíduos e fazendo com que o que quer que estivesse me segurando, sufocasse ainda mais minha respiração. Após uma risada sinistra, um mar de chamas invadiu o quarto, tomando conta de tudo, como uma tinta aos poucos se mistura a água. A angústia no meu peito causava cada vez mais desespero, até que os olhos de uma das figuras cravou em mim e senti como se um punhal rasgasse meu peito de um lado a outro. Cheios de ar, meus pulmões mal conseguiam articular um grito. Entretanto, consegui vencer a resistência, e aquele grito me acompanhou do mundo dos sonhos até o mundo real.

- Se acalma menino! – disse Nana, segurando-me enquanto eu ainda me debatia – Já passou, foi só um pesadelo...

Naquele instante, enquanto recobrava a respiração, o calor do abraço de Nana aos poucos me devolvia a razão. Sentia o frio suor descer pela minha face, misturando-se às lágrimas, enquanto um infinito de imagens embaçadas recuperavam a nitidez e se desvendavam nos meus irmãos de orfanato. Fiquei levemente constrangido, mas ainda não sabia explicar o que acontecera. Após me tranquilizar, Nana retornou para o seu quarto e todos voltaram às suas camas e aos seus sonhos, exceto eu, que tentava me manter acordado, receando que ao menor abrir e fechar de olhos, pudesse acabar parando naquele lugar novamente. Ainda sem a consciência que só nos vem com a maturidade, acreditei que o amanhã seria outro dia. Entretanto, o que se sucedeu em toda aquela semana foram dias em que nada mais fora igual, exceto aquele pesadelo, que permanecia imutável e totalmente apegado a mim.

Nana era uma mulher que deveria estar no auge dos seus 30 anos e que diferente das demais mulheres de Redenção, parecia ter abdicado de dedicar sua vida à um marido e a luxos supérfluos para dedicar a um bando de crianças abandonadas à própria sorte. Usava um vestido azul marinho, de bolinhas brancas que raramente abandonava. Quando em casa, lhe fazia companhia um avental branco e na rua, um chapéu vermelho. Embora fosse amorosa, não hesitava em deixar algum de nós de castigo, ou até mesmo de nos dar boas palmadas em caso de travessuras. Também tinha o estranho costume de nos chamar apenas por apelidos, quase sempre com o nome de legumes ou objetos.

Naquela noite, ela presenciara o início de um difícil período no Orfanato Pequeno Coração. A atenção que ela dedicava ao jovem Beterraba por seus pesadelos recorrentes acabaram instigando o ciúme das outras crianças, que também começaram a despertar em pesadelo, como se fosse uma epidemia de piolhos. Após sobreviver a duas noites de insônia, já prevendo não ter a mesma sorte na terceira, decidiu resolver o problema pela raiz e pela descrição do meu pesadelo, me levou para a Igreja de São Ivo, que ficava a poucas quadras orfanato, assim que se marcaram as primeiras horas da manhã.

O lugar era imenso, e de início, tive medo das figuras de santos e mártires que povoavam o espaço através de pinturas e esculturas. Nana deixou-me sentado nos últimos bancos da igreja e foi conversar com o padre, um sacerdote de óculos que parecia ter recebido a graça da paciência diretamente de um dos anjos de Deus. Não pude ouvir o que conversavam, mas foi o bastante para que o padre abandonasse a tarefa de dar brilho ao confessionário de madeira e voltasse total atenção para o caso. Nos primeiros bancos, algumas velhotas que realizavam a primeira oração do dia também tiveram sua atenção capturada, voltando-se para mim e retomando a oração com um pouco mais de força. Uma delas havia levantado-se em direção à saída, possivelmente porque havia chegado primeiro ao recinto. Assim que estávamos próximos, disparou:

- Viu só menino mal-educado? – resmungou ela – Criança que anda fazendo malcriação acaba indo direto pro inferno por desagradar a Deus...

Eu não entendia muito bem de céu ou inferno, mas o tom com a qual a anciã havia se dirigido a mim parecia decretar uma sentença irrevogável de condenação a algo infinitamente mais terrível do que ficar de joelhos ou pegar umas palmadas. Imediatamente meu choro ecoou pela igreja, interrompendo orações e diálogos.

- O que a senhora fez com ele?! – a voz de Nana ecoou pela igreja.

- Eu disse a verdade! – devolveu a senhora – criança malcriada que desagrada a Deus vai direto pro inferno!

- E ele vai acabar encontrando a senhora, ou acha que é bonito assustar uma criança dessa idade?

- Senhoras – interveio o padre com uma voz amena, ajeitando os óculos – estamos na casa de Deus, vamos parar com essas discussões e preservar a paz deste lugar sagrado...

A velhota resumiu-se em sair, em um tom de reprovação e fazendo o sinal do Pai-Nosso, arrastando como se todas as décadas em suas costas pesassem toneladas e se transfigurassem em artrite dos joelhos. Nana então pediu para que eu fosse até eles, fazendo que eu me acalmasse durante o breve trajeto.

- Então jovenzinho, como você se chama? – perguntou o padre.

- Eu me chamo Beterraba... – Respondi desconfiado, ainda escondendo-me atrás de Nana.

- Beterraba, não é? – riu descontraído – então Beterraba, conte-me, como são esses sonhos que você tem tido.

Comecei meu relato expondo cada aspecto do meu sonho, embora tenha soado um pouco distorcido pela minha pouca idade. O padre ouvia atento a narrativa, as vezes, desviando o olhar e fazendo um leve sinal de positivo sobre a cabeça, como se houvesse entendido algo presente nas entrelinhas. Ao termino do relato, ele me ensinou uma oração para que todas as crianças fizessem antes de dormir. Como sabia que era muita coisa para uma criança decorar, ofereceu uma cartilha com ela para Nana. Por fim, em um tom de infinita caridade disse que era preciso rezar com muita fé para que meu anjo da guarda ouvisse e viesse me proteger. Um raio de esperança iluminava o meu rosto e me devolvia uma paz perdida há dias. Obedeci quando me mandaram esperar na frente da igreja, embora ainda não entendesse porque as expressões dos dois estavam tão sérias naquela última conversa.

- Por que você tá triste Nana? – perguntei na saída.

- Nada Beterraba – disse tentando disfarçar – isso é sono, assim que eu conseguir descansar, volto a ficar bem. Agora vamos depressa que eu ainda tenho de preparar o café-da-manhã.

Retornamos para o orfanato a tempo de acordar a todos e a tomar um bom café. Naquela noite, antes de dormir, seguimos as instruções do padre. Ajoelhados ao pé da cama, sob a supervisão de Nana, fazíamos nossa primeira oração. As palavras e o pensamento fixo no anjo da guarda foram o bastante para sobrepor as imagens infernais que eram evocadas no meu pesadelo. Aos poucos, a paz voltou ao meu sono, e da mesma forma que a doença, a cura logo se espalhou por todos os outros, fazendo com que o Orfanato pequeno coração voltasse a desfrutar de noites de paz. Embora não soubéssemos que essa paz já possuía seus dias contados.