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Marcos se enrola todo e acaba não dizendo nada aproveitável. Alegando estar passando mal, retira-se, para a estranheza de Ricardo, que se volta para a mulher.
 
_ O que houve com ele?
 
_Meu querido, ele entrou na CTI para ver como estava meu filho e voltou deste jeito, completamente perturbado. Será que meu menino morreu e ele não me quer contar? Que dor a minha!
 
A enfermeira abre a porta.
 
_Cadê o rapaz que estava aqui?
 
_O que houve com meu filho? Ele  morreu? – adianta-se.
 
_O que a senhora quer com ele?- pergunta Ricardo. _ Sou o patrão dele.
 
_Posso conversar com o senhor a sós?
 
_E meu filho? – insiste a mãe.
 
_ Se isso acalma seu coração, ele está lutando...
 
_Oh, graças a Deus!
 
_Venha comigo, senhor! – pede a enfermeira ao filho de Leonardo.
 
A uma distância considerável da mãe da criatura, a enfermeira revela:
 
_ O que pretendia seu funcionário? Se eu não chegasse a tempo, ele teria posto fim à vida do filho daquela mulher.
 
_Não estou entendendo!
 
_Ele estava pronto para desligar o respirador do rapaz, isso é assassinato, devo comunicar o fato aos meus superiores.
 
_ Não! Não! Deve haver algum engano! Eles não se conhecem e, mesmo que se conhecessem, por que faria isso?
 
_Estas respostas ele prestará à polícia.
 
_Não faça isso, por favor! Deve haver algum mal-entendido, mas não envolva a polícia. Vou conversar com ele, saber o que houve e, a depender do que me disser, será demitido. É uma pobre alma, sem família, que trabalha para meus pais há décadas, sei como tratar com ele. Por favor, dê-me essa chance, eu peço!
 
A mulher é convencida depois de muita insistência.

Atordoado, o chofer tecla o 8º andar ao invés do térreo e se enfurece, a ponto de esmurrar o painel do elevador.  
 
_ Quero sair daqui já! Que droga! – as imagens do rapaz ainda saudável se contrastam com as do doente que agora jaz naquela maca. _Não é possível! Pare! Pare, eu já disse! – diz, comprimindo a cabeça com as mãos  - ... Meu filho salvava vidas... – as palavras da mulher permanecem a amedrontá-lo a  ponto de ele tapar os ouvidos, na intenção de cessá-las. São como chicotes nas mãos dos feitores do tempo. _ Pare! Pare, desgraça! Pare!  É... ele salvava vidas  e nada fiz para impedir que fosse exposto a tanta dor. Marcos, Marcos, onde estava com a cabeça?- pergunta a si mesmo. _Eu estava tão cego pelas palavras de seu Leonardo que não percebia nada além de seu olhar carregado de cinismo e deboche. Fui mais uma peça manipulada em seu tabuleiro da maldade. Não! Não!
 
O remorso o corrói sem piedade.
 
_ Eu o considerava um demônio, assim como o patrão, a quem, infelizmente, ainda devo muito favores.  Mas nada justifica minha cegueira.
 
Chega ao oitavo andar. Fora de si, com a visão turva, tenta teclar outro piso, como não consegue, volta a esmurrar o painel, que entra em curto.
 
_Que droga!!! O que está acontecendo comigo? Ele é um monstro, a mulher mesmo disse de e-mails e fotos, devem ser de seu Ricardo e Anna, mas como ele faria tal maldade a ambos se o mundo conspira contra sua existência? Estou delirando! Ele, nem que quisesse, poderia fazer mal aos Médici...Minha cabeça está rodando! Preciso respirar. Monstro...demônio... anjo...salvador...que inferno! Por que fui me envolver nisso? – dá uns dois ou três tapas na própria cabeça. _ O que foi que eu fiz?
 
Sai do elevador, toma fôlego, olha para o alto, fecha os olhos, as memórias continuam a atormentá-lo; abre-os, inspira demoradamente e limpa o suor, que lhe escorre por toda a face. Solta-se pelo corredor e, como alma penada, passa pelos vários leitos e suas histórias de dor, sem que sua presença se faça percebida.

Perturbado, o homem continua sua viagem pelas entranhas ardentes daquele lugar, e a cada passo dado é como se envelhecesse, perdendo-se no tempo e nas ações.
 
_Meu filho salvava vidas... – A voz da mulher persistia, como uma obsessão,  para seu desatino._ Pare de falar, criatura! Saia da minha cabeça – estapeia-se. _Pare! Ele não é esse anjo de que está falando, não poupou esforços para acabar com os Médici, lembro-me muito bem! Pare! – grita.

_ O que há, senhor?  - pergunta um jovem ao vê-lo se contorcendo. _ Está passando mal?
 
_ Ele salvava vidas? Não! Só porque tirou um bebê do lamaçal não quer dizer que seja um santo; ele arruinou esta família, que também é minha, não de sangue, mas por consideração.
 
_Do que o senhor está falando? – pergunta o moço.
 
_Me deixe em paz...- grita, dando-lhe as costas.
 
Cansado, para diante de um bebedouro, serve-se de um copo, enche-o até o meio e o beberica. Trêmulo, deixa um fio de água escapar pelos cantos da boca, molhando a fina camisa de algodão. Passa a mão pelo molhado, é quando percebe que tem de voltar, seu Ricardo está à sua procura, certamente.

Joga o copo no cesto, quando uma profunda canção, saída de um daqueles quartos o atrai. Como uma estaca, a música lhe atinge o coração e o esfacela; tem vontade de chorar, mas confuso como estava, nem uma lágrima derrama. E ali permanece a ouvi-la, cujas notas ascendem-no ao estágio-mor da inércia.

Esquece-se, por instantes, da família Médici, e sai à procura  do aposento de onde ecoa a intrigante melodia que lhe oscula a alma na forma de um arrepio.

Sem perceber, adentra outra ala. Há crianças por todos os lados, mulheres implorando a Deus por salvação, enfermeiros em correria, médicos estressados...

Mesmo angustiado, prossegue, quer saber de onde vem aquela música e o porquê de mexer tanto consigo.


Para diante de um leito em que está uma criança, com as forças em vias de extinção. E é de lá que se origina a canção.

Uma brisa fria desce do céu, invade o corredor, toca-lhe os cabelos, acaricia-lhe a face. A sensação de perda é inquietante! Marcos chora ao ver o menino partir.
 
Uma jovem de uns vinte e poucos anos desespera-se. Ao lado dela, uma senhora, com um terço entre os dedos, ora em sussurros. Na outra ponta do quarto, um garotinho, talvez o irmão, agarrado à perna do possível pai, acompanha tudo sem entender o que acontece e, na cabeceira da cama, um pequeno aparelho toca repetidamente a canção que a ele hipnotizou.

Os olhos da mulher, possivelmente a mãe, de um vermelho sangue, encontram-se aos do chofer, que sem poder ajudar, afasta-se devagar.  Sem saber o que fazer, fecha os olhos e tem à frente a imagem de um Gabriel morrendo, lá naquele casebre onde Deus escondeu do mundo.

 
_Santo Deus! O remédio dos pacientes...– grita a enfermeira, ao derrubar a bandeja, após esbarrar no serviçal, que parecia penar pelo corredor, tal o desatino.

_Sinto muito! – diz Marcos, libertando-se do transe em que estava imergido.

_ Se minha chefe vir isso, levarei uma bronca.

_Mas não foi sua culpa; foi minha! Não sei o que deu em mim. Sinto muito! Foi essa música que mexeu comigo, estou meio perdido, por instantes é como se eu não estivesse mais aqui...não consigo explicar... - confessa à funcionária, ajudando a recolher os medicamentos.

_ Gabriel gostava muito de ouvi-la.

_Como? O menino se chamava Gabriel? – arrepia-se o motorista. _ Não pode ser!
 
_ Sim! O pobre menino a ouvia todos os dias, sempre no mesmo horário. E hoje as notas musicais tocaram pela última vez, anunciando sua partida.

 
_E que música é essa?
 
_”A way of life”, de Hans Zimmer – responde o pai, passando pelo local, com a cabeça baixa.
 
_ Isso mesmo! Tem uma melodia...
 
Marcos não termina de ouvir a enfermeira, volta-se para o elevador, quando se lembra que ele está parado, então segue para a escadaria. Desce os oito andares num pulo, quer logo sair dali, aquele lugar mexeu muito com sua razão.
 
_Marcos! – grita Ricardo ao vê-lo. _ O que você pretendia aprontar? A enfermeira me disse tudo, por pouco não foi parar atrás das grades. Fale, homem! O que pretendia? Você conhece aquele rapaz? E de onde?
 
O chofer não se segura e chora na frente do filho do patrão, que não compreende.
 
_Ei, o que há?
 
_...Ele salvava vidas, seu Ricardo, nunca parei para pensar nisso!
 
_Quem salvava vidas?
 
_Ele...ele...ele salvava.
 
O jovem não entende.
 
_Sente-se aí e se acalme! Do jeito como a coisa anda, daqui a pouco estaremos todos loucos.
 
_Jacira – liga para a empregada, assim que o rapaz se retira-, me ajude!
 
_O que cê qué? Não tô muito boa hoje não! Enquanto vocês andam de carro no bem bom, eu tenho de ralar de buzão, até de Gretchen da periferia fui chamada por um pingaiada, acredita? Só não lhe quebrei os dentes porque o cobrador entrou na frente. Ainda se me comparasse com a Betty Faria, a Suzana Vieira, a Lucinha Lins vá lá, mas com a “Conga la Conga”, é demais para a minha beleza...
 
_...me ouça, por favor! – interrompe-a, aflito.
 
_ Marcos, o que há, meu filho? – muda o tom de voz, percebendo que o caso era grave._ O qui cê tem? Aconteceu algo ao meu moleque ou...ou ao seu Leonardo? Vixi Maria! Fale logo, tô ficando agoniada!
 
_Ele salvava vidas!!!
 
_Quem salvava vidas???
 
_ O senhor dos infernos!!! Ele não era o monstro que imaginávamos!!!
 
_Eu, hein? Tá possuído? Ele acabou com toda a alegria da residência de nossos patrões e você diz que ele salvava vidas? Devia salvar a vida dos machos que carregava para os motéis.
 
_Não! Ele salvava gente inocente, criança...
 
_Com quem está conversando? – pergunta Ricardo, achegando-se com um copo de chá.
 
_Nã...nã...ninguém! Ninguém! – desliga.
 
_Que doideira é essa que o Marcos falou? Aquele sujeito nunca poupou esforços para levar dona Nathalia às lágrimas nem se preocupou com a sorte de seu Leonardo. Bonito feito uma peste, enfeitiçava homens ingênuos como o patrão e os levava a virar a casaca, cair na perdição; acho que devia mexer com macumba, porque eles pareciam cães atiçados atrás dele e agora me vem o Marcos com essa conversinha fiada. Tô fora, Suzicreide! Ele que levante asas para o meu moleque, dou-lhe uma cacetada de moer os ossos. Exprimente pra vê!
 
As horas passam...
 
_Cadê meu moleque? – pergunta ao segurança. _ Moleque! Moleque!! Moleque!!! – grita, sem noção, ao adentrar o hospital.
 
_A senhora não pode gritar aqui!!!
 
_ Nem as autoridades me impedem de achar meu moleque.
 
_Jacira, estou aqui! – acena-lhe o jovem, na sala de espera.
 
_Ali está meu moleque, sai da frente, não estou acostumada a falar duas vezes.
 
_Grossa! – sussurra o homem, sendo ouvido por ela.
 
_O senhor quer sentir o peso da minha mão? – volta-se para ele-._ Pois lave muito bem esta boca de caçapa antes de falar de mim; sou funcionária dos Médici há anos e exijo respeito, tá ouvindo?
 
_Venha, Jacira! Deixe de encrenca! – pede Ricardo.
 
_Você tá bem? E o Marcos, onde está? – percebendo a ausência do   chofer._ Já sei, nem precisa responder, na certa tá passando alguma informação pra alguém, porque o bicho é rato, está em todo lugar e só fala da vida dos outros. Só não presta pra trabalhar, se fosse meu funcionário, já estaria na rua, mas vocês aceitam qualquer coisa. Hum!  
 
_ Pare com isso, Jacira! – diz, dando-lhe um abraço. _ Ele está no carro. Mas me diga, por que veio aqui a esta hora?
 
_Para...para...bem, queria sabê como cê tava... Me preocupo muito com você, moleque, apesar de achá-lo muito fresco às vezes, mas nada que não se cure com umas boas palmadas. Mas, vamos deixá de lado essa conversa de amigos de boteco para tratar do que realmente interessa: o que tem o Marcos? Ele estava com uns papos estranhos no telefone.
 
_Então ele te falou?
 
_Falô o quê? Pois conte tudo, não me esconda nada! Vamos! Vamos! Como odeio mistérios.
 
_Ele quase matou um homem.
 
_Cruzes! De chofer a assassino, que decadência. Mas quem lhe contou essa mentira? A gente sabe que o bicho não é muito certo das ideias, daí a matar uma pessoa, só se tivesse possuído, o que não duvido, porque aquele lá é igual pai de santo, baixa em tudo que é terreiro.
 
_Não entendi nada! Mas consegui convencer a enfermeira a não o denunciar, visto que o rapaz ainda está vivo.
 
Jacira imediatamente associa a vítima à figura do ex-amante de Leonardo e muda de expressão.
 
_ E quem ele tentou mandar dessa para melhor?
 
O telefone toca, Ricardo se afasta. Aproveitando a oportunidade, ela vai até o estacionamento, onde encontra o chofer desolado.
 
_O que acontece, meu filho? Cansou de ser motorista de gente grã-fina para tentar a carreira de assassino?
 
_Me deixe em paz, Jacira, não estou bem.
 
_Problema é seu! É bom soltar o verbo antes que eu mesma resolva denunciá-lo, porque se não fosse o moleque, você estaria no xadrez a esta hora.

_Jacira, o cara não pode ser o demônio que nos pintaram.
 
_ Vai me dizer que acreditou em alguma história da carochinha que lhe contaram. Não se lembra, ele invadiu a mansão e só não agrediu dona Nathalia porque não deixamos. A mulher perdeu até a cor. Coitada! Que Deus a tenha! Aliás, me tire uma dúvida, meu filho, o tal não era rico, vivia amoitado na grana de seu Leonardo, então, de onde tiraria a grana para bancar o luxo deste lugar? Ah não! Não vá me dizer que...
 
Marcos balança a cabeça.
 
_Suzicreide do céu! – leva a mão à boca.
 
Batem no vidro do carro.
 
_Não temos dinheiro! – diz o motorista, ignorando.
 
_Largue de ser burro, é aquele segurança metido à besta. Pois veja o que ele quer...
 
_Corram! O senhor Médici está num choro só!
 
_MEU MOLEQUE??? OXI!!! O QUE TERÁ ACONTECIDO??? SERÁ QUE SEU LEONARDO BATEU AS BOTAS?  - pergunta em meio à afobação, dirigindo-se com o chofer à sala de espera. _ O QUE ACONTECEU COM VOCÊ? FALE, MEU FILHO!
 
Ricardo está inconsolável.
 
Marcos aponta para o celular dele, que está ao lado. A empregada o pega e leva um susto que quase a derruba.
 
_A FUNALINHA DA ANNA MORREU??? OXI! COMO ASSIM?
 
_Vixe! E pelo que dizem aqui nesta mensagem, foi de acidente, na marginal. Sangue de Jesus tem poder! – diz, Marcos, voltando– volta-se para Ricardo. _ É ela que estava naquele carro, quando passamos, patrãozinho! Como o mundo é pequeno! – comenta, agora com o celular em mãos. _Deve não ter aguentado o baque de que o senhor é gay! Ops, desculpe, foi sem querer! – dá um sorrisinho amarelo.
 
_ Você já melhorou, né, peste dos infernos? – pergunta Jacira, fulminando-o com olhos de uma mãe indignada.
 
_Deixem-no! – determina Márcia, ao adentrar a sala de espera. _ Ele precisa de cuidados especializados.
 
_ Essa bicha de novo não? Que vontade de dar um murro na cara dela! – sussurra Jacira, cerrando os punhos.