XXVII

Gabriel está inerte, com lágrimas nos olhos, completamente traumatizado com a forma como Leonardo chegou ao fim de sua vida miserável. Marcos, em um só golpe o mandou para sempre ao inferno, onde terá altos papos com as almas condenadas. Mesmo diante de uma poça de sangue, o motorista não esboça qualquer reação, é como se o peso do mundo lhe fosse retirado das costas. Com receio de que fosse de novo o alvo do matador, ele se recolhe à parede, com as mãos finas e trepidantes cobrindo o rosto.

Marcos retira o canivete do corpo de Leonardo, limpa o sangue com um lenço, foca o rapaz, dá um passo em sua direção, mas é impedido de avançar pelas palavras da mãe dele, que de novo, o desorientam. Então dá um passo para trás, respira fundo, abaixa a cabeça e diz:

_Fique tranquilo! Nada lhe farei.

O bombeiro não abaixa a guarda, porque sabe, daquele criminoso pode esperar de tudo. Se está doente, deformado, com a vida por triz, deve a ele, que não teve qualquer misericórdia ao ordenar àquelas figuras sinistras do morro que o destruíssem. Cumpriu todas as etapas do crime com uma frieza ímpar, só não conseguiu findar o plano, porque Márcia – pensa ele, a retirou de lá antes que o último sopro divino o deixasse.

_Já disse, Gabriel, não vou lhe fazer mal! Aliás, o tempo me ensinou algumas coisas, como a reconhecer meus erros, e um deles foi você, por isso, com o coração aberto, peço-lhe desculpas pelo que lhe fiz.

Ele se surpreende.

_Des-des-cul-pas??? Pede-me desculpas???– a voz trepida, indignada. _ Olhe para mim, veja o que você deixou para trás...

_Ainda que não me perdoe, tenho de dizer, arrependo-me muito pelo que lhe fiz, mas este sentimento é algo novo, brotado há alguns dias, depois que sua mãe me disse o quando ajudava as pessoas, que vivia para salvar vidas, e que agora, à mercê do fosso do esquecimento, mal consegue salvar a própria. Nada justifica o que fiz, nada! Mas saiba, tive de fazer, foi uma ordem expressa desse canalha, que agora jaz aos nossos pés.

_ E por que não se negou? Nunca fiz mal a ninguém, queria apenas ter uma vida simples e feliz...Só isso!

_Se soubesse...- inspira com dificuldades-... ele tinha o controle de minha vida e, se me negasse a cumprir seus caprichos, quem iria à forca seria o amor da minha vida. Assim como você, fui uma alma aprisionada a um feitor que se regozijava da dor de seus semelhantes.

_E por que não o parou? Você podia! Se não com a persuasão, mas com a arma, assim como o fez agora.

_ Não tem ideia do que ele era capaz, não podia colocar em risco a única mulher que amo nesta vida.

_ E em nome desta mulher, sacrificou tantas outras pessoas, condenando-as a uma vida sem rumo? Não! Isso não justifica! Sabe o que sinto quando me olho no espelho ? – revolta-se. _ Nada! Porque não me reconheço! É como se minha imagem pertencesse à outra pessoa, que nunca vi na vida... – derrama-se em pranto. _ Pedir desculpas pode até aliviá-lo, mas não a mim, sua vítima.

_Você não entende, criatura! Fui obrigado! Fui obrigado! – cede às lembranças.

_O senhor fará o que eu mandar, diretor – ordena, com um envelope em mãos-, caso contrário, entrarei em contato com Brasília e em pouco tempo estará estirado em algum beco imundo da periferia, com os miolos expostos.

_ Mas não posso fazer isso, senhor Leonardo. Não tem um alvará de soltura que o permita retirar Ronaldo Aleluia, um dos mais perigosos criminosos da cidade, destas dependências. Se fizer o que me pede, a Justiça virá pra cima de mim...

_Justiça? Tem mesmo medo daqueles velhos lunáticos do STF? Não precisa! Dou-lhe cobertura, por isso tenho ao meu lado as maiores figuras do coronelismo político deste país, que bebem das águas da tortura e vivem do sangue da ditatura.

_ O que quer dizer?

_Que enquanto esse país pertencer aos generais, quem manda aqui somos nós. Então, faça o que determinei, solte agora Ronaldo, ou Faísca, como é conhecido no meio da bandidagem. Vamos! Não temos muito tempo para conversas fiadas.

Passam-se das vinte e três horas e o Carandiru, com seus gemidos de dor alimentados por uma população carregada por todos os males do mundo, lembra um inferno em vida, um caldeirão com muitas almas, prestes a explodir e dominar as terras mais próximas. Barulhos de correntes se arrastam pelos corredores, ratos gigantescos correm de um lado para o outro, concorrem com os moradores do lugar os restos das refeições, assim como baratas, que entram e saem das paredes; e nas sombras daquele inferno, muitos detentos eram mortos por facções, causando rebuliço, instigando batalhas que terminariam em violentas rebeliões, transmitidas ao vivo por uma tevê conivente com a tortura, uma das principais chagas dos generais que diziam amar o país.

_Aqui está o malandro – anuncia o carcereiro.

_Saia! – ordena Leonardo.

_Ele é perigoso, senhor! É melhor que eu fique!

_Já disse para sair; se insistir, amanhã acabará no lugar dele, como mulherzinha de uma das celas. Vamos !

Eles ficam a sós em um dos cômodos mais precários do lugar, cuja lâmpada pisca sem parar, como se fosse queimar a qualquer instante.

_ O que você quer comigo, doutor?- examina-o dos pés à cabeça.

_Deveria deixá-lo apodrecer nas masmorras deste castelo de loucos, mas para sua sorte, a pirralha que você pegava fez um trato comigo, por sinal, muito vantajoso.

_Do que está falando? – estranha o bandido, com os olhos faiscando.

_ Por isso se chama Faísca? Seus olhos seriam capazes de iluminar este lugar... – ironiza.

_Não estamos aqui para falarmos de meus olhos, então, que deseja, chefia?

_Vou tirá-lo daqui!

_ Impossível! Peguei mais de cem anos de pena.

_ Impossível para mortais feito você, não para renomadas figuras da alta sociedade como eu, que instigam no próximo uma imagem de grande apreço e respeito.

_Não estou entendendo esta prosa.

Leonardo sorri com prazer.

_Não me diga que além de bandido é burro...

Com as mãos acorrentadas à mesa, o rapaz não consegue reagir às ofensas. Até ensaia um ataque, sendo logo contido.

_Então deseja me atacar? Idiota! Ainda não percebeu que apenas eu posso tirá-lo daqui? E vou tirar, porque tenho um contrato a cumprir com uma jovenzinha a quem você já pegou e sugou até o caroço.

_Fala de quem?

_Márcia Médici – apoia-se à mesa e o encara com os olhos agigantados. _ Este nome lhe diz alguma coisa?

_ O QUE FEZ COM ELA??? – indaga, levantando-se em fúria, sendo novamente contido pela corrente. _ Se a machucou, tenha certeza, sairei deste lugar de algum jeito e o encontrarei, seu desgraçado, e quando isso acontecer, não lhe sobrará um pelo para contar história.

_Acalme-se, criatura! – pede, dando um salto para trás. _ Ela está bem, tanto é que, para retirá-lo daqui, ofertou-me parte de sua fortuna.

_Ela...ela fez isso?

_ Deve mesmo amá-lo! Mas convenhamos, nasceu com o dedo podre. Tanto homem para se servir, escolhe justo um marginal sem eira nem beira, que passará o resto da vida na cadeia; que para se satisfazer, terá de entrar numa fila, ser revistada junto aos pobres, deitar-se numa cama de cimento, num colchão cheio de piolhos, para encontrar o mesmo prazer que lhe dava fora daqui. Só Márcia mesmo para tal disparate.

_ Você é o cunhado gay dela, é isso?

_Gay? Não! Aprecio apenas outras molduras.

_Se veio aqui para saber o porquê dela me amar tanto, é bom dar meia-volta, desta merenda não faço gosto.

_Nunca me deitaria com um ser do mundo inferior... Minha casta é pura, e para saciá-la, apenas os deuses do Olimpo.

_Fale logo o que quer comigo.

_A partir de hoje você se chamará Marcos - retira do envelope alguns documentos com a foto do bandido-, será o meu motorista particular e viverá na minha mansão, do dinheiro que lhe ofertar.

_ E se eu não aceitar?

_Morrerá aqui! Pois farei de tudo para que não veja o dia nascer. Veja, ofereço-lhe a condição de um escravo, com algemas invisíveis e fará o que mais sabe, cuidar de pessoas que invadem meu território, dando a elas o destino do purgatório.

_Não quero ser escravo de ninguém...

_Digamos que será um servo bem tratado, com comida farta à mesa e, o mais importante, com uma nova identidade, que lhe permitirá atravessar o país e conhecer o mundo sem ter à espreita um agente policial.

_E como sabe que não fugirei? Com isso que me oferece, poderei nunca mais ser encontrado.

_Não irá! E sabe por quê? Está encantado com a jovem Márcia, caído aos seus pés, e por ela seria capaz de qualquer loucura, inclusive o de causar um rebuliço neste lugar, instigar as facções e matar quem quer que fosse que o impedisse de encontrar as ruas e nos braços dela se entregar. O que lhe ofereço é justamente isso, sem que uma gota de sangue seja derramada; sem que um tiro seja disparado. Mas nos meus termos. Se aceitar, viverá ao lado dela enquanto durar este amor, porém, preso as minhas vontades.

_ Não sou homem para me acorrentar a outra criatura.

_Pense direito. Terá tudo aos seus pés, menos a liberdade, literalmente falando; talvez até consiga, quando eu achar que o preço de minha vinda a este lugar esteja pago.

_ Digamos que eu aceite e faça o contrário.

_Márcia morrerá! Ela é a grande peça deste jogo. Se sair da linha, antes que a encontre, ela estará estampada nas páginas dos principais jornais, com um tiro nas fuças, como se tivesse sido vítima de algum assalto. Ovelha negra da família, ninguém deixará que o caso siga em frente, isso causaria mais danos à imagem dos Médici – acostumados à bajulação dos burgueses e ao reconhecimento dos donos do poder.

_Quem você é mesmo?- fita-o com os olhos flamejando.

_Leonardo Médici! O cunhado dela. Já disse!

_Você tem muita sorte de eu estar acorrentado...

_ ... Me mataria? Tá bom! E depois? O que faria? Ficaria à espera de sua deusa, numa dessas visitas íntimas? É mesmo burro. Ofereço-lhe o céu e a terra, em troca, ameaça-me de morte?

O malandro se cala.

_Aceita ou não minha proposta? É pegar ou largar.

_Não estou acostumado a ser escravo de ninguém...

_Pior! É escravo da erva- gargalha-, e do amor que sente pela minha pobre cunhada, que chora à sua espera. Tadinha! Morro de dó! – caçoa.

_Não me resta outra alternativa, não quero morrer aqui! Farei o que pede! Mas se mexer com minha nega...

_...sua nega?- interrompe-o, debochando. _ Está neste pé? Uau! Márcia é safadinha, hein?

_ Pare de gracinhas! Saiba que farei qualquer coisa que pedir, até que me oferte a liberdade, mas se tocar um dedo na mulher que amo, ou se ao menos ventilar esta hipótese, o matarei na primeira oportunidade.

_E foi o que fez! – anuncia Gabriel.

_Exatamente! – afirma o chofer, resgatando-se. _ Por isso me perdoe, você era uma pessoa boa, não tinha dimensão das coisas que ele me pedia, aliás, até tinha, mas como sempre, dizia que minha liberdade estava próxima, e assim foi durante anos, morte após morte. Você foi apenas um dos que ele tentou pôr fim. Outros garotos não tiveram tanta sorte, acabaram numa vala, como indigentes, simplesmente porque o contrariaram. Esse ser não era gente. Devia sofrer de alguma doença mental. Acredita que assim que deixei o presídio, a primeira coisa que me exigiu foi que meu caso com Márcia fosse secreto, não queria o sobrenome dele exposto nas colunas de fofocas. Só pensava em si mesmo. Nunca amou ninguém além do filho.

_E Nathalia?

_Muito menos. Lembro-me até hoje, quando ele invadiu a casa e se passou por bandido, fingindo querer atingir o filho, quando na verdade, o que desejava era dar um fim nela, para que pudesse ficar com sua fortuna. Não deu muito certo, Jacira entrou no quarto, ele pulou da janela e num confronto comigo, deixou-me algumas marcas de tesouras nas costas. Mas ele também ficou com algumas, desferidas pela própria esposa. Veja – levanta a camisa dele._ Não é de assombrar? E o pior, enganou a coitada, dizendo ter sido vítima de um assalto e quase que eu terminei na lona, não fosse Jacira me defender. Márcia e eu até tentamos pará-lo; sem chance! Você seria a nossa última chance, desta vez, com foco no jovem! Também falhou! Só me restou apagá-lo quando ameaçou prejudicar meu grande amor. Perdi o senso! E sabe como estou me sentindo?

Sinaliza um não com a cabeça.

_Como um escravo livre, que se rebelou, arrebentou as algemas, matou seu senhor e voou para bem longe, como fazem os pássaros no inverno. Agora é pegar minha mulher e sumir desta terra.

_ Mas como se libertará do sangue inocente que escorre de suas mãos? – arrisca o bombeiro.

_Infelizmente, disso não tenho como fugir. Mas o seu perdão talvez me diminua a dor da alma, se é que um dia há de me ofertá-lo.

Gabriel relembra as cenas no morro e chora, chora muito, chora de causar dó. Não consegue perdoá-lo, por mais que o coração lhe exija. Emocionado com os gemidos do rapaz, Marcos se afasta, abre a porta e sai, para nunca mais voltar.

_Jacira, Jacira, meu deus, me ajude! – grita Ricardo, tentando puxá-la, quando, para seu espanto, ela se move. _ Você está viva, mãe? Está?

Com muito esforço a levanta e a acomoda numa das poltronas, tendo Márcia aos pés, baleada no peito. Aproxima-se dela, toca-a, está sem pulso. Para aqueles que a veneram, a notícia seria muito triste, Márcia Médici, uma das dondocas mais invejadas da grande metrópole estava morta, vítima de possível homicídio, após um embate com uma das empregadas da irmã falecida.

Sirenes são ouvidas. A polícia está invadindo o prédio, Jacira iria para a cadeia e, pobre como é , lá passaria o resto da vida, por mais que jurasse inocência.

_Vá embora daqui!- pede Ricardo à mãe do coração. _ Vá, deixe comigo, darei um jeito em tudo isso! Ouça-me ao menos uma vez.

_ E o que você fará, moleque?

_Deixe comigo, mas agora vá! Eles tão chegando! Vá!

Jacira desce pelas escadarias em desespero, tropeça num dos degraus, rola mais dois ou três, levanta-se e corre.

Agentes policiais invadem o consultório e apontam a arma a Ricardo, que não reage.

_O que aconteceu aqui??? – aproxima-se da psiquiatra. _ Você matou esta mulher?

_ SIM! EU A MATEI! – confirma, num gesto de grandeza, para salvar a pobre Jacira.

_Possível homicídio na Bela Vista. Suspeito detido – anuncia outro agente à central pelo rádio.

O jovem Médici é algemado e levado ao camburão, para o deleite da imprensa sensacionalista, que fotografa cada momento com enorme êxtase, assim como agem os urubus diante dos restos de suas vítimas.

O carro sai em alta velocidade, ao chegarem à delegacia mais próxima, os repórteres exigem do rapaz uma declaração, o que lhes é negado  pela autoridade.

Entrando na delegacia, Ricardo toma um choque. Jacira está à sua espera, na companhia do delegado, também algemada.

_ O que faz aqui? – desespera-se. _ Não pedi para que se fosse?

_E que mãe eu seria se não protegesse minha cria? Podem deixá-lo, quem matou aquela criatura fui EU! Basta olharem para minhas vestes, estão tomadas pelo sangue daquela infeliz.

_É mentira dela! – rebate o rapaz. _ Fui eu quem a matou.

_ Moleque, a encenação acabou... -vira-se para o delegado-... ele quer apenas me proteger. É um bom filho, assim como Suzicreide.

_Quem é Suzicreide? Outra do bando? – pergunta o delegado, confuso.

_Não faça isso, vão lhe judiar e não terei como protegê-la... Por favor! Não quero perder minha segunda mãe.

_Nunca me perderá! Sou e serei sua mãe pra sempre, onde quer que eu esteja! Agora levante esta cabeça, arrume essa roupa, eleve o pensamento às coisas boas e agradeça o bom coração que tem, porque foi por ele que resolvi me entregar, sei o quanto mudou e o quanto merece um recomeço. Agora vá!