XII

Iniciando um novo estágio na vida cultural da cidade de São Paulo, há quase um século a Ópera Hamlet, de Ambrósio Thomas, inaugurava o Theatro Municipal. Idealizado por uma equipe de construtores arrojados, o Municipal logo se transformaria num dos pontos mais frequentados pela elite paulistana, por abrigar as mais variadas manifestações artísticas, seja do erudito ao popular, em ópera, dança, música e teatro.

De senhores do café a políticos de expressão, de Nair de Teffé13 a intelectuais como Oswald de Andrade, todos ali se encontravam para debater os rumos do país e se deleitar das muitas viagens poéticas ao mundo introspectivo do ser humano, que as grandes companhias europeias de teatro da época tão bem produziam.

O Municipal, glamouroso no estilo, era palco obrigatório às produções internacionais de vanguarda, o que revitalizava a cultura nacional – de essência tupiniquim, motivando artigos de estímulo à arte nos principais jornais do município, atraindo a atenção até mesmo dos menos avantajados.

Ainda hoje, no limiar do novo milênio, o Theatro Municipal é referência àqueles que amam a arte, que sabem distinguir o belo do duvidoso. Estar em uma de suas poltronas acompanhando uma apresentação é como estar no céu, à direita de Deus, contemplando o coral dos anjos. A emoção logo interrompe a fala, as lágrimas avermelham os olhos, o sorriso emerge na face...Tudo parece perfeito!


É justamente nesse lugar de sonhos, de construção e transformação de valores, que o corpo de Anna será velado. A pedido da família, uma das mais tradicionais da cidade, a prefeitura autorizou a realização do velório nas dependências do Municipal, para que os paulistanos deem um último adeus à filha do empresário Giacomo Ferrara, conceituado exportador de vinhos da Capital.

As ruas adjacentes à Praça Ramos de Azevedo, onde está localizado o teatro, são interditadas pela Companhia de Engenharia de Tráfego. Somente os parentes, os amigos mais íntimos e as autoridades constantes de uma lista, distribuída há algumas horas pela própria família, podem atravessar o bloqueio. Tal desatino atrai a atenção da mídia, que transforma o funeral em evento público.
 
Emissoras de rádio e tv de todos os cantos da cidade, ávidas por conteúdo sensacionalista,  contam aos ouvintes a tragédia como se fosse fragmento de uma novela, descrevendo desde o valor da urna funerária às vestimentas dos participantes – verdadeiras obras de arte do estilismo pós-moderno, que lá se encontram, para despedirem-se da garota que ao jovem Ricardo tanto amou, recebendo por sua dedicação, apenas o desprezo e a morte.
 
A convite dos Ferrara, a Orquestra Sinfônica Municipal acompanha o velório entoando belas canções eruditas. Aleluia, de HandelNocturne, de Chopin e a espiritualista Tocada e Fuga em Ré Menor, de Bach, ecoam pelas galerias, conduzindo os presentes à comoção e às lágrimas.

Os motivos que levaram Anna a encontrar a morte ainda eram uma incógnita, o que suscitava muitas hipóteses, algumas beirando até mesmo a insanidade.

Alguns diziam que ela estava alcoolizada, outros que ela não conseguira comprar o iate de que tanto desejava porque o dólar havia disparado com a chegada do sindicalista ao poder, e uns poucos culpavam a Deus.

 
Mas, como em qualquer situação, existiam aqueles que eram iluminados pela sensatez e conseguiam encontrar no desastre o epílogo de uma história macabra, iniciado horas antes, com a distribuição de um e-mail, em que Ricardo, o suposto namorado da jovem, declarava-se homossexual, tendo se utilizado da mesma como máscara de suas investidas secretas. Ao conhecer o conteúdo da “confissão virtual”, a garota, temendo a desmoralização pública, teria ido à casa do rapaz cobrar uma explicação. Como não a obteve, pretendia retornar à cidade, o que acabou não acontecendo, talvez por um momento de distração emocional. Hipóteses e mais hipóteses.

Alojados em um dos camarins, os Ferrara comentam a tragédia.

_ Anna terá o velório mais luxuoso que essa cidade já viu... – comenta Lícia, a matriarca, no longo e fino versace negro, enquanto retoca a maquilagem diante de um espelho oval.

_ E desde quando velório é espetáculo de aspirantes ao poder? Veja quantos urubus estão ao nosso redor, alimentando-se de nossa dor, promovendo-se às nossas custas. – indigna-se Benício, o irmão, no ápice da juventude, agora único herdeiro da família. _ Funeral em  em teatro, ainda mais no Municipal, o nosso coração cultural? Nem se Anna fosse uma artista de renome, com grandiosa contribuição à cultura moderna.

_Anna era uma estrela e às estrelas reservamos sempre os melhores lugares, portanto, “o nosso coração cultural...” – rebate a mulher, contornando os lábios com um batom cintilante.

_Feche o salão, mãe, vamos para um lugar discreto, para velarmos o corpo de Anna na companhia dos amigos mais íntimos, de nossos tios e tias – implora, visivelmente inconformado com a situação.

_ Não mudarei minha posição, Benício! Às estrelas o altar...

_ ...e o preço pelo fracasso dos pais. – completa, com sarcasmo.

_ O que você disse? – pergunta a mulher, com a cólera estampada à face.

_ Responda, meu rapaz, também estou curioso para saber! – exige Giacomo, o patriarca da família, um imigrante italiano audacioso, que chegou ao Brasil durante a segunda guerra mundial, construindo fortuna invejável com o cultivo da uva e a produção e exportação de vinho aos mercados europeus, achegando-se.

Diante daquela figura quase absolutista, o rapaz emudece.

_Concordo com sua mãe, às estrelas o altar. O que não diria a sociedade se não proporcionássemos a Anna um velório à altura do que ela nos representa? Chamar-nos-ia de miseráveis!

_ Miseráveis?! – debocha o rapaz.

_ Qual o motivo da ironia, Benício? – interpela a mãe, enquanto recebe um angorá turco, de pelos tão negros quanto sua vestimenta, das mãos de uma das criadas.

_Melhor miseráveis que ridículos. Pois é assim que os chamarão!  
 
_Excêntricos, sim! Miseráveis, jamais!
 
_Não vejo diferença!
 
_Você é muito novo – rebate o pai.
        
_Vocês estão loucos, não se preocupam com a memória da filha que tinham; importam-se apenas com as aparências, com aquilo que dirão os abastados de mente retrógrada... Pois que se explodam! Amo minha irmã e, em respeito ao que ela me representa, pedirei aos seguranças que expulsem todos esses interesseiros daqui.

_ Não fará nada disso! – adverte Giacomo, após dar uma boa tragada em charuto cubano. _Entenda, meu rapaz, Anna está morta, já faz parte de uma outra esfera e, por mais que queiramos, nenhuma de nossas lágrimas a trará de volta, restando-lhe um túmulo, para onde irá dentro de algumas horas. Sinto por sua morte, todavia, esse é o momento exato para que novos contatos sejam estabelecidos, antigas amizades retomadas, novas linhas de crédito concedidas...

_ Tinha certeza! – suspira o rapaz. _Todo esse “espetáculo” não é por Anna, mas pelos próprios bolsos.

_ E o que esperava, “Madre Teresa de Calcutá?” – pergunta o homem. _ Estamos à beira da bancarrota, se não nos movermos agora, logo estaremos catando papel junto aos garis da Sé.

_ Bata nessa boca, homem! – pede a mulher, estremecendo-se toda. _Deus não será impiedoso com servos tão fiéis às escrituras como nós.
 
_ Fiéis às escrituras – escarnece o jovem. _Quanta audácia! Vocês não mereceriam ser garis, mas internos de um desses manicômios do Estado, em que está confinada a escória que se julga poderosa.
 
_ Taci!14 – ordena Giacomo com veemência ao primogênito, utilizando-se da língua natal, uma prática recorrente sempre que seu emocional se altera.

_Usar a morte da única filha para faturar alguns trocados! Nunca pensei presenciar uma insanidade como essa! Hum! Devem também estar torcendo por minha morte, assim poderão posar-se novamente como vítimas, rastejar-se como vermes atrás das migalhas oferecidas por aqueles, que por algum motivo, guardam ainda alguma solidariedade dentro do coração. Se a encenação seguir à risca os mandamentos de Francis Ford Coppola15, quem sabe não conseguem tirar os pés da lama.

_Quanta divagação, meu rapaz! Nunca desejamos a morte de sua irmã...

_...de sua filha, senhor Giacomo Ferrara! – corrige-o com a mesma intensidade do patriarca. _ SUA FILHA!

 
As palavras de Benício são flechas e ferem o coração do velho imigrante, que ao não encontrar o vernáculo ideal para o revide, silencia.


_ Sim! Ela é nossa filha... – acode a mulher, pasma com o emudecimento do esposo.

_Pois não parece! Da forma como dizem, lembra-me uma estranha, alguém que não tem nas veias o sangue da nobreza, por isso a morte lhe é justa! Já não basta termos de velá-la com a urna funerária lacrada?
 
_Mas ela foi carbonizada, o que esperava? Não sabe como doeu acompanhar o reconhecimento por meio da arcada dentária – a mulher simula enorme tristeza.

_ Estou vendo! – aponta-lhe as vestimentas. – Do modo como está, qualquer um pensará estar na festa do Oscar, não em um velório. Aliás, levará a estatueta por qual categoria? Melhor atriz? Certamente, não?

_ Deixe de sarcasmo, Benício! Respeite sua mãe, senão lhe tirarei a mesada por dois dias...- ameaça o homem, recuperando-se do susto.

_ Não precisa ser tão cruel, querido! – indigna-se, ao passo que alisa os pelos do angorá. _Um dia basta!

_Abdico-me do dinheiro de vocês! Se quiserem me dar algo, que deem o direito de velar o corpo de minha irmã com o respeito que ela merece.

_Non sopporto più questa situazione...Che sia!16  – cede o homem, para a

alegria do filho e estranheza da mãe.
 
O conflito é interrompido pela vibração do celular de Giacomo. O secretário de imprensa do Palácio dos Bandeirantes anuncia a presença do Governador e de sua família para daqui a algumas horas, isso muito agrada ao decadente empresário, que ao desligar o aparelho, anuncia aos presentes:

_ Uau! Até o governador virá ao velório. Quero ver a cara dos Marcondes... Hum! Não faz um mês, disseram que eu já era, não servia nem para cabo eleitoral do Maluf! Farei questão de pagar aos jornalistas para que muitas fotos sejam tiradas e postas como manchetes nas capas dos principais jornais. Ninguém, depois disso, terá a audácia de me negar algum recurso, pois isso não será uma ofensa só a mim, mas ao próprio governador, que tanto me estima, a ponto de abandonar os afazeres para me visitar numa

hora tão dolorosa para todos nós.

_ Isso aí, benzinho! – dá gritinhos de alegria a mulher.
 
_Se Anna tivesse levado aquele idiota do filho do Leonardo para o altar, hoje seríamos donos de metade da cidade e não estaríamos a caça de trocados, mas a infeliz...ops, a coitada nem isso foi capaz de fazer- diz o velho.

_Você disse que atenderia ao meu pedido, lembra-se? – questiona o rapaz, horrorizado com a insensibilidade dos pais.

_Eu disse? – dissimula o patriarca. _Não me lembro! Desculpe! – volta-se para a esposa: _Estou bem para receber o Governador, querida? - pergunta, arrumando o terno bem cortado.

_Perfeito! – confirma a mulher. _E quanto aos Médici, temos de avisá-los da vinda do Governador, querido, até porque, vivemos atualmente dos empréstimos que eles concedem às nossas empresas, ainda que a juros extorsivos.

_ Tem razão! – concorda, ajustando a gravata de seda italiana, presente de um parente de Milão.


_ Posso até retroceder em meu pedido e aceitar a presença destes abutres, entretanto, se Ricardo entrar aqui, juro, não teremos apenas um corpo a velar, mas dois... - dispara Benício, encolerizado. _ O que ele fez a minha irmã e à FILHA de vocês - só para lembrá-los -, ao escrever aquele e-mail e dispará-lo para toda São Paulo,  foi de uma crueldade jamais vista. Se o vir, não respondo por mim!

_ Pois ele entrará!- desafia o velho imigrante. _Se não fosse pela grana dele, hoje estaríamos a comer capim.

_ Mesmo depois daquele texto ridículo em que se declara gay, sendo Anna o seu disfarce social? Não acredito!

_ Você acredita mesmo no que está dizendo? Ricardo jamais escreveria aquilo! É egocêntrico, não burro! – comenta o homem.

_ E não seria o egocentrismo a máscara da burrice? Quanta ingenuidade de vocês! Hum! E mais, acredito que essa desgraça toda foi motivada por tal estupidez. Luara, a caçula dos Monteiro de Barros, conversou com Anna essa tarde, quando ficou sabendo que ela estava na mansão dos Médici para exigir uma explicação de Ricardo. Precisava tirar essa história a limpo, a partir daí, como se sabe, sofrera aquele acidente... Ele é o culpado por sua morte! E se entrar nesse teatro, não garanto sua sobrevivência.

_ Independentemente dos acontecimentos, teremos de prezar por nosso sobrenome e manter a classe, para podermos continuar usufruindo da proteção financeira que nos é oferecida pela família dele.

_ Terá a coragem de se vender para não ir à bancarrota? Onde está o brio de seu caráter, meu pai? Deixe o sangue correr suas veias, desça deste  pedestal e nos defenda, estamos sendo vilipendiados publicamente por um rapaz arrogante, que só se importa com a própria extravagância. Não deixem que se refiram à memória de sua filha como se fosse a de uma meretriz! Dinheiro algum substitui a honra e a dignidade de uma pessoa, pai!

_Taci! – ordena o homem, escondendo os olhos marejados. _Nada do que disser me fará mudar a opinião! Por isso, retire-se já, quero ficar a sós com sua mãe, precisamos discutir os últimos preparativos do velório.


Benício afasta-se até a porta, antes de se retirar, dá o golpe de misericórdia:

_Talvez Anna e eu não mereçamos o seu amor da maneira como desejávamos, mas o seu neto certamente o mereceria.
 
_ QUE NETO? – inquire, abismado.


_ O que minha irmã carregava no ventre...

Antes que pudesse ser interpelado, Benício parte. A mulher devolve o gato à criada e abraça o marido; também está surpresa com a notícia de que seria avó.

_ Dio Mio, che cosa ha fatto per meritare tale castigo?17 
 
_ Tenha calma, querido!

_O que faremos? – abraça a mulher. _Mio amore, aiutami!18 
 
_ Vamos ligar para o Ricardo, dizer que fazemos questão de sua presença, a vida deve continuar, ainda que as dores sejam infinitas e as cicatrizes eternas.
 
Benício sobe os degraus que dão acesso ao palco e de lá acompanha com deslumbre cada galeria do grande salão. A suntuosidade do lugar o impressiona. Nunca havia percebido como era grande, arrojado.  Sentia como se cada pilar, cadeira e corredor tivessem vida própria, conversassem entre si, observassem os homens e determinassem suas penas. A disposição dos andares, formando uma arena, transformava qualquer figurante daquele palco em célebre protagonista de sua época. Título que certamente seria ofertado à sua irmã pelos agentes da História.

Ao lado do caixão, acompanhado por muitos olhos, entrega-se definitivamente ao choro.

_Jovem Ferrara, nossos pêsames! – deseja o casal Diniz, comovido com a dor do rapaz.

Ele aceita os cumprimentos sem dizer uma palavra.

Os primeiros raios solares despontam no horizonte acinzentado...

_Jarbas, leve-nos ao Theatro Municipal.

_ Ao Theatro Municipal? – estranha Ricardo, acompanhando os movimentos da tia com os olhos desconfiados.
 
_ Sim, meu querido, dessa vez os Ferrara se superaram. Decidiram que lá seria o lugar ideal para velarem o que restou de Anna. Sabia que eram tresloucados, mas não a ponto de fazer do funeral da filha  um espetáculo digno dos filmes trash. – sorri, pondo os óculos escuros._ Disseram que até o Governador comparecerá! Acha?

_ A Anna não merecia isso! Era um tanto exacerbada, mas...
 
_... Deixe de eufemismo, Ricardo – entrecorta-o-, ela era uma ninfeta desajuizada, que fazia da própria carne o convite à imoralidade.
 
_ Tia, do que está falando?  Anna...
 
_Meu querido, quem não conhecia, nesta cidade, Anna Ferrara? Era o canapé dos afortunados – malda. _ Uma mulher bonita, apesar de insossa.
 
As últimas palavras da mulher lhe chamam a atenção.
 
_O que quer dizer com isso? Você está se utilizando das palavras do Desbravador?
 
_EU??? – encena, tentando remediar a situação. _ Que Desbra-bravador? Ah, o ser da internet? Imagine! De onde tirou isso?
 
_Do e-mail que ele escreveu, a senhora mesma disse que toda São Paulo o recebeu.
 
_Eu disse? Ah, é mesmo, meu querido, mas apenas fiz uso de uma hipérbole... Como toda São Paulo o receberia? – ri,  disfarçando o    nervoso. _Nossa! Nem percebi que usei as mesmas palavras. Talvez tenham me marcado tanto que as tenha gravado no subconsciente.
 
_Pode ser! – o rapaz não se dá por vencido. _ E quem é Gabriel?
 
_GABRIEL? – segura o susto. _ Gabriel? Não sei! Não conheço ninguém com esse nome, pelo menos que me lembre.
 
_Eu a ouvi ontem dizendo que ele teve uma ideia fantástica...
 
_Ah, sim, Gabriel – ele me ouviu, deduz-, agora me lembrei, é um paciente da clínica. Tadinho, ele queria muito desenhar a família...
 
_Que ideia fantástica, não é? – ironiza.
 
_Na área de jogos de sua mansão, uma forma de lhes retribuir todo o amor de uma vida. Fantástico, não é? – reverte.

_Sim! – responde, desconfiado.
 
_Já demitiu a pobre da Suzicreide? – desvia-se do assunto.
 
_Ela se chama Jacira!
 
_Poxa, é verdade, mas como repete à exaustão este nome, sempre me confundo. Mas já a demitiu? Depois do que ela fez comigo ontem, o mínimo que você poderia fazer por esta tia que tanto o ama, seria colocá-la na rua, de onde jamais deveria ter saído.
 
_Vou conversar com meu pai! – responde, contrariado. _ Mas lhe adianto, será quase impossível. Ela já é da família.
 
_Da sua, né, querido? Não me envolva nisso! – gargalha. _ Não sei o que viram nela, uma mulher baixa, de vocabulário rasteiro, com vestimentas que beiram aos andarilhos...
 
_... mas de um coração maior que o mundo! – rebate, defendendo a mulher.
 
_É...um verdadeiro encosto, como disse! – alfineta-o.
 
Ricardo se contém. A vontade é saltar ali mesmo e voltar para casa, onde se desculparia com aquela a quem sempre amou como uma mãe. O que fez no hospital lhe fugiu o controle, estava apático, distante, e quando percebeu a rixa entre as duas, certamente tomou as dores do lado errado. Tinha de reparar o erro! Só assim reencontraria a paz de espírito!
 
_Tomara que nenhum repórter toque no assunto do e-mail. Odeio escândalos! – diz ela.
 
O rapaz permanece em silêncio.
 
_ A garoa vira tempestade. O rio Tamanduateí, na zona leste, e o córrego do Ipiranga, na zona sul, transbordam, inundando diversos bairros da Capital. Butantã e Pinheiros, na zona oeste, e parte da Avenida Brigadeiro Faria Lima estão sem energia... A Defesa Civil ainda não sabe quanto são os desabrigados! – anuncia o repórter de uma rádio, enquanto a limusine é parada em uma blitz da CET, a algumas quadras da Praça Ramos de Azevedo. Após ter a placa conferida em uma listagem, é liberada para seguir viagem.

_ O que está acontecendo aqui?- pergunta Márcia. _ Por que paramos?

_A pedido da família Ferrara, somente pessoas autorizadas poderão seguir de carro...


Ao avistar o Municipal, Ricardo se assusta com o movimento.

_Barbaridade! Isso é um velório ou uma festa?


_Parece mais o Desmanche, um forró de quinta lá da Capela do Socorro...- comenta o motorista, com um sorriso brotado nos lábios.
 
_ E alguém lhe perguntou alguma coisa, Jarbas? Já não basta termos de ouvir esta rádio que só fala de problemas de pobres, agora também teremos de conviver com seus comentários impertinentes?
 
_Desculpe , senhora! Isso não vai mais acontecer!
 
_Espero, porque senão, a porta da rua é a serventia da casa.
 
_O que é aquele alvoroço? – pergunta o jovem, ao apontar para uma aglomeração de repórteres nas escadarias do teatro.

_O marronzinho disse que o Governador chegará dentro de alguns minutos, por isso toda essa muvuca – responde o chofer.

_Então era verdade? – esnoba a mulher. _ Quem sabe assim deixam de sugar o nosso sangue...

Ao descer do carro, Ricardo é cercado por jornalistas, enquanto Marcia se esconde. Não perdem a oportunidade de alfinetá-lo, na esperança de que ele revele as razões que o levaram a divulgar aquele e-mail. Percebendo a movimentação, Jarbas deixa o volante para defender o sobrinho da mulher que há pouco o humilhara. Ricardo sobe a escadaria sob a sua escolta, sendo surpreendido por Benicio ao chegar ao saguão, que ensandecido, o provoca.

_ Ricardo Médici! Como pode ser tão insensível? Não se contentou apenas em usar e abusar da ingenuidade de minha irmã? Era preciso mais, como zombar de sua memória, diante de uma plateia adoradora do caviar e do circo, posando-se de vítima, como se nada tivesse a ver com sua morte?

_Saia de minha frente, Benício! Guarde os escárnios para os de sua laia – revida o filho de Leonardo.

Comentários sobre o desaguisado espalham-se pelo teatro, atraindo a atenção dos convidados, que preferem prestigiar o desenrolar da baixaria à Ave Maria, de Schubert, conduzida com perfeição pela Orquestra Sinfônica Municipal.

_Tem razão, não sou de sua laia, não procuro homens durante a noite nem me utilizo de garotas inocentes para manter ocultos os meus mais íntimos desejos sexuais.

 
_Olhe primeiro para os bolsos de seu pai para depois falar de meus supostos dotes – rebate, com os olhos inflamados e a saliva acumulando-se nos cantos da boca. _Posam-se de ricos, quando não passam de uma plebe desvairada, sufocada pela própria ambição.

_Aqui você não entrará e, se o fizer, será um homem morto! – ameaça o herdeiro dos Ferrara.

_Deixe-o entrar, senhor! – pede o motorista, entrando na frente de Ricardo._Deixem as diferenças para depois, estamos em um funeral.

_Claro que entrarei e não será um falido como você que me impedirá. – desafia o ex-namorado de Anna.


_ Pois tente e verá do que sou capaz! – ameaça, cerrando os punhos.
 
Todos aguardam a reação de Ricardo, que para a decepção de Jarbas, é tão provocativa quando a do herdeiro dos Ferrara.


_ Veremos!

Quando o afortunado rapaz dá o primeiro passo em direção ao corredor que desemboca no palco, Benício livra-se do motorista e lhe acerta a face com um soco.
 
A briga atrai a atenção de todos, uma arena é formada, para o desespero de Márcia, que grita pelo chofer, a certa distância.
 
_Senhora, precisa fazer algo!
 
_E farei...Vamos embora! Odeio escândalos!
 
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13 Segunda mulher do presidente Hermes da Fonseca, que ousou escandalizar a “realeza republicana” ao tocar um maxixe ao violão em pleno Palácio do Governo, pelo fato da dança ser considerada imoral e o violão instrumento próprio da ralé.
14 Cale-se!
15 É produtor, roteirista e diretor de cinema norte-americano. Adaptou e dirigiu uma das mais aclamadas trilogias do cinema, “O Poderoso Chefão”.
16 Não suporto mais essa situação... Que seja!
17.Meu Deus, o que fiz para merecer tal castigo?
18 Meu amor, ajude-me!