A sombra das estrelas. Capítulo 1: Fim da tarde
>São Paulo, Brasil<
Os oito tomos do processo foram depositados na mesa do advogado. Ele olhou com certa ternura para aquela relíquia, encadernada em papelão rosa cheia de orelhas, com diversos barbantes e grampos. As folhas amareladas e manchadas como a pele de uma múmia caíram pesadamente.
O advogado em questão era um homem de meia idade com um rosto cuidadosamente barbeado, baixo, com uma pança incômoda que ele tentou queimar e agora tentava esconder com a postura e roupas largas.
- Olha pra essa velharia - Doutor Ivo disse ao estagiário, que disfarçou a sua tentativa de rasgar o próprio nariz. Rinite alérgica é uma praga.
O processo eletrônico já existia há algum tempo, mas ainda existiam estes últimos zumbis analógicos.
- Já fez as cópias?
- Fiz doutor - Bernardo, o estagiário, coçava os pulsos agora, discretamente. Seria alergia ou nervoso?
- E a jurisprudência?
- A tese que o senhor falou não vigora mais desde 2013. Basicamente o entendimento agora é o inverso - Bernardo deu uma risada contida.
O advogado levou a mão aos olhos xingando baixinho, com uma preguiça irritada.
- Não podemos elaborar a peça antes que eu leia essa ... Pode sair mais cedo hoje - disse o doutor, e Bernardo por respeito não pontuou que já passava mais de meia hora de seu horário.
Ivo gostava do rapaz, era dedicado, pensava rápido, podia estar em um escritório grande. Era o seu primeiro ano de faculdade, e Ivo tinha certeza de que ele já sentia o cheiro de sangue na água e estava enviando currículo. Ele não se ressentia disto, falava constantemente com o menino sobre o mercado, sobre como as coisas podiam ser diferentes daquele escritório pequeno, de rua pequena e majoritariamente residencial.
Leu vagarosamente a decisão que Bernardo enviou. Guardou as cópias na gaveta e vestiu o casaco. Se despediu da recepcionista.
Saiu e deu de cara com a chuva, com o vento hostil. Antes que ela começasse a apertar decidiu chamar um Uber. Aquela rua residencial era distante de sua própria residência.
Tão ocupado estava em se ocultar da água gelada embaixo do toldo de um barzinho, que não percebeu o homem que caminhava em sua direção. Não se tratava de uma distração, mesmo que estivesse prestando atenção, Ivo não teria percebido aquela figura, quase ninguém o via, e quem o via não se recordava por muito tempo.
Era uma figura magra, um homem bigodudo em um terno surrado, com olhos mortos e uma permanente careta de desprezo. Ele também passou despercebido pelos atendentes do Bar, quando pediu um café e um pão na chapa. Ele foi servido, é claro, mas nenhum atendente seria capaz de lembrar seu rosto ou mesmo de ter servido alguém naquele horário.
Na semana anterior, essa sombra levou um suéter enquanto os vendedores bovinamente o deixaram passar. Na semana anterior a essa, ele passou uma noite toda no cinema.
Mas... Voltemos ao advogado. Ele retornou à sua casa, seu filho estava preocupado com o relatório que tinha de enviar antes do fim do dia, martelando no laptop da empresa. A esposa veio recebê-lo com um beijo saudoso, porém acostumado. A sogra no sofá, rezava o terço.
A esposa se perguntava se ele havia saído de terno (não se lembrava, mas tinha quase certeza que ele não tinha saído de gravata). Seus pensamentos foram interrompidos quando ele perguntou o que havia para o jantar. Devia ser só impressão.
A sopa de feijão estava ótima. A sogra o encarava com desconforto, mas essa expressão não era muito diferente daquela com a qual ela normalmente olhava para qualquer um desde que a demência começou a se instalar. "Ivo" limpou seu vasto bigode no guardanapo, ajeitou seu corpo ossudo na cadeira. Elogiou a comida da Esposa.
Enquanto lágrimas começavam a escorrer dos olhos da sogra, em silêncio, um novo mendigo perambulava pelas ruas, pequenas e distantes daquela residência. Um estranho mendigo, não muito gordo, só com uma pancinha indiscreta, o rosto bem barbeado vestindo uma camisa social, uma calça social, mas sem sapatos ou meias. Ele vagava pelas ruas com um olhar atoleimado. Dopado mesmo. Sorrindo bobamente para os motoristas que não o viam, mas ainda assim desviavam seus carros.
A chuva molhava seu rosto, sua roupa. Ele não tinha passado nem presente. Eles haviam sido emprestados.