XXX
 
_ O que está acontecendo aqui? – pergunta a advogada, socorrendo-a.

Jacira respira com dificuldades, está a um passo do desfalecimento.

_Ei...ei! Dona Jacira...ei...respire... socorro, alguém nos ajude, a mulher está passando mal...

_Deixe que eu cuide dela! – anuncia a mulher, num belo Valentino cinza com detalhes em rosa, os cabelos à altura do pescoço, olhos e lábios bem contornados e uma pequena bolsa às mãos. Sua beleza é estonteante e a classe, bem, havia quem dissesse que fosse a imagem e a semelhança de Lady Di, a princesa inglesa que arrebanhou milhões de corações pelo planeta.

_Mas...mas...ela está ficando roxa... peça ajuda, dona Antonella, por favor!

A mulher se aproxima, sorri com graça, pega-a pelas mãos, enquanto Jacira, com os olhos agigantados, não crê no que vê. Seria possível? Como?

_O que está acontecendo aqui? – inquire, rispidamente o carcereiro, ao perceber a movimentação.

_Ela não está bem! – diz doutora Elaine.

O homem, com mais de cento e trinta quilos, levanta-a pela cintura de uma só vez, dizendo:

_Que cê tem, Jacirão? Tá caindo de doida, isso porque nem bebeu. Cada coisa! Pegue um copo d’água pra ela - pede à advogada, mostrando-lhe o bebedouro. _ Ela não anda comendo direito, só vive falando de um tal de Ricardo... Coitada! Tá meio pinel. Pudera! Quem nesse lugar guardaria algum juízo?

Dá o copo à empregada, que bebe bem devagar, recuperando o fôlego aos poucos.

_Acho bom levá-la para a cela – diz o carcereiro-, do que jeito como está, se cair de novo, o diretor vai me pegar no pé, não sabe como aquele bicho é, tudo que acontece aqui é culpa da gente; se quebra um copo, temos de trazer de casa, se uma detenta põe fogo no colchão, desconta de nosso mísero salário, em parcelas infindáveis. Aff! Se ela bater as botas, na certa irá mandar que eu pague o caixão. Tô fora!

_Deixe-a aí! Por favor! – pede a elegante mulher.

_ Mal lhe pergunte, a senhora é quem?

_Antonella Mancini.

_ Também é advogada dela? Está autorizada a permanecer aqui por quanto tempo? - examina-a dos pés à cabeça. _ Aliás, cuidado, com todo esse chiquê, as detentas podem sentir inveja e tocar fogo no barraco, aí a coisa fede de vez. Não sabe como são as mulheres daqui. Umas pestes sem rumo!

_Pode deixar, vou me lembrar de seu conselho, meu amigo.

_Não me respondeu, quanto tempo ficará aqui?

_Somente mais alguns minutos, tenha calma, ela já vai melhorar, acredite.

_Não é melhor a senhora ir? Eu finalizo todos os procedimentos – sugere a advogada.

_Não, minha querida, tenha paciência! Ela já está melhor, não é Jacira?

_Sim!- responde, com a respiração normalizada. _ E depois vou bater um papo com você, Mirtão...Então as mulheres que estão aqui são umas pestes sem rumo? Toma vergonha nessa cara, na hora de pedir um cigarro emprestado, elas prestam, né? Bicho atrevido! Sem-vergonha! Safado!

_Cuidado, aqui sou autoridade! – ameaça o homem com cara de bolacha.

_Só se for pras suas negas!

_ Pronto! Já melhorou! Chegou aqui há pouco e já tá colocando ordem no barraco. Bom, vou dar mais alguns minutos a vocês, se o diretor aparecer, diga que fui levar a Polaca ao dentista, que se queixava muito de dor. Não vão me entregar, hein? O velho é um porre!

_Fique em paz! – tranquiliza Antonella, voltando-se à advogada. _ Pode nos deixar a sós, querida?

_Mas...mas...ainda não terminei os procedimentos.

_Terá o tempo que necessitar, preciso apenas de alguns minutos com essa boa mulher. Posso?

_Venha comigo, dona advogada – chama o carcereiro. _ Vamos dar uma volta pelos becos escuros do prédio. Tem muita coisa pra senhora vê! Gosta das Noites do Terror do Playcenter? Pois aqui é muito melhor! Garanto!

_Está melhor?

_Sim! – responde Ricardo ao jardineiro._ O que é isso? – encontra uma carta em cima da mesa. É da faculdade. Conseguira a nota necessária para avançar ao semestre seguinte.

_Onde o senhor estava? O que teve de jornalista à sua procura, parecia um bando de marimbondos... Até pensei que tinham vindo aqui por conta de minhas queixas ao sindicato; dei com os burros n’água.

_Estava por aí, pensando na vida! Bem, volte ao serviço, hoje não estou muito bom para prosear. Desculpe!

Entra no quarto, olha para o computador, lembra da primeira vez que conversou com o Desbravador, sente um enorme vazio no peito, senta-se à cama; a vida lhe corre acelerada diante dos olhos. Quantas dores ele teve de enfrentar para terminar sozinho... A casa parecia um mausoléu. Cadê o pai, apesar de toda sua loucura, para o aborrecer? Jacira, para lhe dar carinho e muitos conselhos, quase todos ignorados? E mesmo Marcos, bandido da pior espécie, que sempre o tratou com cordialidade, apesar de lhe querer tanto mal? Só lhe restava Luís, o jardineiro alucinado. Que sina a sua!

Liga o computador – já consertado -, entra em várias salas de bate-papo, como se quisesse encontrar o amigo Gabriel, agora morto. Desliga, desce as escadarias, vai até a adega, saca-se de uma garrafa do legítimo vinho do Porto, enche o copo, mas ao levá-lo à boca, lembra-se das broncas de Jacira e não o toma; vai à varanda, olha para os lindos jardins da propriedade, volta-se para a sala de estar, precisa dar um rumo à sua vida. Então decide ir à faculdade, tem de ocupar a cabeça. Retira o carro da garagem e deixa Alphaville. Já em São Paulo, adentra ao estacionamento. Vai à secretaria, renova a matrícula; alguns se solidarizam com sua dor, poucos na verdade, porque ali era malquisto. Sempre foi, devido à arrogância. Quando estava retornando ao carro, ouve alguém o chamar, ao virar-se, dá de frente com a garota de quem levou o tapa.

_Como você está? Lembra-se de mim? Claro que não! Fui apenas mais uma em sua lista...

_Sim! Me lembro! – percebe que a garota está grávida de pouco tempo.

_Meus sentimentos! Deve estar sendo muito difícil, né?

_Nem imagina!

_Quer tomar um suco? Tenho ainda alguns minutos até a próxima aula.

Não responde.

_Vamos! Poderemos conversar um pouco. Não está chateado pelo tapa que lhe dei, né? E olhe que não foi um dos meus mais fortes.

Dá um risinho sem graça.

_Como você se chama?

_Louise! Mas não precisa falar o seu, quem não conhece Ricardo Médici?

_Grávida?

A moça pensa em responder.

_Desculpe, não queria ser inoportuno.

_Sem problemas! Já é público.

_Está de quanto tempo?

_De muito pouco.

_O que desejam? – pergunta o atendente da lanchonete.

Fazem o pedido. Ricardo está encantado com a graça da garota. Como não pôde ter percebido aquele sorriso de princesa, aqueles olhos verdes, vivos e penetrantes, aquela boca carnuda..? Agora é tarde! Perdeu-a assim como todos os outros.

_ O que tanto me olha? – questiona a jovem, encabulada. _ Não estou com a boca suja de mostarda, né? Se não sabe, sou um desastre com molhos.

Ele sorri.

_Coma o lanche, vai esfriar! Vamos! Sei que está triste! Mas tem de tentar, senão cairá duro, e não quero isso ao pai de meu filho.

_E onde está o pai de seu filho? – não acompanha o raciocínio da garota.

_Está diante de mim.

Perde o rumo da conversa.

_O que foi? Não vai me dizer que perdeu o fôlego? Se continuar assim, dou-lhe outro tapa, hein? – sorri com gosto.

_O que disse? Não entendi!

_O que não entendeu? Vou precisar desenhar?

_Disse...disse...que...- balbucia.

_Que é o pai de meu filho, aliás, de nosso filho.

_Mas...mas...como assim?

_Ricardo – sua voz cai-lhe como um beijo-, eu lhe disse, você foi o meu primeiro e único homem. Não preciso mentir, não estou atrás de seu dinheiro, nem dele preciso, mas tinha de lhe contar, alguém aqui – aponta para o ventre – está sendo gerado e certamente desejará conhecê-lo. Se não quiser, entenderei, afinal, é de todas e não é de ninguém. Ou seria de todos? Depois daquele e-mail, fiquei muito confusa, por isso não o procurei.

Seus olhos enchem-se de lágrimas. A vida lhe dava outra oportunidade de recomeçar, agora na presença de um filho e de uma jovem linda, a quem tanto maltratou.

_Podemos recomeçar do zero? – pede, limpando as lágrimas. _ Sou Ricardo Médici e a senhorita?- dá-lhe a mão.

_ Senhorita? Que coisa mais cafona! – gargalha. _ Esperava algo melhor.

_ Foi tão mau assim?

_O que você acha?

_Eu não acredito que esteja aqui, diante destes olhos que a terra há de comer. Como? – pergunta Jacira à mulher.

_Não foi fácil, mas deu certo, sobrevivi.


_Dona Nathalia...

_Não repita isso de novo! – adverte-a com veemência._ Trate-me apenas por Antonella.

_Mas... mas isso é um milagre! Como ressuscitou dos mortos? Estamos no juízo final? Vixe! Tenho muitas promessas a pagar, porque aquele seu filho é danado demais....Se bobear, devo tá com o nome no SPC do Céu! Ai que medo.

_Você não muda mesmo, né? Que graça de pessoa! Como senti sua falta, minha amiga! – abraça-a bem forte. _ Não sabe o que passei para estar aqui hoje. Desafiei a lei do destino, sabe o que é isso? É se pôr na contramão de tudo aquilo que imagina ser normal. E para quê? Para que pudesse ter uma nova oportunidade.

_Mas como escapou do acidente? Pra mim tava morta, até pensei que a tinha visto em espírito, lá no quarto de seu Leonardo...O que não faz a nossa imaginação, né? – constata. _Pois me conte tudo, não estou entendendo nada!

_Marcos...por que fez isso? – rememora a cena do carro, onde se encontrava toda ensanguentada.

_Não fui eu senhora, juro!

Vê a máscara e se cala.

_Não me julgue por isso! – pede o chofer.

_Nunca lhe fiz mal algum! - diz ela.

_Já disse, não fui eu!

_Mas o sangue lhe escorre das costas...são das tesouradas.

_Eu as recebi de outra pessoa.

_De quem? Que loucura é essa?

_De seu marido!

_Leonardo??? – aterroriza-se. _Mas...mas...mas...por quê? Ele jamais faria mal a Ricardo...

_Encenou! Queria era o seu fim! Mas Jacira chegou do nada e o impediu de terminar o serviço.

_ E por quê? Não...não...não pode ser!

_Para ficar com toda sua herança. É um homem doente, que não consegue mais discernir a realidade da fantasia, o desapego da ganância, o amor do ódio.

_E como sabe disso? Você é um mentiroso!

_Não sou não! – responde, enquanto dirige o carro com muita dor. _ Eu me peguei com ele, a princípio pensei que fosse um bandido, mas quando vi aquela pulseira de prata com o nome dele, entrei em pânico. Ele pediu que eu o soltasse, se não o fizesse, findaria com a vida de Márcia, sua irmã, a quem tanto amo.

_Meu Deus! – desespera-se.

_E ele vai tentar de novo... não tem mais limites! Mas não conte a ninguém, pode até me acusar do crime, mais saiba, não fui eu quem fez isso, basta olhar para as costas dele e verá as mesmas tesouradas.

_Ele está no interior.

_ A senhora ainda acredita nas histórias que ele conta?

Nathalia geme de dor.

_Posso ajudá-la...- sugere.

_E por que faria isso?

_Não sei, nunca prestei, só conheci o crime; com a senhora é diferente, sinto paz, como se fosse um anjo, sei lá...

_ E o que pretende?

_A senhora precisa sumir e logo!

_Sumir para onde? Viajar?

_MORRER!!!

_Você vai me matar? Não faça isso...por favor, tenho um filho pequeno.

_Não! Será tudo de mentira! Mas é a única forma de fugir daquele homem, ouça o que estou dizendo, ele carrega a seiva do mal nas veias e não pensará duas vezes em tentar lhe tirar a vida de novo, talvez não tenha a mesma sorte.

_No que está pensando?

_Tenho alguns amigos no morro, eles irão ajudá-la, aliás, o que fez foi muito arriscado, não deveria ter ido lá, o carro estava cheio de sangue, se seu Leonardo o encontrasse daquele jeito, não sei o que teria feito.

_Você sabia que eu...

_Tem muitas coisas que fico sabendo e faço cara de paisagem.

_E o rapaz... Sobreviveu?

_Ninguém soube me explicar. Mas do jeito como estava, certamente não! Mas fique tranquila, seu segredo estará guardado comigo para sempre!

_Por que faz isso por mim? Sei que é um bandido perigoso, Lícia me contou, após ouvir a conversa de Giacomo com Leonardo, mas ao invés de me pôr um fim, ajuda-me? Por quê?

_Já lhe respondi, não sei... Só sinto que devo fazer!

_Por que se presta ao jogo sujo de Leonardo?

_ Sou seu escravo...se não fizer o que me pede, mata sua irmã.

_E por que não o mata?

_Não adiantaria, ele tem vários olheiros; se algo lhe acontecer, sua irmã pagará de qualquer forma. Estou com as mãos amarradas – lamenta. _ Então, faremos assim, a senhora simulará receber uma ligação, numa dessas noites em que seu Leonardo for ao shopping com o pequeno Ricardo, e sairá louca à sua procura. Quando estiver na Castelo Branco, perto das zero horas, Pangaré posicionará o veículo no meio da estrada e apagará os faróis, tudo terá de ser muito rápido, porque caminhões e carretas passam voando, um deles o acertará...

_Mas ele vai morrer...

_Ele não!

_Mas e eu?

_Será retirada antes, durante o trajeto, e quem tomará seu lugar será uma outra mulher, alguma viciada do morro, cuja dívida esteja fora de controle.

_Mas não posso deixar que alguém morra por mim.

_Morrerá de qualquer jeito! Esses viciados não têm paradeiro.

_Meu Deus! Isso é crime!

_É pegar ou largar. Se desistir, terá de enfrentar seu Leonardo sozinha, porque, da forma como está, não pensará duas vezes.

_Mas perceberão que a pessoa é diferente...

_A senhora desconhece o crime, madame. Vamos dar um trato nela, do rosto não sobrará quase nada.

_Meu Jesus! Não posso aceitar isso!

_Dona Nathalia, essas pessoas já estão mortas, não entende? Se não fizer isso, deixará de ver o seu filho crescer.

A mulher não acredita participar de uma trama dessas.

_É isso ou nada! Depois que o carro rolar, já deixei uns amigos de prontidão, vão resgatar o corpo e levá-lo a um hospital mais próximo, de onde sairá em caixão lacrado. Vai dar certo! Acredite em mim!

_E não vai me pedir nada em troca?

_Apenas que ore por minha alma.

_Mas que bandidinho bom, né? - constata Jacira, ainda atordoada._ Pena que se matou depois que soube que a megera da sua irmã, com todo respeito, foi dessa para uma pior.

_E como sabe disso?

_Aqui tem televisão, minha filha! E a mulherada é gamada no Datena. Nunca vi coisa igual! Mas, mudando de pato pra ganso, por onde andou todo esse tempo?

_ Fui para fora do país, mudei de nome e a ele dei um outro passado, nada que pudesse chamar a atenção; vivi sozinha por muitos anos, até que conheci um novo amor e me casei outra vez.

_E teve outro filho?

_Não! Ricardo é único e assim permanecerá.

_Ele precisa saber dessa história.

_NÃO! – adverte-a.

_Precisa saber que está viva!

_Jacira, para me salvar da fúria de Leonardo, cometi vários crimes, já não tenho a alma pura de antes.

_Mas...mas...ele precisa de uma mãe...

_E o que você é dele? – cobra-a com serenidade. _É a mãe dele e assim ele a trata. Sei de tudo. Marcos sempre me ligava. Ele podia ser o que fosse, mas me salvou daquele demônio.

_Eu sou só uma pobre criatura do interior...

_De uma alma bela, que dinheiro nenhum compraria. Você transferiu todo o amor que sentia por Suzicreide a Ricardo e fez dele um homem de bem...

_Não! Eu falhei! Ele tem muitos defeitos, alguns que até me envergonham.

_Nada que o tempo não conserte! Escute! – levanta o rosto dela com as mãos, de modo que os olhos de ambas se encontrem. _Não posso voltar, principalmente agora, que as feridas começam a cicatrizar.

_E o que fará?

_Permanecerei por perto, mas como Antonella; Nathalia morreu naquele acidente.

_E não sente vontade de voltar, tocá-lo de novo, ouvi-lo..?

A mulher emudece.

_Seu Leonardo morreu, assim como a demente da sua irmã, então, do que tem tanto medo?

_De mim!

_Como assim?

_Não há como preencher uma lacuna no tempo sem reaver as lembranças que nunca existiram.

_Fale mais fácil, a burra aqui não entendeu nada.

_Hoje tenho um outro marido, uma nova história; se apagá-la, tudo virá à tona, e a Justiça certamente encontrará uma forma de me condenar.

_Os inocentes pagam?

_Como sempre! Mas estarei por perto! Quero acompanhar o meu filho até o fim da vida, talvez um dia, quando estiver preparada, retorne à trama de origem. Mas deixemos de papo, agora preciso tirá-la daqui, por isso contratei esse escritório.

_Estão me acusando de assassinato.

_Você sairá dessa, farei o que for preciso, desde que...

_... complete...

_Desde que ame para sempre o meu filho e o continue tratando como seu.

Jacira a abraça e chora.

_Acabou a visita! – anuncia o carcereiro.

_Nunca vou esquecer o que fez por minha, quer dizer, nossa cria! Eu te amo, minha amiga!

Jacira, apesar dos esforços das advogadas, foi condenada a 18 anos, 5 meses e 6 dias de reclusão, para o desespero de Ricardo, que terminou consolado por Louise.

O tempo passa, a história continua a ser escrita, a vida não perde o rumo...

A mansão é vendida e a direção das empresas é entregue a um conselho formado por inúmeros acionistas. Ricardo recebe a filha que nasce, dando-lhe o nome da mãe, Jacira. Forma-se em Economia, monta um escritório de assessoria financeira e vive feliz ao lado de Louise. Do passado, procura não se lembrar, a não ser da empregada, que cumpre sua pena com a mesma bondade de sempre. Aliás, no presidiário tornou-se referência; com seu jeito bem-humorado, ensinou as outras detentas a costurar, a cozinhar pratos sofisticados, a arrumar uma boa mesa; aproveitou para terminar os estudos, agora tem o colegial, como diz. O diploma está colado em sua cela, à altura dos olhos, para que nunca se esqueça de que a vida continua e que cada obstáculo deve ser enfrentado com a cabeça em pé, não importando as dificuldades, né, Suzicreide?

O tempo passa, o ano é o de 2008...

_A senhora mostrou-se recuperada, não é mais uma ameaça à sociedade; pelo contrário, demonstra uma grande capacidade de fazer o bem ao próximo, por este motivo, concedo-lhe o direito à condicional. Mas se violar qualquer dos normas estabelecidas, regressará ao regime fechado. Comporte-se, dona Jacira! – aconselha o juiz, um senhor de quase setenta anos.

Abre o portão, sai com sua trouxa nas costas, admira a luz do sol por alguns segundos, olha para os lados sem prestar muita atenção, então pega o caminho do ponto do ônibus, quando uma voz bem fina lhe atrai a atenção.

_Vovó..?

Vira-se.

Jacira está com os bracinhos abertos à sua espera. Ela não acredita. E quando levanta a cabeça, encontra-se com Ricardo, Louise e mais um bebê de alguns meses no colo.

_Mãe...vamos! Viemos lhe buscar! – anuncia, emocionado.

_Ri-Ri-Ri-cardo! Meu moleque...meu moleque do coração...

Corre abraçá-lo.

_Esta é Jacira, sua avó – diz à menina.

A mulher a pega no colo. Que alegria!

_E este é o bacuri de que me disse na última visita?

_Sim, mãe!

_É lindo! Até parece você petitico, sem querer puxar a sardinha pra nossa família, viu, fia?

Louise ri.

_ E como se chama?

_Gabriel.

_Gabriel? – espanta-se._ E por quê?

_Aquele que salva.

_Meu filho...- beijou-o com toda a ternura de uma mãe apaixonada.

A distância, Nathalia os acompanha emocionada.

O metalúrgico, depois de reeleito, faz a sucessora, que também se beneficia de uma segunda oportunidade; diferente do mestre, a aspirante à presidência sofre o impeachment, sendo substituída pelo vice, que passa a faixa ao tresloucado.

_Gabriel, vá se vestir, daqui a pouco iremos ao Ibirapuera.- determina Ricardo. Vamos! O que está procurando? – nota a preocupação do garoto, que joga as almofadas para todos os lados. _ Fale!

O garoto, hoje com 12 anos, responde, bastante aflito:

_Meu celular, pai! Não sei onde deixei!

_Eu vi na sua cama - responde Louise, da cozinha. _ Como esse menino é esquecido, meu Deus!

_Puxou prá quem, né, Suzicreide? Hum! É o xerox do pai. Ainda bem que Jacirinha se salvou.

Ao entrar no quarto, Gabriel encontra o aparelho. Ao ligá-lo, recebe um WhatsApp de um número desconhecido. Curioso, abre a mensagem.

_ Você quer conversar, estou louco pra te conhecer.

_Quem é? – escreve.

_ Sou apenas letras... Consoantes e vogais que se desprenderam de um corpo físico na tentativa irrefreável de encontrar alguma essência que as alimente eternamente. Mas pode me chamar de O Desbravador de Identidades.
 
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O DESBRAVADOR DE IDENTIDADES
 
Novela de
CARLOS ROGÉRIO LIMA DA MOTA
 Baseada na obra homônima de 2003, do mesmo autor.

NÚMEROS DA PRODUÇÃO:
Escrita em 45 dias,  de 30 de dezembro de 2020 a 13 de fevereiro de 2021 , em 30 capítulos, 293 páginas e 90783 palavras, com publicações quase diárias no site Recanto das Letras.

ILUSTRAÇÕES:
Andrea Mota

AGRADECIMENTOS À EQUIPE DE LEITORES INTERATIVOS:
Josemara Bragança
Luciana Clem Tods
Elaine Teixeira Pinto
Mirese de Lucca Morgado
Rosana Ferreira
Juliana Guimarães

Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade, terá sido mera coincidência.