XXVIII

De volta ao quarto, Gabriel observa os recortes que fez durante anos da família Médici e chora, como quem se arrepende de um crime; tal desatino lhe toma conta, puxa cada imagem e matéria e as rasga com gosto, como se quisesse se livrar para sempre daquele pesadelo. Não podia ter feito aquilo, sua missão na terra não era a de machucar as pessoas, por mais golpeado pelo destino que estivesse. Sentindo as pernas fraquejarem, agarra-se à mesa do computador, toma fôlego e consegue chegar à cama, de onde liga para a polícia. Precisava dar um fim a esta trama, ainda que terminasse atrás das grades, por que como provar que não ceifara a vida do magnata Leonardo Médici?

Em minutos a polícia chega ao casebre, espanta os curiosos, encontra o corpo do homem mergulhado em uma poça de sangue e a ele inquire o motivo daquele assassinato. Por se apresentar muito debilitado, os policiais desacreditam, num primeiro momento, que ele seja o responsável pelo assassinato.

É recolhido à delegacia mais próxima, enquanto o esposo de Nathalia segue para o IML.

_ O que aconteceu de verdade, seu Gabriel? – interroga a delegada Josemara, bastante curiosa. _ Como deu fim à vida daquele homem e por quê?

O bombeiro abaixa a cabeça, corre as mãos pelos cabelos ralos, arruma a gola da camisa, se ajeita na cadeira, mas não responde à pergunta.

_Preciso que me ajude, foi o senhor mesmo que matou doutor Leonardo Médici? Não tenha medo! – a mulher o examina com desvelo, há que uma pena em seu olhar, como se também não pudesse acreditar que aquele rapaz, completamente dominado pela doença, pudesse ser capaz de tal brutalidade.

_Leonardo, você nunca vai me deixar, não é? – pergunta ao amado, em trajes de banho, num iate cortando o Mediterrâneo.

_Óbvio que não, meu lindo! Você é tudo para mim! Não sei mais viver sem você! Quisera Deus que a vida terminasse hoje, morreria feliz em seus braços, com a certeza de que nos encontraríamos em outra vida, para, juntos, continuarmos a longa jornada pela eternidade. Ainda não percebeu que somos inseparáveis, almas gêmeas, que sentem as mesmas coisas e que precisam uma da outra para ser feliz?

_Você não está mentindo para mim, né?

_Não sou homem de mentiras, Gabriel! Se digo, porque é o que sinto, meu querido. Sabe, depois que o encontrei, o sol passou a nascer mais feliz pra mim, e tudo ganhou cor e um aroma peculiar. Na verdade, você é a primavera que floresce em minha alma. Obrigado por EXISTIR!

O rapaz o beija, comovido.

_ Mas e sua esposa?

_Nathalia? Assim que voltarmos ao Brasil, pedirei a separação, quero passar todos os minutos de minha vida na sua presença. Concede-me este direito, meu príncipe de contos de fadas?

_Senhor Gabriel, ei – estala os dedos, içando-o das lembranças-, o que há? Está tão absorto!

_ Nada, delegada! – responde, inconformado. _ Doei a este homem cada segundo de minha humilde existência e o que ele fez? Atirou-me aos leões, como se eu não tivesse qualquer importância.

_ O que quer dizer com isso? – estranha. _ O senhor e seu Leonardo...

_ ... realmente não o matei! – corta a conversa. _Nem se quisesse! Veja minha condição, estou mais para um morto que para um assassino.

_Então quem foi que fez aquilo? Com certeza é obra de um profissional, o corte foi preciso, não dando chance à vítima para que reagisse.

_ Foi o chofer dele.

_Nossa! E por que faria isso? Alguma desavença?

_Todas!

_E como encontrar este sujeito?

_ Procure por Marcos, Faísca ou Ronaldo Aleluia...

_São três?

_Todos os três são a mesma pessoa.

_Ronaldo Aleluia ...- a delegada perde-se nos pensamentos_...esse nome não me é estranho.

_Tente Favela Pantanal, Carandiru...

_É claro! – estala os dedos de novo. _ Estamos falando do criminoso que levou para a cova mais de trinta e cinco policiais na década de 80, mas...mas...ele está morto, segundo os registros; deve estar enganado. Veja ... – volta-se para o computador, onde digita o nome do criminoso...- aqui diz que ele perdeu a vida numa das maiores rebeliões que esse país já assistiu.

_ E a senhora acredita no que lê? Pois o entrego de bandeja, mesmo depois de seus arquivos o decretarem morto há anos.

Vítima de uma súbita vertigem, apoia-se à mesa e só não vai ao chão porque a mulher o segura.

_Pessoal, acuda, o rapaz não está bem.

_Pode deixar, está passando, foi apenas uma tontura.

_Está mesmo melhor?

_Sim! Posso lhe pedir um favor?

_Diga! – responde, comovida com o estado dele.

_Posso ligar para uma pessoa, preciso me confessar, abrir de vez o meu coração.

_Vai chamar o padre?

_Quisera Deus! Minha alma não tem mais salvação.

_Vejo que é uma pessoa boa e o brilho de seus olhos não me enganam. Aqui neste lugar estou acostumada com gente de todo tipo; algumas inocentes, outras suspeitas e a maioria culpada. Já você, desde o momento que o vi entrar aqui, tive a certeza de que não era o criminoso que deveríamos procurar. Mas seja lá o que tenha feito, não deve ter sido algo de muito grave, que não dê para reparar... Consegue me entender?

_Quem é? Como? Meu pai? Não, não pode ser! Morreu? - desespera-se Ricardo, na outra delegacia. _ Quem está falando? Quem? Ga-Gabriel? Isso é uma brincadeira? Mais uma? Quer me enlouquecer de vez, como tentou pela internet? Não pode ser! Onde você está? Sei! Estou indo para aí! Se estiver mentindo, juro, acabarei com sua vida, miserável! – chora, enquanto Jacira, algemada, acompanha de longe seu sofrimento, sem poder fazer nada. A mulher é jogada num camburão e levada ao centro de detenção provisória de Franco da Rocha, acusada de homicídio doloso, onde aguardará o julgamento.

Ricardo até tentou atenuar as circunstâncias, alegando legítima defesa, mas dona Esmeralda, localizada, desmentiu o rapaz, confirmando à polícia que Jacira invadira o consultório, ameaçando a mulher.

O caso chegou à mídia, estava em todos os sites, revistas e jornais mais importantes do país. A ilustre psiquiatra Márcia Médici, uma das mais importantes benfeitoras da cidade, havia sido assassinada por uma mulher de origem incerta, possivelmente uma de suas pacientes atendidas graciosamente. Por mais que Ricardo lutasse contra as hienas da escrita, mais elas o devoravam com fatos alheios à realidade. E ao receber a ligação da morte do pai, só lhe restava perder o chão.

Saindo da delegacia, entra no carro. Liga o motor e só não atropela um andarilho, porque freia com tudo. Saindo, cobra explicações.

_Discurpe moçu, neim vi u sinhô! Ieu tava quereno chegá à lata di lixo, às veis a genti encontra arguma sobra di boa qualidade..

_ Eu o conheço – diz Ricardo, relembrando-se do dia que o destratou. _ O senhor é... é... o Jesus!

_Ieu nãum, Jisuis ié meu fio. Ieu sô José. Mais si lembra di nóis? Qui bão! Arguma coisa nóis fez procê.

_Cadê sua família?

_Jisuis foi levado pelas moça da prefeitura, tava muito magrinhu i Maria intá até hoji atrais di arguém que o tiri di lá. Sabi como uma mãe é, né? Num gosta di perdê nenhum fio.

_E por que não está com ela?

_ I pruquê deviria? Nãum sô o cordero di Deus -responde, enquanto revira a lata de lixo.

_Hã! Do que ele está falando?- pergunta. _ Está com fome? Quer um dinheiro?

O homem se nega a aceitar.

_Mas está com fome... precisa! Tome! É só o que posso lhe ofertar neste momento!

_Só dinhero? Então tá ruim! Pensi mió, podi mi dá argo a mais.

_Uma peça de roupa? Quer minha jaqueta? Está muito frio. Tome – retira-a do corpo, para a alegria do homem, que não demonstra.

_Num percisa!

_Eu faço questão.

O homem veste a roupa do jovem.

_Mais qui linda, tô mi sentindo elegante! Brigadu! Deus te pagui.

_Deus não me enxerga, infelizmente! – entra no carro e desaparece.

_Aí qui cê si ingana, meu rapaiz, Deus já tá dentru ducê! – comemora, retirando o casaco e o ofertando a um outro andarilho. _Só ucê qui ainda num percebeu.

_Estou procurando por Gabriel, um rapaz assim...assim meio...- tenta descrevê-lo.

_Pode deixar – responde Josemara, aproximando-se. _ Ele está à sua espera. O que é dele?

_Nada! Ele conheceu meu pai! É verdade que ele está morto?

_Ele quem?

_Meu pai.

_Infelizmente! Está no IML. Estamos à procura do assassino, um tal de Ronaldo Aleluia, conhecido no morro como Faísca, e em sua propriedade como Marcos.

O rapaz horroriza-se.

_Marcos fez isso? Por quê?

_Ele é um bandido perigoso, dado como morto há anos, que servia aos interesses mais escusos de seu pai, segundo nos relatou o bombeiro, a vítima neste caso.

_Há algo de errado nisso tudo! Se foi meu pai que morreu, a vítima não pode ser o bombeiro. Que prendam Gabriel, deve ter tramado tudo isso, como fez comigo.

_O senhor acredita mesmo nisso? Veja-o e me responda!

Abre uma porta, Gabriel está deitado sobre duas cadeiras, como se aguardasse o próprio fim. Ricardo emudece, entrando na sala.

_Você veio! – alegra-se o homem. _ Como queria lhe dizer muitas coisas, mas acho que o tempo que me concedeu será insuficiente.

_Fique com ele enquanto não chega a ambulância- pede a delegada._ Disseram-nos que estariam aqui em até dez minutos, mas com esse trânsito, sabe-se lá...

_Por que não o leva numa viatura policial?

_Estão todas na rua...A violência não dá trégua! – responde, fechando a porta.

_ Não queria lhe fazer mal, mas não havia outra forma, seu pai não me deixou escolha.

_ Por que fala assim de meu pai? Sei que tiveram um caso...

_Caso não, nos amamos de verdade, mas ele cedeu à maldade e entregou seu coração ao infortúnio.

_Você destruiu o casamento e a felicidade de minha mãe.

_Nunca houve felicidade naquela relação, tudo foi uma farsa, seu pai a queria pela fortuna que carregava, não pela mulher que era.

_Mentira! Não quero ouvir isso! Você está me enganando outra vez, assim como fez, ao se vestir de Desbravador.

_Ricardo, ouça, estava tão inebriado pelo sentimento da vingança que não percebi o quanto é um rapaz de bom coração; hoje, diante de ti, sinto-me envergonhado, porque imaginei que pudesse atingir ao seu pai se o destruísse. Eu estava errado. Você é melhor do que ele, jamais o acertaria, por mais que quisesse. Em seus olhos encontro paz, um sentimento que não me tomava há muito tempo. E como é bom sentir-se em paz.

_O que quer comigo? Você me odeia...

_Não, nunca o odiei, quis acreditar nisso, mas como tudo, não passava de ideias fantasiosas. Sempre o amei como um filho, ainda que também não soubesse disso.

_Está delirando, só pode!

_Não! Aí que você se engana...

_Então...como assim?

_ Você o trouxe, Leonardo? Como fez isso? Nathalia ficará uma fera quando souber.

_Este é Ricardo – entrega-lhe a criança.

Com ela no colo, Gabriel sorri.

_ E como é lindo! Meu Deus! Se um dia tiver um desses, certamente serei o pai mais feliz deste mundo. Mas me preocupo, se Nathalia souber que ele está aqui, o mundo ruirá.

_ Ga...ga..biel...- sussurra o menino, para o espanto dos dois.

_ Ele gostou de você! – anuncia o patriarca. _ Isso é raro! Ricardo é meio arredio.

E não é que gostou mesmo. Abraça o bombeiro como um novo amigo, para a emoção do rapaz, que enche o peito de felicidade.

_O tio também gosta de você! Vamos brincar? - coloca a criança no chão. _ Venha, temos muito a fazer... Leonardo, pegue a bola, vamos jogar no campinho da frente até nos esbaldar.

_Ga...ga...biel, queio chocolate.

_É mesmo? – sorri, encantado. _ Deixe-me ver -mexe em todo o armário, como não encontra, pede a Leonardo que espere, irá até a venda buscar o doce para o menino. E assim o faz. Mas quando volta, Leonardo já não estava. Ricardo também não. Com o chocolate em mãos, senta-se no sofá, sonhando com o dia em que teria uma criança para cuidar, beijar e amar muito.

_Eu não me lembro nada disso! – diz o jovem Médici, com uma lágrima no canto dos olhos. _ Está a me confundir! Não o julgo pelo caso que teve com meu pai, quem sou eu para atirar a primeira pedra...

_ ... a uma criatura que já está morta? – completa. _Responda!

_Não...não quis dizer isso!

_ Eu sei! Sinto dentro do coração o quanto guarda da mais pura bondade humana. Apenas se fazia de arrogante porque esta era a aula que recebia todos os dias de Leonardo. Mas depois que me salvou naquele hospital, sem ao menos me conhecer, percebi o quanto estava errado a seu respeito e me envergonho a cada minuto pelo que fiz.

_Meu pai foi o responsável por tudo isso, né?

_Infelizmente! Quem mais eu amei, foi aquele que mais me destruiu, mas graças a Márcia...

_Não, filho, ela só o envenenou...– revela a mãe, entrando na sala.

_Mãããããããe!!!!!!! – enche o peito de ar e chora muito. _ Senti sua falta! Me abrace, estou me sentindo muito só!

Assim a mulher o faz, tendo como testemunha o jovem, que não se conforma com o que lhe fizeram.

_Não foi Márcia que o salvou, mas dona Nathália, disse-me Jacira.

_Na-thalia? Ela? Logo a mim? Não pode ser! – pergunta, desorientado. _ E por que ela faria isso? Eu...eu...eu era o amante de seu esposo! Não! Há algum erro aí, Márcia me disse...

_Ela mentiu!

_Meu Deus! O que eu fiz, mãe? Quase destruí este garoto! Mas agora sei para quem ele puxou, é a mãe em pessoa, com a mesma generosidade.

_Não! Minha mãe era única!

_Assim como você! Dê-me sua mão!

Ricardo resiste num primeiro momento, mas acaba cedendo.

_O que lhe fiz não tem perdão, poderia ter acabado com sua vida, mas, se um dia puder, gostaria de receber o seu perdão, ainda que ele não me livre da zona cinzenta para onde me encaminho.

Ele nada responde.

_Perdão! Perdão! – o ar começa a lhe faltar, enquanto repete uma, duas, dez, vinte, cinquenta vezes o mesmo pedido, e ao ouvir o sim de sua maior vítima, fecha os olhos devagar e deixa esse mundo, livre como uma pomba. O Olimpo em festa, comemora o regresso de seu deus grego, aquele que em terra, sofrera as maiores atrocidades dos homens.

_A ambulância chegou...- anuncia Josemara, abrindo a porta, e se retraindo em seguida.