XXIII            

_ O que foi filho? – questiona a mãe, estremecida.

_Hã??? Não sei...ela apareceu para mim, eu sei que foi ela...

_Ela quem? De quem está falando?

_Da mulher de Leonardo.

_COMO??? – assusta-se. _Ela esteve aqui???

_Só se for em espírito, mãe, pois ela morreu há muitos anos.

_Credo! Então por que diz isso? Deixe a coitada descansar em paz!

_Ela tornou meu sonho um pesadelo, disse que não conseguirei dar cabo do filho dela, que minha maldade teria volta...Devo estar ficando louco! – bate contra a cabeça.

_Pare com isso! – ordena, segurando as mãos dele para que não se machucasse. _ E o que tudo isso significa? Pretende fazer algum mal àquele garoto? Lembre-se, foi ele quem o salvou.

_ Eu sei...seu sei e é justamente isso que está me inquietando! Me ajude a levantar, preciso fazer algo...

_Aonde vai, Gabriel? Está tarde da noite! Espere o dia clarear.

_ Acalme-se, criatura, quero apenas ligar o computador.

_ A essa hora? Deixe isso de lado, vá descansar, você está brincando com a sorte!

_Me deixe!!! – grita.

A mulher serve de apoio para que ele chegue a uma mesinha. Sentando-se à cadeira, liga o micro, clica no discador e se conecta à internet. Passeia por todas as salas de bate-papos de que tenha conhecimento, quer encontrar o rapaz, enfeitiçá-lo como outrora, levando-o às raias da insanidade, como planejara com Márcia. Seria o desfecho primoroso de uma trama marcada por tanta maldade e selvageria.

_ O que está procurando, meu menino-homem?

_Já disse, não é da sua conta! – responde, irritando-se.

_Olhe, vou ser direta, se quiser me xingar, que xingue, pois não estou nem aí. Sei que quem está enchendo sua cabeça é aquela grã-fina, o porquê disso eu não sei, mas deveria ouvir mais o seu coração, deixar de lado toda a amargura e caminhar para frente; o que se foi, está enterrado.

_ Aí que se engana, mulher! Olhe para mim e verá que o passado reside em cada cicatriz que carrego. E são muitas! Esqueceu-se?

_ E o que pretende fazer, recuperará o que se foi? Não mesmo! E por meio do gesto solidário daquele garoto, a vida lhe deu outra oportunidade...

_ Por que fala tanto dele? Está apaixonada?

_ Me respeite, ele tem idade para ser meu neto.

_ Então..?

_ Se visse o que ele fez para salvá-lo, não diria estas coisas; estaria buscando uma forma de defendê-lo do mal que lhe preparam. Ouça sua mãe, delete todas as ideias maquiavélicas daquela mulher e resgate sua essência, a mesma que se entregava aos morros para salvar as vítimas que já eram dadas como perdidas. Cadê aquele homem? Leonardo pode até tê-lo destruído fisicamente, mas ninguém consegue apagar o que de bom uma pessoa carrega no coração, porque é nele que reside o som da existência divina.

_ Não tem jeito... – aparenta arrepender-se.

_E o que o impede de virar a página e seguir em frente?

_Tenho um acordo com aquela mulher...

_E que acordo é esse, Gabriel? Fale! Abra a caixa de Pandora.

_Tenho de destruir o filho de Leonardo.

_E por quê? O que ele lhe fez de mal para merecer tal crueldade?

_Ele, nada! Mas o pai...

_ Você está perdido, meu filho! Tenho dó de seu destino! – sofre. _ Não deve descontar no rapaz todos os males praticados pelo pai dele.

_Ela exige...

_Como assim? Quem ela pensa que é para chegar aqui e ditar as regras?

_ Márcia Médici!

_Médici? Outra? Então ela é...

_... a tia dele!

_ Meu Deus! – leva as mãos à boca. _ E por que ela quer isso? Ele carrega o mesmo sangue que o dela.

Ele não responde.

_ Que criatura abominável!- continua. _O garoto não merece isso! Mas você não me respondeu, que tipo de acordo tem com ela? Vamos, fale! Começou...termine!

_Você é Gabriel? – inquire a psiquiatra ao rapaz, que se recupera do espancamento em um quarto com outros dois pacientes.

_Sim! – responde com dificuldades.

_Sabe quem fez isso, não sabe?

O jovem a encara com certa preocupação.

_Não tenha medo de mim, assim como você, sou outra vítima de Leonardo. E estou aqui como uma amiga, precisamos unir nossas forças para derrotá-lo. Se nos mantivermos separados, nunca ele pagará por suas maldades. Bem, não me apresentei, sou Márcia Médici, a cunhada dele, a quem pisou sem pestanejar, como se fosse uma mísera barata . O que fez comigo não tem perdão. E tudo porque tive a coragem de entregar sua face oculta à Nathalia, minha irmã. Por mais que não alimente qualquer preconceito por esse tipo de amor, não poderia deixar que ela vivesse às margens de um romance extraconjugal, era preciso tomar coragem para delatá-lo. E o fiz! Mas eu não imaginava que o revide fosse fatal. Em um só golpe , levou minha parte na herança e mandou meu amado para trás das grades. Quando eu soube o que ele fez com você, tive pena, mesmo sabendo que era a pessoa com quem ele traia Nathalia. Assim como eu, você não merecia esse fim!

Uma lágrima escorre pela face dele.

_Se queria mesmo amar você, que fizesse do modo certo, separando-se de minha irmã, mas ele não vê o mundo como a gente, tem os valores corrompidos, como se apenas os caprichos dele merecessem alguma valia. É de uma monstruosidade ímpar! Se alguém atravessar seu caminho ou o contrariar, não pensa duas vezes, acaba com a pessoa num estalar de dedos e você é a prova viva disso.

_Co-co-mo pode dizer isso? – indaga o bombeiro, enfraquecido.

_Veja como está! Quasímodo, de O corcunda de Notre Dame, diante de ti, é um príncipe – espezinha de propósito. _E tudo porque o desapontou, ou não foi por isso? Não esteve à disposição dele, quando mais quis, preferindo salvar os pobres a se deleitar numa dessas camas suntuosas de algum motel vip da cidade.

_E co-co-mo sabe de tu-tu-tudo isso? – tosse, segurando o ventre. _ Você me seguia, é isso?

_Não! Apenas tenho bons informantes. Mas não estou aqui para falar disso. Quero lhe oferecer ajuda; precisará! Em troca, me ajudará a liquidar o filho dele...

_Quer matar o seu so-sobrinho?

_Fazer o quê? Tirou-me tudo, então chegou a hora de eu lhe tirar o que tem de mais valioso: o filho! É a única coisa que realmente ama neste mundo.

_Ri-Ricardo é...é...é só uma cri-an-ça!

_Mas vai crescer! E quando a hora chegar, estaremos a postos, feito hienas, à espera de sua carne.

_Não posso fa-fa-zer isso, Ricardo não... não... merece.

_É assim que retribui o que fiz por você?

Ele não entende.

_Eu subi aquele morro e o resgatei ou pensa que foi algum favelado solidário que pediu socorro às autoridades? Meu carro está todo encharcado de seu sangue – faz cara de nojo.

Os olhos de Gabriel se alumiam, como navios à deriva em alto-mar .

_ E só tem uma forma de pagar por minha “generosidade”, aliando-se a mim, numa guerra silenciosa contra um dos maiores vilões desta terra amaldiçoada. Então, posso contar com você?

O rapaz se vê numa posição difícil, como negar ajuda a mulher que o resgatara da carruagem da morte? Estende-lhe a mão. O pacto é selado. A alma de Gabriel é envenenada para sempre. O salvador de vidas, que tantas alegrias trouxe à humanidade, cedia lugar a uma criatura diabólica, construída com esmero por uma psiquiatra desatinada. E como uma armeira, ela o lapidava para que fosse seu escudo numa guerra que se mostraria sangrenta.

_Perfeito! Cuidarei de você! A partir de agora serei sua sombra, criatura! – sorri.

_ E por que aceitou isso, meu filho? – pergunta a mãe, após ouvir o relato. _Essa mulher é doente e quer arrastá-lo para o fundo do poço, onde já está há muito tempo. Saiba, ninguém merece passar pelo que você passou, mas se alguém tivesse de pagar alguma coisa, que fosse o crápula do Leonardo, não sua cria, uma criança indefesa, hoje um homem sem luz.

_E o que posso fazer?- mostra-se sem alternativas. _Se desistir agora, ela é bem capaz de me matar, tem o mesmo coração doentio de Leonardo, e não pensaria duas vezes em me devolver às entranhas do desapego.

_Você deve quebrar estas amarras e viver o resto de vida que ainda tem ao lado dos seus, com todo o amor que Deus há de lhe reservar.

_Sinto muito! Não tem jeito! Estou perto do fim, logo Ricardo estará estirado a algum beco, com uma bala na cabeça...É questão de tempo!

_ E você carregará o sangue dele nas costas para sempre. É isso que deseja?

Gabriel se cala.

_Nunca imaginei que você, um herói dos mais humildes, pudesse se prestar ao papel de tirar a vida de um inocente por alguns minutos de prazer, porque é o que sentirá, ao ver Leonardo caído ao túmulo do filho, depois dele findar com a própria vida. E lhe pergunto: passado os minutos de euforia, o que lhe sobrará? O remorso! E este não perdoa, costuma ser implacável com suas vítimas, levando-os também à paranoia e à morte.

_Morto já estou!

_Não! Você vive! E consigo ver isso em seus olhos, que espelham algum sentimento de bondade dentro dessa alma destroçada.

Gabriel abaixa a cabeça, dizendo:

_Saia daqui! A senhora já falou demais! Fora! Fora!

_Enquanto eu existir, ninguém tocará naquele garoto – pensa ela, fixando-se nos olhos acuados do filho.

Volta para sua cama, deita-se, olha para o teto, vira-se de lado, levanta-se, abre uma gaveta, pega uma foto de Gabriel ainda criança, no parque de uma praça, e a observa com desvelo. Cheio de vida, feliz, numa casinha de madeira, na companhia dos amigos, o menino sorria feito um anjo. E quem diria que aquela alma ingênua se tornaria em um ser repleto de dor e rancor, como este que agora a destratou? Se pudesse voltar no tempo, teria proibido o romance dele com aquele monstro; como é impossível, apenas assiste ao seu epílogo, como alguém que já não o conhece. Com os olhos cheios de lágrimas, inspira com dificuldade, guarda a imagem, senta-se na cama, cruza os braços e sobre eles apoia a cabeça.

_Tenho de impedir que essa desgraça aconteça – lembra-se do momento em que viu Ricardo afastando-se de sua casa. _ Mas como? - vira-se de lado, pega uma santinha de barro, beija-a na fronte e a segura contra o peito, clamando por uma solução. Que o jovem não morreria, disso tinha certeza, ainda que isso lhe custasse a sua vida. Porque a uma vida, só se paga com outra.

_Ricardo!!! Ricaaaardo!!! – berra Jacira, correndo ao seu encontro. _ Meu filho! Meu filho!

A arma falhou. Iria tentar pela segunda vez, mas a empregada, tomada por uma força descomunal, que só se emana do coração de uma mãe, dá-lhe um empurrão que o desequilibra, a ponto da arma se desprender da mão, cair ao chão e desta vez disparar contra o teto. Com o barulho do tiro, Ricardo retorna à realidade. Ao se dar conta do que iria fazer, começa a tremer, como se possuído por um gênio ruim.

_Moleque!!! Graças a Deus! Graças a Deus! – beija-o por toda a face, comovida.

_O que eu estava fazendo??? – indaga, completamente desorientado.

_Venha, vamos sair daqui!!! – pede, puxando-o. _Vamos!

Ao saírem, ela se vira e, antes de fechar a porta, vê de relance a imagem de Nathalia, que se dissolve na imensidão. Com o coração saltitante, abri um sorriso tímido, roda a fechadura e guarda a chave no bojo do sutiã.

_Venha, vou cuidar de você!- descem as escadarias.

_Que barulho foi esse? – invade a casa o jardineiro, bastante assustado. _ Será bala perdida?

_Deve ser! – responde a mulher. _ Agora caia fora! Chispa!

_O que tem seu Ricardo?- assusta-se ao vê-lo todo esmorecido.

_O ...seu...seu... seu coisa, o senhor já varreu o jardim?

_A essa hora? Só trabalho oito horas por dia, está na convenção do sindicato.

_Oxi! E jardineiro tem sindicato?

_Pois é claro! Acha que a gente é pouca coisa?

_Eu não acho nada! Mas se o senhor não picar a mula já desta sala, o único jardim que irá limpar será o do cemitério, seu intrometido.

_Cruzes! Tô indo!

Assim que o velho desaparece, Ricardo deita-se no colo na mulher e chora, até adormecer.

_Não vou deixar que lhe façam mal – diz, determinada, a mãe de Gabriel, que se arruma e sai, sem que o filho perceba. Caminha pelas ruas escuras do lugar, até se deparar com o entregador de materiais de construção, um antigo amigo da família, que estava se preparando para mais um dia de trabalho.

_Mas o que a senhora faz a esta hora na rua? – pergunta o motorista, estranhando. _ Aconteceu alguma coisa a Gabriel?

_Não, amigo! Preciso resolver um problema que está a me queimar a cabeça.

_ Mas...mas pra onde está indo?

A mulher o informa.

_Estou indo para aquelas bandas, quer uma carona?

Ela aceita.

O tempo passa...

A mulher chega à recepção do hospital, olha para os lados, como não encontra o chofer, arrisca um pedido à funcionária.

_Preciso de um favor, que entre neste computador e me passe o telefone e o endereço do moço que pagou pela internação de meu filho.

_Isso é contra a política do hospital.

_Moça, uma pessoa pode morrer se não me ajudar, então deixe de lado a burocracia e faça o que lhe peço, por favor!

A funcionária, mesmo contra todas as orientações da instituição, cede à mulher os dados solicitados.

Já na calçada, ela senta em um banco ao lado do ponto de ônibus, onde lê o documento.

_Alphaville? Onde fica isso? Me ajude, minha santa! – suplica, assistindo ao alvorecer.