IX
 
Aproveitando-se do momento de reflexão de Ricardo, Marcos pega o elevador e se dirige à UTI. Está louco para ter um momento a sós com aquele que ousou levantar-se do túmulo para assustar os vivos. À porta, encontra a mãe do rapaz, completamente desolada, cobrindo-se do frio com um fino manto de lã. Não resiste à curiosidade.
 
_E como está seu filho, dona? Vi de relance o que lhe fizeram na recepção!
 
_Pois, homem, pobre neste país sofre demais. Se não fosse aquele rapazinho, meu filho já estaria debaixo da terra...
 
_...de onde jamais deveria ter saído – confidencia-se. _ E o que ele tem?
 
A mulher não responde.
 
_ O que ele tem? – insiste.
 
_Sabe, senhor, meu filho tomou o rumo errado da vida por um amor não correspondido à altura e foi à lona; por mais que eu o advertisse, ele nunca me escutou, como se estivesse possuído por um espírito imundo... Meu Deus! Se eu pudesse voltar no tempo, com certeza, teria entrado nessa história de outra forma, sido mais incisiva, internando-o mesmo, se fosse o caso.
 
_A senhora quer dizer que tudo isso é por conta de uma paixão? E desde quando paixão leva alguém à UTI? Sei não!
 
_O senhor não tem razão no que fala, disso eu garanto, porque o amor pode destruir uma pessoa quando deveria ser o oposto.
 
_Não sabia... – diz Marcos, com os olhos ressabiados.
 
_ E pensar que meu filho salvava vidas e hoje está assim... Para morrer só falta desligarem os aparelhos.
 
_Verdade? - finge surpresa. _ Pois é isso que irei fazer – pensa. _Quando diz que ele salvava vidas, o que mesmo quer dizer?  
 
_Meu filho era um homem de bem, vivia feliz, gostava de ajudar o próximo, de estar onde mais precisavam, porque seu maior prazer era ver o sorriso das pessoas, a alegria daqueles que ousara servir; hoje, fenecendo lá naquele leito, não lembra em nada o homem que eu pus no mundo – levanta-se da cadeira. _ Em nada! - olha profundamente para os olhos   dele. _ O senhor já pensou na hipótese de um filho seu sair de casa para trabalhar e voltar, meses depois, completamente mudado.
 
_Mudado...mudado como?
 
_Ele não sorria mais, seus olhos já não brilhavam e seus sonhos inexistiam; havia se tornado escravo de uma paixão doentia.
 
_ Mas... mas...o que aconteceu? -  indaga como se não soubesse.
                                                                   
_ Não sei direito, ele sempre foi muito reservado, mas que havia algo de errado havia, senhor. Lembro-me da noite que ele saiu quase de madrugada para atender aos caprichos de sabe lá quem; ele não pensou nos perigos nem na própria família. Deu um pulo, juntou as malas e se foi para uma cidade do interior...
 
_Ribeirão Preto – confidencia-se o motorista. _ Ele estava lá! _O que uma mulher não faz na vida de um homem, não é? – atiça, para ver o que ela diria.
 
A  mãe emudece, recolhe-se de novo à cadeira, abaixa o pescoço, cobrindo o rosto com as mãos.
 
_Ei, senhora, desculpe, não quis lhe causar dor ainda maior.
 
_Nenhuma palavra que dissesse poderia causar maior dor de que a de ver o meu filho à beira da morte. Um menino gerado com tanto amor... cuidado como um príncipe! Não me conformo! – limpa as lágrimas _ Se ele fosse de aprontar, como muitos por aí, que não ligam para nada e se importam apenas com o próprio umbigo, até tentaria entender; mas não é o caso, porque ele sempre foi muito prestativo, de uma educação ímpar, amado pela família e pelos amigos, incapaz de fazer o mal a um semelhante... E acabar desse jeito? Isso me deixa sem chão!
 
_E como não deixaria?
 
_Pois é! Mas tenho fé, ele há de sair dessa; quero-o para mim ainda que por mais alguns momentos. Muitos diriam que eu deveria deixá-lo partir, ele sofreria menos, mas eu me nego a aceitar esta opção, pelo menos enquanto eu suportar.
 
_E não está sendo egoísta?
 
_O senhor tem filhos?  – rebate, surpreendendo o chofer.
 
_Não! Ainda não!
 
_Pois um dia o terá e sentirá a minha dor... – arfa com ligeira dificuldade- ... não o quero doente, meu sonho é o de que resista, sobreviva e se recupere, assim eu estaria em paz. Se isso é egoísmo... Aliás, sabe de uma coisa?
 
_Fale!
 
_Fiz um pedido a Deus, que me levasse no lugar dele, já sou velha, vivi o que tinha de ser vivido, tive tudo o que a simplicidade poderia me dar; ele não, ainda é jovem, precisa de uma segunda chance. Como gostaria de vê-lo sorrindo de novo! Deus há de me atender, não acha?
 
_Sei lá, dona! – responde, tocado pelas palavras. _ Dessas coisas de religião eu não entendo. Mas se seu filho foi tudo isso que disse, seu lugar já está reservado ao lado do criador, não é?
 
_Não! Como lhe disse, ele não é mais o mesmo, de uns tempos para cá abandonou a todos, deixou de lado a cortesia e se tornou agressivo; só estava feliz diante do computador.
 
_Diante do computador? Mas... mas...por quê? Seria um romance novo?
 
_Não sei! Era como se perdesse o senso, ora gargalhava, ora chorava; dia desses dizia que alguém morreria, que tiros voariam para todos os lados... Coitado! Certamente estava variando.
 
_Tiros? – estranha. _Eita nós! Do nada?
 
_Do nada! Sem falar de mandar e-mails com nome de outras pessoas, fotos...Na altura de sua loucura, tudo o que dissesse parecia real, mas sabíamos, com o coração que tinha, seria incapaz de tais crueldades.
 
_Tiros...e-mails...fotos... não pode ser! – diz o chofer a si mesmo, juntando as peças. _ Não pode ser! No estado em que se encontra?
 
_ Se houvesse uma nova chance, batalharia para que ele resgatasse o coração que outrora tivera. Morreria com a alma em paz.
 
Um médico sai da UTI.
 
_Como ele está, senhor? – pergunta a mulher, segurando-o pelo       braço. _Sou a mãe do rapaz que acabara de chegar.
 
O médico apenas abaixa a cabeça, para o desespero dela, que é contida pelo motorista.
 
_Ele não merecia isso...Meu filho é um homem bom! Não merecia isso!
 
_E quem é a senhora para mudar o destino de uma pessoa?
 
_Ele não é qualquer pessoa. É O MEU FILHO! O MEU FILHO!!!
 
_Como uma peste dessas pode ter uma mãe tão nobre? – pensa o chofer. _ Salvava vidas? Como assim? Aquele demônio destruía pessoas!
 
_ Senhor, me dê um copo de água, tá tudo virando.
 
Assim Marcos o faz.
 
_ Muito obrigado, moço! Deus lhe pague.
 
_Espere um pouco...
 
_O que fará?
 
_Verei como está seu filho...- tem outras intenções.
 
_Mas não podemos entrar, aí é um CTI.
 
_Espere aqui...espere!!!
 
Marcos olha para os lados, percebe que não há câmeras no entorno, então adentra a sala e caminha pelos leitos à procura da tal criatura. O lugar é de um silêncio sepulcral e isso o intimida. Os leitos, um ao lado do outro, são separados por biombos. Passa pelo primeiro. Há um rapaz bem novo, muito machucado, uma possível vítima dos acidentes de trânsito. Passa pelo segundo, pelo terceiro e, no quarto, dá de frente com Leonardo, o patrão.  Aproxima-se, toca nele, está gelado; mas não morto, confirmam os equipamentos que o monitoram. Se afasta e, no leito seguinte, o susto. Nele está a criatura, entubada. Que coisa! Leonardo e seu ex-amante, separados apenas por um biombo. Quem diria! Dá uma olhada para a porta, ninguém à vista, então toma coragem e se aproxima. Como aquele rapaz, de uma beleza estonteante, poderia ter chegado àquela condição? Amor? Duvido! – pensa Marcos. De um deus não restava qualquer semelhança. Coitado! Estava literalmente morto em vida! Bastava apenas desligar o respirador. E esta é a intenção do chofer.
 
Com as mãos na tomada, observa o ser, inconformado. Como pode chegado a este estado? Se Leonardo o visse daquele jeito, dizimando os últimos goles de sua existência, certamente não o reconheceria mais como o galanteador de outrora. Longe disso, pensaria que fosse alguma alma retirada dos fossos do palácio da morte. Está a um passo de matá-lo outra vez, porque da primeira, o destino o tapeou.

_Eu mesmo o vi morto, lembro-me bem, lá naquele quarto. Como pode? – pergunta. _ Até agora não estou acreditando...
 
Prepara-se para puxar a tomada, quando as palavras da mãe do rapaz lhe vêm à mente e o comovem, como nunca havia acontecido.
 
_Cadê sua coragem, homem? Cadê?  Vamos, basta um puxão e este miserável voltará para o inferno, de onde jamais deveria ter saído. Vamos, vamos! – revolta contra si mesmo. _ Vamos, Marcos! Coragem! CORAGEM!
 
_ E pensar que meu filho salvava vidas e hoje está assim... - relembra as palavras da mulher, o que aumenta seu nervosismo. _Salvar vidas? Como assim?  O que está acontecendo comigo? Fiquei velho e covarde? Não pode ser!
 
_...meu filho salvava vidas... Salvava vidas! SALVAVA VIDAS! – as palavras da mulher o desorientam profundamente, a ponto de ser invadido por lembranças que jamais pensou um dia revisitar.
 
O plantão do Jornal Nacional interrompe a novela Mandala, obra de Dias
Gomes baseada em Édipo Rei, a tragédia de Sófocles, o grande dramaturgo grego da antiguidade, no momento em que Jocasta, personagem de Vera Fischer, revelaria a Édipo, de Felipe Camargo, ser sua mãe, para transmitir, ao vivo, o resgate de um bebê de oito meses, soterrado após avalanche do barraco onde morava com os pais e mais dois irmãos, já encontrados e declarados mortos.

Há três dias não parava de chover na capital paulista e os rios, transbordando, regurgitavam contra o homem os dejetos da indústria que ingeriram durante meses. Carros de bombeiros estavam por todos os lados, a correria dava lugar ao desespero; morros desabavam levando consigo vidas e histórias de pessoas sofridas, que à margem da sociedade, sobreviviam do pouco que angariavam das latas do lixo ou da caridade de um e de outro. As lágrimas eram muitas e o sofrimento jamais visto.

A solidariedade, luz divina que abrilhanta o espírito humano, mantinha em pé o grupo de voluntários, que mesmo exausto, persistia na busca pelo bebê, cujo choro fino, embrenhava-se pelos destroços, naufragando na agitação da superfície.


A garoa não cedia, alguns populares, atentos, não desgrudavam os olhos dos morros adjacentes, o perigo de novos deslizamentos era iminente.

Políticos de todas as partes da cidade chegavam com seus carros luxuosos bancados à custa da exploração popular. Entre um aperto de mão e a entrega de um santinho, posavam-se de anjos, sensibilizados com a tragédia, como se não fossem os responsáveis pela aflição desse povo.


Os oportunistas de plantão gravavam tudo para a campanha eleitoral gratuita da TV, expondo a administração atual, que dificilmente escaparia dos ataques em que seria acusada de negligente, impiedosa com o social e subserviente aos interesses internacionais.

As imagens da tragédia viajavam o país, comoviam o mundo, geravam críticas de estadistas pela péssima aplicação do dinheiro público em obras que não evitaram a dor de tantas famílias brasileiras.

O bombeiro Gabriel, integrante da equipe de salvamento, mesmo com as forças quase esmorecidas, precisa chegar à criança, retirá-la daquela lama, mantê-la viva, crente em dias melhores, em uma família que a protegesse das intempéries do destino. Ao retirar uma pedra com os dedos que a terra devorou nas últimas horas, avista o rosto do menor e grita, envolto em um pranto comovente, ao perceber que ele havia resistido à morte com a audácia de um querubim.

O milagre ecoa além das fronteiras da sensatez, a vida humana, como na passagem bíblica, vence novamente a deusa das trevas, cujo prazer é instigar o pânico, semear a dor e conduzir a alma do condenado às ruínas do caos.
 
Assistindo ao salvamento de dentro de uma limusine, imune a todo aquele sentimentalismo, está Leonardo Médici, insigne capitalista da pauliceia desvairada. Espera alguém. Aparentando insatisfação, comenta com o motorista:

_Quanta hipocrisia! O que será desta criança? Melhor seria morrer, de trombadinhas o mundo está farto!


_ Seu Leonardo, quanta impiedade! – satiriza o serviçal.

_ Não confunda impiedade com sinceridade, imbecil!

_Desculpe, senhor!

Aplausos são ouvidos quando a criança, uma menina, é elevada pelo bombeiro, agora um herói.

_ Se já não bastasse ser belo, agora um herói da plebe! – desdenha o empresário, ao vê-lo ser cumprimentado pela população.

Gabriel carrega a criança e a entrega ao médico, que lhe providencia os cuidados necessários.

_Marcos! – chama Leonardo.

_Em que posso ajudá-lo, senhor?

_Avise-o de que estou aqui. E não demore, tenho aversão a lugares pobres...

O motorista atravessa a multidão e avisa o bombeiro da presença do patrão.

_Como você está, meu herói? – escarnece o patriarca da família Médici.

_Que bom que veio, meu amor! Estou a pensar em você durante o dia todo!

_Não minta, essa plebe é mais interessante do que eu...


_ Não fale assim, Leonardo... – pede o jovem, percebendo o tom de ironia._O que há com você? Está com ciúmes?
 
_ Ciúmes de quem? Do povo ou daquela futura “Escadinha”12, que você tratou de salvar, para o azar das pessoas de bem como eu? – gargalha o pai de Ricardo. _Faça-me o favor, enxergue-se! Quem pensa ser para me despertar ciúmes? Pobre criatura!


_ Por que está me tratando dessa forma? O que lhe fiz?

O rapaz se curva para beijá-lo, sendo veementemente repudiado.
 
_Afaste-se de mim, seu cheiro me causa enjoo.
 
Gabriel arregala os grandes olhos e se contém, sua vontade é a de sair dali e nunca mais voltar, mas seu coração o impede, pois o amor que sente pelo esposo de Nathalia é maior do que a dor causada por qualquer humilhação.

_ Quero que deixe essa profissão e seja apenas meu, se não o fizer, prometo, não me verá novamente.


_ Mas...não posso deixar a Corporação, adoro o que faço...e o que está fazendo é uma ameaça. Não posso aceitar isso! Sou uma pessoa digna, de um coração...
 
_... tolo! – completa o empresário. _Não quero ver o meu homem roçando-se nas pernas de outro, remexendo o lixo para salvar pessoas socialmente insignificantes; quero-o somente para mim, usando o perfume que eu lhe comprar, com as roupas importadas que eu lhe presentear, no apartamento que eu lhe oferecer, esperando-me toda noite, assim como faz a imbecil da minha esposa...

_ Por favor, não faça isso comigo! Não mereço esse tipo de vida! – suplica o rapaz.

Marcos ouve toda a conversa e pelo retrovisor acompanha a guerra facial de ambos.


_ Aceite ou jamais me verá. Minha vida não necessita de herói, mas de criaturas comuns como você. É pegar ou largar!

_ Você me ama mesmo, Leonardo?

_Amar? Que idiotice é essa? O amor não existe, é fruto que apodrece o espírito humano.

_ Se você não me ama, o que então sou para você?

_ Apenas um aperitivo, pois o prato principal encontra-se em casa.
 
O servidor público não acredita no que ouve e toma uma atitude.

_ Se é assim, então chegou a hora de nos despedirmos! – declara, com os olhos entristecidos.

_ Jamais alguém ousou me abandonar e você não será o primeiro! Fará justamente o que eu disse, senão, ao invés de mim, poderá ter a escuridão de um buraco como nova companhia.

_ Ó Leonardo...

O barro da roupa do bombeiro escorre pelo banco do veículo, atiçando a ira do empresário:
 
_ Veja o que seu ato de heroísmo foi capaz de fazer! Pensa estar onde? Num desses paus-de-arara do Estado? Hum! Saia de meu carro, infeliz!

Gabriel cai em prantos, comovendo o motorista, mas não a Leonardo, que se delicia com suas lágrimas.


_ Saia de meu carro!

O bombeiro abre a porta e antes mesmo de fechá-la, é advertido:

_ Espere-me para hoje! Quero deitar minhas mãos por seus músculos e sorver toda sua essência, assim como um vampiro bebe o sangue de suas vítimas.

Decepcionado, o rapaz deixa o carro, lágrimas ainda lhe escorrem pela face. À imprensa diz ser de emoção pela homenagem popular ao seu gesto de bravura...Todos acreditam!


Fechando o vidro, Leonardo se volta para Marcos e, com a frieza de um psicopata, decreta:

_ Estou cansado desse idiota! Mate-o!

A limusine parte, assim como as lembranças...

_Senhor...senhor... o que pensa estar fazendo? – pergunta uma enfermeira, ao se deparar com o motorista prestes a desligar o respirador.

_ Hã...como?
 
_Vou chamar a segurança, o senhor estava...estava...
 
Ele se vai, ignorando-a; antes de fechar a porta, dá outra olhada, como se quisesse vê-lo uma última vez.

_ E o meu filho? – levanta-se da cadeira, indo ao encontro dele. _ Como ele está? Como ele está?
 
_Ele...ele... – não consegue completar a frase.
 
_Ele morreu??? – pergunta, agoniada._ Morreu?
 
_Ele salvava vidas...É verdade! – diz, consigo mesmo, completamente atordoado._ E eu quase o matei e pela segunda vez. Onde eu estava com a cabeça?
 
_Senhor, responda, ele morreu?
 
_Quem morreu? – pergunta Ricardo, visivelmente incomodado com a expressão de sofrimento do empregado. _ É de meu pai que ela está falando? Responda, Marcos!
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12 José Carlos dos Reis Encina, vulgo "Escadinha", foi um traficante de drogas brasileiro. Fundador da facção criminosa "Falange Vermelha", hoje em dia "Comando Vermelho". Mais tarde se tornando um escritor de música do gênero Rap.