VI

A mão direita está estirada sobre a mesa do computador enquanto a esquerda segura um copo de cristal com whisky. Os poucos cabelos ralos esvoaçam com a brisa que vem das brechas da janela. A iluminação é precária, mantida pela tela do computador, que pisca, volta ou outra, a ponto de queimar. Os móveis aparentam passar de anos, tanto que a cama está apoiada sobre tijolos. O local é sujo, o chão de um verniz gasto, as paredes rabiscadas com nomes, muitos nomes, todos em cores distintas, como se cada cor atribuída contivesse a essência e a história de seus respectivos donos. Recortes de jornais estavam por todos os cantos; alguns datavam de 1989, ano em que Lula enfrentara Collor, o dito rei dos marajás, nas urnas de todo o país. Era a primeira eleição democrática após 20 anos de ditadura.

Em uma das fotos era possível identificar Leonardo Médici na companhia das maiores personalidades da década de 80. Na euforia da era colorida, ele era flagrado fazendo campanha gratuita a um dos presidenciáveis. Numa outra, já com texto menor e fotografia em preto e branco, encontrava-se Nathalia e Ricardo. Estavam num parque de diversões, de mãos dadas, sorrindo, como se o fôlego da vida nunca lhes fosse faltar; a celestialidade daquela imagem impressionava! A jovem senhora Médici, por obra do destino, estaria morta dias depois, vitimada por um acidente, até hoje, inexplicável.

No velório, debruçado sobre o caixão, o bondoso marido protagonizava uma gigantesca reportagem, que pregada acima da cama, era motivo de adoração. Mas a bizarrice não para por aí, sob a imagem de um Leonardo abatido, conduzido às lágrimas de mártir, havia o desenho de um chifre. E naquela fotografia o tal sujeito se perdia enquanto bebericava o whisky. Seus olhos, de um negrume entorpecente, pareciam dizer “Venha a mim, meu senhor!”.


O silêncio era macabro, estava-se diante de uma cova aberta, com os corpos expostos às lembranças. O relógio, no canto da cama, desperta. São seis da tarde, hora em que as almas levantam de seus becos e saem à procura de corpos para se alojarem; hora em que figuras sinistras – como a daquele sujeito - acordam para a maldade e fazem da própria existência uma ponte ao inferno. Encontrando a figura de Ricardo, com a idade atual, agarrada ao corpo de Anna, numa das recordações da festa dedicada a uma das herdeiras da família Marcondes, o sujeito gargalha. O deboche só é cessado quando a imagem de Nathalia e o garoto é reencontrada.

Levantando-se da cadeira com o apoio de uma muleta, aproxima-se da fotografia. Perto, e com os olhos injetados de fúria, confessa:


_ Você nunca me fez nada, mas eu sempre a odiei! Sempre!

A porta do quarto se abre, a luz dizima a escuridão, os anjos correm pelo mausoléu, os demônios se recolhem, sobrando apenas o estranho, que chora agarrado ao recorte. Vendo-o, naquele estado, uma idosa, de cabelos brancos, lisos e amarrados com uma tira de chita, suplica:


_Você está bem, meu filho?

_SAIA DAQUI, VELHA! SAIA! SAIA! – vozeia, prensando a fotografia entre as mãos._ SAIA DAQUI! VAAAAMOSSS!

_Filho... vo-vo-você precisa de remédios- balbucia, com as lágrimas a marcarem a face-, vim trazer... Tome, vamos! Vai melhorar, eu sei!
 
_SAAAAAAAAIA!!! – está fora de si.
 
_ Pare, por favor! Você está me assustando. O que há? Quer que eu chame uma ambulância? - chora.

_SAIA, VELHA MALDITA, SAIA DAQUI!- continua a berrar. _ FAÇA O QUE ESTOU DIZENDO ANTES QUE ALGO DE RUIM LHE ACOMETA, PORQUE, NESTE MOMENTO, EU NÃO RESPONDO PELOS MEUS ATOS.
 
Atemorizada, a mulher se retira.

Novamente só, ele apoia a cabeça entre as mãos e respira fundo. Não acredita ter chegado tão perto e ainda não ter cumprido sua vingança. Sua vida está por um triz, tem pouco tempo até que o último grão se esvaia da ampulheta e lhe faça figura deletada deste planeta. Precisa ser mais rápido, exterminar de vez a família que o conduziu a esta existência inútil.

Pretendia ir ao toalete, quando ouve o sinal de que um de seus contatos está on-line. De um salto, volta-se para o micro, é quando percebe que o dono do nick “Gostoso e Eterno” está à sua procura. Possuído por uma força monstruosa - advinda de algum beco de sua essência mais íntima-, ele assume uma personalidade sedutora, onipotente, cuja supremacia reluz; aquela figura apática, fragilizada pela doença, incapaz de amar e de ser amada, é deixada para trás.


A força lhe toma os músculos, os olhos crescem, a boca deixa de salivar, o cansaço vira pó. Um novo ser está diante da tela, pronto para hipnotizar e fazer-se hipnotizado, dominar e ser dominado...A figura onírica e absoluta do “DESBRAVADOR DE IDENTIDADES”, assim como Zeus, o deus grego, brilha no topo do mundo.

_VOCÊ DESTRUIU MINHA VIDA...POR QUE FEZ ISSO, DESGRAÇADO? – exige Ricardo, transtornado.

_Eu? Do que está falando, caro amigo? Jamais faria isso com uma pessoa que tanto estimo – dissimula.
 
_QUEM É VOCÊ??? E POR QUE ESTÁ FAZENDO ESTAS COISAS???
 
_Como já disse, sou apenas consoantes e vogais que correm afoitas pela tela de um computador, na esperança de encontrar um corpo que as abrigue – contém-se, com uma frase friamente calculada.
 
_Pare com isso! Você me conhece, se não, como justificar tantas informações sobre meus pais em nossa primeira conversa? No início imaginei que fossem apenas coincidências, que você havia acertado por acaso, afinal, sabe brincar com as palavras, iludir as pessoas e levá-las à beira do fiasco psicológico. Ou como explicar tudo o que faz?
 
_ E o que eu fiz de tão repugnante assim, meu amigo?
 
_VOCÊ NÃO É MEU AMIGO! NUNCA FOI!
 
_ Realmente, amigo não! Quase fui o seu dono ou se esqueceu?  
 
_NUNCA!!! – repele, indignado.
 
_Você ficou louco por mim, a ponto de pôr a própria vida em risco.
 
_Você é um monstro! Por que distribuiu fotos minhas com Anna e com aqueles homossexuais? E como as conseguiu? Você estava lá, não estava?
 
_Lá onde? Não compreendo!
 
_Lá...lá na Augusta.
 
_Teoricamente, sim!
 
_ E o que isso quer dizer? Deixe de tanto mistério, fale, você deve possuir algum sentimento, não pode ser só esta criatura fria e assustadora...
 
_... que o hipnotizou sem qualquer dificuldade! Que ironia, não acha?  – entrecorta-o, completando a frase. _ Eu não estava de corpo e alma, mas em seu coração; como ainda estou, não é?
 
_Você...você...é louco! Com quem eu fui me envolver! Você fez tudo de caso pensado, é alguém que eu tenha destratado? Algum inimigo? Fale, criatura! 
 
O Desbravador se cala.
 
_O que está ganhando com isso, seu infeliz? Você teve a audácia de escrever uma carta nojenta em meu nome e dispará-la para não sei quantos e-mails, e tudo pra quê? O que pretende com isso? Fale! É dinheiro que você quer? Pois eu tenho aos montes. Diga o seu preço que farei questão de dobrar o valor.

_ Pode-se comprar o corpo de uma pessoa, não a sua alma. E o meu, para seu infortúnio, não tenho preço!
 
_Todos têm um preço!
 
– Não! Apenas o que se acham deuses! Estes sim, são facilmente corrompidos!- dispara o Desbravador, para a espanto do jovem, que se vê desarmado diante das palavras do estranho.

_Você é doente! Juro, se o encontrar, é um homem morto.

_E como matará alguém que já se considera morto? – satiriza o maldoso senhor dos enigmas.

_COMO?- está perplexo. _ O que diz?

_O único que morrerá aqui será você e com um belo tiro na nuca! É questão de tempo! Duvida?
 
_“Santo Deus!”
 – exclama o garoto com os olhos atordoados. _Com quem fui me meter? Com quem?- respira com dificuldades._ Com quem?
Me responda uma coisa...
 
_Fale!
 
_Por que está fazendo isso comigo? O objetivo não era nos conhecer, talvez passar a noite juntos, curtir um ao outro, ser feliz, se é que existe mesmo a felicidade entre seres do mesmo sexo? Por que transformou fantasia em pesadelo? Por que transformou a vida de um jovem em chacota na boca de uma elite aviltante? O que ganhou com isso? O quê? Só conseguiu trazer tristeza e desespero à vida de uma família que jamais lhe fizera mal...Nunca!

Em prantos, Ricardo se afasta. Inconformado, perde o senso e destrói a mesa do computador aos golpes, desconectando a CPU do monitor, que entra em curto ao encontrar o chão.


Desesperado com o repentino sumiço do rapaz, o Desbravador grita, enquanto o caça, assim como um predador a sua presa, pelas outras inúmeras salas de bate-papo. Mas não o encontra.  Trêmulo, bebe o último gole de whisky, enquanto esmurra a própria palma da mão.

_Cadê ele? Cadê? Ele não pode me deixar aqui sozinho...Não pode! Preciso dele... preciso... PRECISO DELE!

A máscara cai de novo, o Desbravador de Identidades perde os poderes; o que se apresenta agora são os restos de um ser que ousou brincar de Deus. Um Deus que jamais fora!
 
Com a respiração dificultada por uma tosse repentina, despenca da cadeira, batendo a cabeça contra o chão. Tenta se levantar, mas não consegue.  Precisa do remédio, seus últimos grãos estão passando pela ampulheta. Bate o pé contra a parede, na esperança de que sua mãe o ouça e o socorra daquela angústia, se é que isso seja possível!


A porta se abre... Caído ao lado da cama, com a face avermelhada e os olhos abugalhados, estava aquele que se dizia o senhor dos tempos, o deus dos enigmas, o desbravador das personalidades mais íntimas... Pobre criatura!