É ASSIM QUE DEVE SER - CAPÍTULO 27

"I know I've only just met you

Maybe I should know better

But when you look at me that way

There's something inside that's so right

I don't want to lose you

I don't even want to say goodbye oh no

I just want to hold on

To this true love, true love"

(I DON'T WANNA LOSE YOU - TINA TURNER)

A mesa é menor. Bem menor. Os pratos e talheres não são de prata, embora estejam tão limpos quanto os de minha tia. O bife, ao ponto, extremamente macio. As batatas estão mergulhadas no óleo fervente numa panela com cabo de aço sobre um fogão de seis bocas. Penso, enquanto termino de preparar o jantar que, seis bocas não são suficientes para uma família numerosa como a de Doc. Seus três netos são lindos, espertos e educados. A mais velha é a cara da mãe...morta.

- Assopra. - Advirto-a, observando a reação entusiástica das crianças diante do prato forrado com papel toalha onde despejo as batatas. "Eu gosto de batata frita, tia". - Revela a menininha com pontinhos coloridos ao redor de sua cabeça. Sabe-se lá o que isso significa. Deve ser algo de bom, no entanto, em sua voz há um toque sutil de tristeza e,em seu olhar manso, alheio, profundo, posso ver que ela vê o que eu vejo e, provavelmente, um pouco mais. Pobre Doc! Essa vai dar trabalho. - Vai queimar sua língua, querida. - Alerto-a, num tom de voz amoroso quando a vejo jogar a batata em palito no fundo da boca. Uso do mesmo tom que minha tia usava comigo quando, esfomeada, pedia para ser a primeira a ser servida durante as refeições. Estamos todos reunidos à mesa, inclusive Doc e sua esposa, absolutamente distante, embora esteja sentada ao lado dele que se posiciona à minha frente. Há dois dias hospedo-me em sua casa sob a condição de pagar por sua acolhida. Eu limpo a casa e preparo as refeições. Esse fora o combinado, basicamente imposto por mim.

Há dois dias, Carlos correra atrás de mim enquanto Doc, contrariado, pisava fundo no acelerador deixando um rastro de fumaça por onde passávamos. Pelo retrovisor externo, eu via a figura do homem que me esquecera, desaparecendo até virar um pontinho branco insignificante.

Um pontinho que me faz falta.

- Tá pensando nele? - Arrisca Doc com um sorriso no canto da boca. - Confessa.

- De jeito algum. - Respondo, levando à boca um pedaço do bife acebolado. Uma delícia. Tento desviar sua atenção, oferecendo-me para fatiar o bife de seu neto que se senta ao meu lado. Ao contrário da irmã, o rapazinho possui a alegria dos que nada veem além da linha tênue que nos separa do 'Outro Lado'. Sorte a dele. - Eu o risquei da minha vida, meu bem. - Continuo a falar sem encarar Doc que me olha com seus grandes olhos atentos, o coração imenso de quem deseja o bem a todos. Imprimindo força nos meus dedos, risco o prato com o garfo. De imediato, as crianças erguem os braços, tampando os ouvidos. - Diabos! - Praguejo, estremecendo-me toda. Descontrolada, assevero, irritada com o ruído. - Um homem que não foi capaz de me procurar após um dos piores momentos de minha vida não merece minha atenção. - Emborco o copo com água até que o esvazie. O copo volta à mesa num baque surdo. Algo neste ato faz com que seus netos desatem a rir. - Foi mal. - Estreitando meus olhos, falo diretamente às crianças que me dão total atenção. - Não falem o que eu falo. Não façam o que eu faço. É feio, ok? - Aviso, meio que sem graça. Devolvo os talheres ao pequenino e, expressando em minha face uma indiferença que estou longe de ter, continuo. - Não preciso dele. Preciso me valorizar. Preciso me amar. Preciso ser alguém. Preciso crescer. Foi meu tio...

- Quem te pediu. - Complementa Doc, revirando os olhos, notoriamente enfadado. Imprimindo cansaço na voz arrastada, ele diz. - Vc precisa deixar seu tio descansar, meu anjo. Falar e pensar tanto assim em uma pessoa que já se foi não deve ser salutar. - Ergo uma sobrancelha em sinal de desaprovação quando ele se explica, de olho nos ponteiros do relógio, fazendo soar o chocalho de cascavel preso ao seu pulso. - Foi vc mesma quem me disse isso. Não fui eu. Foi vc quem me aconselhou a não falar mais na...- Ele hesita desviando seus olhos úmidos à esposa que nada percebe. Nem poderia. Seu corpo está presente. Sua alma não. - Vc sabe... - Ele pigarreia, apontando o queixo à sua mulher logo ao seu lado. - Naquela pessoa. - Engolindo em seco, comovido, a voz embargada, conclui. - Não é bom falar nas pessoas que partiram. - Sua filha? Ah, Doc, Doc, Doc. Ela não partiu, Doc. Adoraria dizer isso a ele. Adoraria retirar dele a culpa que ele carrega sobre os ombros largos. Adoraria afastar a filha morta da mãe que se liga a ela através de um cordão cinza, na altura do umbigo. Adoraria conversar com a filha morta que parece não me perceber. Adoraria, mas não posso. - Vc já perguntou a ele o motivo de seu desaparecimento? Dê a ele o benefício da dúvida.

- Nunca! - Soco a mesa com o punho fechado, o garfo preso à mão. Elevo meu braço ao estilo "Netuno e seu tridente". Desajeitada, esbarro na fruteira de onde laranjas saltam ensandecidas rolando pela toalha em xadrez, refugiando-se no piso branco da cozinha, abaixo da mesa. - Por San Juan Diego. - Murmuro, balançando a cabeça, embaraçada pelo meu jeito reativo de ser. Em minha casa, há poucos anos, meu tio daria uma de suas gostosas gargalhadas enquanto minha tia bagunçaria meu cabelo, afagando o topo de minha cabeça, dizendo: "Não se preocupa. Quando crescer, melhora". Mas não melhorei, tia e eu já não tenho casa, família, amor. Puta merda! Que bosta de vida eu vou levar daqui por diante?

- Giulia? - Doc, ressabiado, me desperta.

- As laranjas! - Elevo a voz como se houvesse descoberto a cura para a AIDS. Ouvindo a risada alegre e contagiante das crianças que passaram a apreciar o meu jeito dramático de ser, enfio-me debaixo da mesa a fim de catar as frutas suicidas. Doc, lá de cima, pede para que eu não me importe com elas. "Coma antes que esfrie!", adverte ele, afastando a cadeira da mesa, contorcendo-se a fim de me ver, mas não consegue. Ele é imenso. - Já vou. Já vou. - Resmungo ainda pensando no meu pontinho branco mais fofinho que já existiu. Carlos estúpido, vc me conquistou e me jogou fora. Por que fez isso? - Eu não vou mais procurar por aquele canalha ! Não mesmo! - Penso alto, embaixo da mesa. As palavras saem abafadas quando vocifero. - Nem morta!

Alongando-me ao máximo, tateando o chão, quase não vejo nada além de joelhos e pés, graças a toalha de mesa escura e longa. - Peguei! - Grito vitoriosa, prestes a retornar à cadeira quando sinto sua mão gelada agarrar à minha. Arquejo de espanto, batendo o topo da cabeça contra o tampo da mesa. Ofegando, fixo meus olhos assustados à dona da mão que não me solta. Isso me faz lembrar da cena de um filme de horror, praticamente um plágio de minha vida. Na cena, um menininho dá de cara com uma garotinha morta e mal-educada que vomita em cima dele. A garota-fantasma do filme fora embora assim que o menininho entendera que era preciso ajudá-la. "Eles te procuram porque querem algo de vc", o ator bonitão - e igualmente morto - aconselha o rapazinho que dizia ver 'gente morta' o tempo todo. Somos dois, meu bem. Por que diabos ela não solta a porra da minha mão?! - Larga. - Peço à filha morta de Doc. Doc chama por meu nome, erguendo, com as mãos, a barra da toalha a fim de entender porque ainda me encontro aqui embaixo. As crianças, inocentes, continuam a rir e a brincar acima da minha cabeça. Elas estão duelando com seus garfos como se fossem espadas. Num solavanco gerado pelo medo, puxo meu braço. Ela não o solta, apertando meu punho com força, abrindo desmesuradamente a boca, os dentes pincelados de vermelho, a voz rouca, distorcida, ora baixa ora alta chega aos meus ouvidos sem que eu a entenda. Atordoada, vendo o buraco do projétil abrir em sua testa como uma flor que desabrocha, levo a mão livre à boca, por nojo, piedade e por não querer gritar e alarmar as crianças ou o pobre Doc. O espetáculo é bizarro. O sangue vertendo do ferimento, espalhando-se pelo rosto esquálido, percorrendo o caminho por entre as sobrancelhas, passando pelas laterais do nariz, escorrendo até a boca como lágrimas. Ela balança freneticamente a cabeça, comprimindo os olhos como se quisesse se livrar de algo. De algum pensamento incômodo e persistente. Seu berro mudo e desesperado invade meus ouvidos - e somente os meus ouvidos.

Arregalando os olhos aturdidos, juntando uma palavra a outra, compreendo, dolorosamente, o que ela me diz.

- Me ajuda! Não quero morrer!

Puta merda.

****

O jantar termina e eu nada comento com Doc sobre o incidente abaixo da mesa. Ele está se preparando para trabalhar no 'California' enquanto eu lavo a louça ao lado da pequenina 'Iluminada' que a enxuga.

- Quer carona? - Pergunta Doc sorrindo, agradavelmente surpreso com a disposição da neta que não possui amigos por sofrer bullying na escola. "Eles a chamam de bruxa", lamenta ele.

- Idiotas. - Resmungo. Se ela já não houvesse me cativado com sua meiguice e seus grandes olhos tristes, certamente, após saber que ela sofre tanto quanto eu sofria, eu a adoraria ainda mais.- Larga isso aí e vamos comigo, Giulia. - Diz ele enquanto me arrasta para longe da pia. Eu empaco como uma mula, chicoteando seus braços com o pano de prato úmido. - De ônibus demora muito.

- Não. De jeito algum. - Respondo abrindo um sorriso forçado. - Largar a louça suja na pia??? Nunca, meu bem. - Ele ri, cruzando os braços. - Ademais...

- Ademais? - Replica ele, surpreso e um tanto irônico.

- Sim. Ademais. - Repito, engrossando a voz. - Hoje eu serei a última a dançar. Preciso ficar aqui e arrumar umas...- Faço um ligeiro gesto com a mão como se estivesse espantando alguma mosca, enquanto procuro por uma boa resposta a fim de não ir com ele ao trabalho. Ele me observa, recostado ao batente da porta da cozinha, estreitando os olhos desconfiados. Acuada, espirrando, nervosamente, detergente na esponja, fico pensando em como tirá-lo de casa para, enfim, pôr em prática meu plano. - Isso! - Estalo os dedos molhados. Eufórica, volto a mentir. - Preciso arrumar minhas gavetas, separar umas roupas. - Dou de ombros diante de sua expressão de incredulidade - Arrumar as gavetas sim, ué! Eu ainda tenho algumas roupas da época em que era adolescente. - Ele solta uma risada, acostumado aos meus exageros. - Tá. - Retifico. - Nem tanto. Tipo... Desde que completei meus dezoito anos. Uau! - Exclamo, bestificada. - Já faz três anos? Como o tempo passa rápido. - Elevo meus olhos alheios a tudo e, vagarosamente, vou explicando. - Eu preciso doar algumas peças. Dizem que, quando nos desfazemos das coisas inúteis e velhas, abrimos espaço para o novo. - Exalo um suspiro, comprimindo o pano em minha mão. - O novo.

- Giulia!

- Oi!!! - Volto meus olhos a ele. - Fala.

- Espero que minha esposa não te ouça. - Mordo o canto da boca tentando não desviar meu olhar amedrontado de seu rosto risonho e encarar quem está ao seu lado. - Se essa moda pega, ela vai se desfazer de mim e arrumar 'algo ou alguém mais novo' para pôr em meu lugar. - Ele mesmo ri de sua piada o que nos faz rir também.

- Não se preocupe. - Ainda rindo, aceito o prato enxuto das mãos de minha pequena auxiliar e observo. - Vc não é velho tampouco inútil.

- E vc não sabe mentir. - Afirma ele enquanto abraça a pequena feiticeira que se despede do avô com um beijo, cheio de ternura, em suas bochechas. Engulo em seco. Não posso chorar. Não vou pensar em meu tio e no quanto ele me amava. - Última chamada. - Insite ele, sacudindo as chaves do carro diante dos meus olhos. - Larga isso aí e vamos juntos à boate.

- Eu juro que não posso. - Minto. - Juro pela minha mãe mortinha. - Foi mal, mãe. Nada pessoal. - Se eu não fizer isso durante a lua cheia que, por acaso vai embora hoje, coisas novas e boas não chegarão até mim.

- Boas como o maratonista? - Bufo uma risada, fechando a torneira. Referir-se a Carlos como 'O maratonista' é hilário. - Ele já é seu. Só vc não percebeu, Giulia. Aquele homem correu atrás do nosso carro por, pelo menos, uns cinco quilômetros até desistir.

- Uh-hum. Conta outra. - Passando um pano seco sobre a pia limpa, retiro o avental com a habilidade de um toureiro e o penduro no gancho ao lado da geladeira. - Ele não é meu, Doc. Nunca foi e, provavelmente, nunca o será. Já as minhas roupas precisam ser doadas e...- Faço uma breve pausa, inspirando e expirando, admirando a pequenina que me imita a cada gesto meu. Tão linda e com a porcaria de um dom que não serve para nada além de atrapalhar nossas vidas. - O que eu preciso fazer, ninguém o fará por mim. - Envio-lhe uma piscadela enquanto o empurro para fora de casa. - Fique tranquilo. Já deu tudo certo. Se eu não chegar a tempo, invente uma desculpa ao chefe.

- Giulia. - Gemendo, ele resiste. Num repente, arrepia-se por inteiro, olhando ao seu redor como se procurasse se certificar de que estamos sozinhos, mas...não estamos, Doc. - Vc sentiu isso?

- Não. O quê? - Sua filha pousando a mão em seu ombro? Acho que sim, Doc

- Vc...viu?

- Não. - Minto. - Do que tá falando? - As coisas ficam complicadas quando a pequenina ao meu lado exclama um "Mamy", apontando o indicador para o ombro do avô. Doc volta seu olhar aterrorizado à neta que bufa uma risada absolutamente irreverente. Seria cômica se não fosse trágica a cena.

- Vc também vê?! - Pergunta ele, perplexo, à neta.

- Vê nada, Doc! - Minto outra vez. - A única coisa que ela quer ver aqui é a cama! Já é tarde. - Levo o indicador aos lábios, pedindo silêncio à minha parceira. Ela assente com um sorriso matreiro. - Vai! - Solto um berro no ouvido do meu querido amigo, empurrando-o, com as mãos em suas costas, sendo imitada pela graciosa vidente. Há algo nela que me encanta. - Vai! - Enxoto-o de sua própria casa. - Daqui a algumas horas, estarei lá. Pode acreditar. - Do banco do motorista, ele me lança um daqueles olhares cheio de suspeita. Porém, de súbito, sua atenção se fixa em algo atrás de mim. Sigo seu olhar, girando meu corpo em direção à porta da sala. - Jesus, Maria e José. - Sussurro, admirada.

- O que vc vê, Giulia? - Há temor em suas palavras.

- Por Baco! - Dramatizo, erguendo os braços, agitando as mãos. Uma pirueta e volto a olhar para ele, revirando os olhos. - Quando vc vai parar com essa mania de achar que sou vidente, bruxa, cartomante, profetiza, pitonisa, quiromante ou sei lá mais o quê??? Não tô vendo nada! - Minto pela milésima vez. Por San Juan Diego. Preciso parar de mentir. - Não vejo nada. Nada além de sua esposa. - E a sua filha morta praticamente dentro do corpo de sua mãe, contrariando o que aprendera no colégio com a 'Lei de Newton' que não deve se aplicar ao mundo dos mortos porque, basicamente, mãe e filha habitam, no momento, o mesmo corpo. - Vá, Doc! Vá! Já está tarde. Eu cuido de tudo. - Inspiro, apoiando-me na lataria do carro para não cair. Estou tonta. Solto o ar pela boca quando exclamo, abespinhada. - Vai! - Eu o vejo partir com seu carro ao estilo 'abacate móvel', sentindo as costas queimarem num ponto entre as escápulas. Penso que é chegada a hora de ser útil. Afinal, é assim que deve ser.

Volto meu olhar compassivo à porta da sala onde posso vê-las com clareza. Estendo a mão à pequenina que cochicha ao meu ouvido. "É a mamãe." Assentindo com a cabeça e os olhos cheios de lágrimas, caminho de mãos dadas à neta de Doc enquanto declaro decidida.

- Queridas, precisamos ter uma conversinha.

*****

Uma vida perfeita! Seus pais te amam e te apoiam. Cuidam de sua filha para que vc trabalhe, de segunda à sexta, em uma multinacional, com grandes chances de ser promovida. Exaurida, embora cheia de vida e esperança, vc dá um jeitinho de passar em sua casa, antes da faculdade, a fim de beijar sua filha que não dorme enquanto a mãe não chega. Ela pede que vc deixe a luz do abajur acesa. Vc a obedece, agradecendo a Deus por ter um anjo em sua vida. Seus pais te abraçam e se despedem com um "Que Jesus te acompanhe!" repleto de boas energias. A caminho da universidade onde cursa 'Letras', vc faz planos para o futuro, sonhando em comprar um carro que te leve com mais rapidez e segurança aonde quiser ir. "Amanhã é sexta", vc pensa, renovando suas energias porque é o dia de se encontrar com as amigas que sentem orgulho de sua força e garra. Vc sorri enquanto caminha a passos largos pelas ruas estreitas e escuras do centro da cidade. O cansaço é imenso, no entanto, a vontade de viver é maior e, talvez por isso, vc não perceba que está sendo seguida.

E esta, não é a primeira vez.

"Sextou!", vc brinda, bebendo uma "Heineken" no gargalo. Ainda que não goste de beber, vc bebe uma cerveja que seja mais leve, menos amarga e super refrescante somente para se entrosar ao grupo que celebra o início do final de semana. Seus olhos ansiosos vasculham o 'Pub' onde homens e mulheres se misturam em meio a uma "Happy Hour" frenética. Risos, música, um cheiro almiscarado se entranha em suas narinas, atraindo sua atenção.

"Que cheiro bom!", vc pensa, sentindo uma onda de calor tomar conta do seu corpo jovem, saudável, pronto para amar...novamente.

"Quer dançar?", convida o jovem alto, musculoso, cujos olhos penetrantes fazem vc gaguejar. Vc aceita o convite e o pedido de namoro. Vc deixa que ele se aproxime tanto a ponto de fazer parte de sua vida e da vida de sua filhinha também. Seu pai olha para ele com desconfiança, embora o trate bem. Sua mãe ora, em silêncio, para que vc encontre outro homem que te faça esquecer o jovem perfumado com os olhos insanos, no entanto, vc o deixa entrar em sua vida e modificá-la por completo. Vc e sua filha saem da casa de seus pais e passam a morar no apartamento imenso e luxuoso do jovem que se mostra, a cada dia, mais intenso, ciumento...quase cruel.

"É porque te amo", defende-se ele após ter estapeado seu rosto pela primeira vez. Vc o perdoa porque o ama, apesar de seus pais implorarem para que retorne ao seu antigo lar. A base, um tom acima de sua pele, e o pó compacto já não escondem os hematomas no rosto. Nos braços, marcas do que o jovem chama de amor.

"Denuncie este homem. Ele vai acabar te matando.", vaticina a amiga que te encontra na saída do prédio da faculdade a qual vc acaba de trancar porque o jovem almiscarado não permite que vc estude. "Eu tenho tudo de que preciso. Ele me dá tudo o que quero e cuida muito bem da minha filha", vc o desculpa diante do olhar incrédulo de sua mãe que se desespera vendo-a entrar no carro do homem de olhos insanos. Um sorriso triste no rosto lívido de sua mãe, abraçada à sua filha, ao portão, é a última boa lembrança que vc leva consigo para o "Outro Lado".

O sorriso sinistro no rosto do homem que apertara o gatilho por duas vezes fora a última imagem que gravara na mente confusa. Caída, a face colada ao chão frio, tossindo, engasgando-se com o fluxo intenso de sangue que brota de sua boca, vc ainda tenta entender porque ele encosta o cano do revólver na lateral de sua própria cabeça logo após um pedido de perdão.

***

Todas as noites, vc abre a porta do quarto de sua filha que, estranhamente, está dormindo no antigo quarto da casa de seus pais. Todas as noites, vc a beija na testa esperando que ela lhe retribua o beijo, mas ela nunca a beija como costumava fazer antes.

- Serena. - Eu a chamo. - Vc sabe o que aconteceu? Vc se lembra de alguma coisa? - Ela balança a cabeça, francamente atordoada. Ela se afasta da mãe com a rapidez de um relâmpago, fazendo com que o corpo da mãe se mova violentamente sobre a cama. A partir de então, a mãe passa a respirar tranquilamente enquanto dorme, livre da angustiante presença da filha. Pela primeira vez, em meses, Serena se dá conta de que não pertence mais a este mundo e, infelizmente, sou eu a mensageira da terrível notícia. A filha de Doc, chocada, encolhe-se num dos cantos do quarto enquanto eu explico que a vejo por ter algumas peculiaridades indesejáveis. Ela parece não me entender enquanto chora desesperadamente chamando pelo nome da mãe que se contorce sobre o colchão, emitindo gemidos dolorosos. - Eu quero te ajudar. Deixa eu te ajudar. - Peço, sentando-me nos tornozelos, nivelando meus olhos com os dela.

"Cresça", pedira meu tio. E é exatamente o que estou tentando fazer ao me sentar ao lado da moça morta e, como velhas amigas, contar o que acontecera a ela. Seu sofrimento é tão intenso que me faz chorar, de mãos dadas a ela. Penso que, um dia, inevitavelmente, estarei onde ela se encontra agora e espero que alguém me veja e me conduza a um bom caminho. "Deixa eu ver minha filha?", Serena pede após um longo tempo, exausta de tanto chorar. Tempo em que eu a fiz compreender que existe vida do 'Outro Lado', embora, eu mesma duvide disso. - Meu tio me disse que a vida continua em outra dimensão. - Invento, acariciando seu cabelo, limpando com um lenço de papel, o sangue seco em sua testa. O buraco causado pelo projétil fechara-se como que por encanto. Espantada, continuo, modulando a voz como se estivesse contando uma 'historinha de ninar' a uma criança. - As cores do 'Outro Lado' são mais fortes, vívidas e existe música onde quer que se vá. - Continuo a florear e a inventar porque não sei o que fazer quando vejo seus olhos devastados pelas lágrimas que me encaram, súplices. Meu coração dói quando aviso. - Serena, vc precisa ir. - Engulo em seco, sentindo um nó na garganta quando ela beija a filha na testa, declarando seu amor eterno. - Vcs estarão ligadas pra sempre. E, se eles lá em cima liberarem, vc pode visitar sua família quando quiser. - Afirmo, incerta, afastando-me, cautelosamente, lembrando-me de minha tia que ainda perambula atrás de Fernando, perdida, sem rumo. Por que ela ainda não partiu? - Serena, abra os olhos! - Exclamo, maravilhada, apontando o indicador à janela. É surreal o que vejo. O quarto da pequenina é tomado por uma neblina densa, revigorante. O aroma de rosas acalma a mãe tão jovem quanto eu. - Seus pais vão cuidar de sua filha. Vai. Vai tranquila, querida. - Sussurro, lavando meu rosto com lágrimas de felicidade. Beijo sua mão antes que ela suma, levada suavemente pelos seres com os corpos translúcidos, esguios e exageradamente altos que a cercam enquanto caminham em direção ao nevoeiro vindo lá de fora. Deixo escapar um "Adeus" à fumaça que se evapora num piscar de olhos. Eles partiram deixando para trás somente o doce cheiro das flores e uma sensação gostosa de um dever cumprido. Eu finalmente fiz algo de bom. - Eu consegui! - Vibro eufórica, unindo as mãos em prece.

- Eu tive um sonho. - Assusto-me com a voz da esposa de Doc que murmura, cambaleante, atrás de mim. Giro nos calcanhares e, meio que tonta, sorrio, enxugando as lágrimas com o dorso da mão. - Minha filha estava linda. Ela usava seu vestido rosa de debutante e um "band-aid" na testa. - Uma pausa e, confusa, ela se pergunta. - Onde ela se machucou?

- Bobagem. - Digo apressadamente, enquanto a faço sentar-se na beirada da cama. - Como foi o sonho? Como foi o dia em que ela comemorou seus quinze anos? Deve ter sido lindo! - À medida em que tagarelo, ela vai abrindo um sorriso e se anima a contar os planos para a celebração dos quinze anos da neta que ainda não completara seus dez anos. - Perfeito. - Sussurro, inquieta, enquanto inspiro o inebriante perfume da Dama-da-Noite ocupando o espaço iluminado onde, antes, só havia trevas.

"Perfeito, Giulia. Agora abra a porta!"

- O quê??? - Giro meu pescoço, num ângulo de cento e oitenta graus, tão rapidamente que o ouço estalar. - O que disse???

- Rosa! - Repete, mais alto, a avó da pequena "Iluminada" a respeito da cor de seu vestido debutante. - Vc não gostou?

- Gostei! - Retruco, desorientada. - Rosa! Lindo! Eu amo rosa! - Arregalo os olhos, rastreando alguma presença no quarto. Por todos os deuses! Basta por hoje!

"Abra-a-porta-Giulia" - A voz masculina e pausada, docemente autoritária, me ordena.

- Diabos! - Resmungo, as mãos aflitas tampando os ouvidos. - Agora vão fazer fila??? Acabou! Eu não falo com mais ninguém!

- Giulia, minha filha. - A mãe da morta resgatada encosta o dorso de sua mão em minha testa. - Vc está quente, meu bem. Precisa de um antitérmico. - Afirma ela, levantando-se da cama, absolutamente renovada.

- A senhora não ouviu??? - Eu a seguro pelo braço, puxando o ar pela boca. Em meu rosto, aquela expressão de quem acaba de se lembrar de que saiu de casa deixando a panela de pressão no fogo. Não pode ser. É impossível. - Ele não seria capaz! - Digo a mim mesma. Meu coração acelera quando minhas narinas se dilatam. - É sândalo! - Rosno. - Ela dá de ombros e me olha de esguelha. Ressabiada, caminha até a porta da sala enquanto, parada no corredor, pergunto com a voz tão aguda que até eu mesma me irrito. - Aonde vai?

- Abrir o portão, ué!

- Para quem??? - Trilhões de pensamentos e sentimentos borbulham em minha cabeça enquanto eu a sigo, furiosa. - Por quê???

- Porque estão chamando por seu nome, meu bem. - Replica ela, tranquilamente.

- Meu nome. - Repito abobalhada.

- Sim, seu nome. Giulia. - Ela pousa a mão em meu antebraço, olhando-me com a ternura dedicada aos loucos. - Não é este o seu nome? - Sinto o coração ribombar na garganta. O cheiro, a voz que invade, sem permissão, a minha mente me faz gargalhar histericamente diante da expressão piedosa da mulher que parece ter dez anos a menos. - Giulia, querida, se acalme! - Aconselha ela, revitalizada, saltitando em direção ao portão na parte externa da casa. Sem coragem de segui-la, permaneço imóvel em frente à televisão da sala. Inspiro profundamente e, ao expirar, respondo a mim mesma, abrindo um sorriso patético que se gruda ao meu rosto.

- Sim. Sou Giulia. Giulia com "Diu".

- Não se esqueça do antitérmico! - Grita ela, leve, solta. A voz se afastando de mim. De súbito, grudo minhas costas à parede da sala, fora do ângulo de visão de quem quer que esteja lá fora. Olhando o teto, ouço o ranger do portão de ferro, já corroído pela ferrugem. - Boa noite. - Cumprimenta a esposa de Doc enquanto tapo a boca com as mãos geladas. Estreito os olhos, apurando a audição, embora minha alma já me tenha confirmado a identidade da voz grave que a responde com um cordial "Boa noite". - Em que posso lhe ser útil, senhor? - Então, a voz pergunta enquanto eu vou escorrendo feito tinta pela parede até o chão.

- A Giulia mora aqui?

****

- Eu tentei!!! - Afirma ele, prestes a perder o controle, o que o deixa ainda mais atraente. - Por quantas vezes eu vou ter que repetir que tentei??? Fui à sua casa e me disseram que vc não queria me ver e mesmo assim, eu fiquei lá fora, debaixo de sol, debaixo de chuva, esperando por um momento em que vc abriria um daqueles portões pra eu poder falar contigo! - De braços cruzados, o cenho carregado, balanço os quadris num ritmo tão louco que poderia me candidatar ao cargo de passista de Escola de Samba. Meus pés, aflitos, não param de se mover dentro de um 'Pliê'. Meu queixo erguido o afronta enquanto meus olhos o evitam. Estou muda. Mais por não saber o que falar ou por medo de me jogar sobre ele a fim de calar aquela boca gostosa do que por raiva. Ouço seu relato pela terceira vez, sem prestar atenção aos detalhes. Apoiado na porta aberta de seu carro, sob a luz alaranjada do poste, ele está surpreendentemente másculo, a blusa branca de malha se cola ao peitoral ao passo em que ele gesticula somente para me fazer acreditar no que diz. Se ele conhecesse a verdade, não teria tanto trabalho assim. Bastaria ficar diante de mim e dizer mais uma vez o meu nome com os lábios finos e rosados que estou louca para beijar. - GIULIA! - Grita ele, estalando os dedos a um centímetro do meu nariz. Se fosse Fernando, já teria levado um tabefe no meio da cara, mas ele...- Vc tá me ouvindo?! Vc precisa acreditar em mim! Eu quase caio na porrada com o Fernando por sua causa. Só evitei a briga por respeito à senhora que estava ao lado dele.

- Não diga! - Finjo escutar, encobrindo a ânsia de me agarrar àquele pescoço, ao seu Pomo-de-Adão agitado. - Quando foi isso, meu bem??? Antes ou depois da 'Queda do Muro de Berlim'??? - Ele ergue os braços, encolhendo os ombros, fazendo uma careta de quem não entendeu o que o 'Muro de Berlim' tem a ver com a história. Pois bem, meu bem, eu também não sei. Foi a única porcaria que me veio à cabeça além de meter minha língua em sua boca. - O quê??? Além de mentiroso é burro, Carlos??? Muro de Berlim!!! - Contendo a ânsia de estapear seus tríceps, explico. - É uma clara referência ao tempo. Aos trezentos anos em que a gente não se vê por sua causa! Por que me abandonou no cemitério, Carlos??? - Inclino-me perigosamente em sua direção. Ele infla as narinas, jogando a cabeça para trás. Bufa uma risada e volta a me encarar.

- Porra! Vc não me ouve! - De fato, eu não o ouço. Só falo o que vem à cabeça para prolongar o tempo ao seu lado. Arregalo os olhos meio que assustada e excitada quando ele me puxa para si, apertando os dedos em minha nuca e, falando baixinho, ameaça. - Presta atenção porque só vou falar mais uma vez! Eu não deixei de te procurar um dia sequer. - Estamos tão próximos que ele poderia ter me beijado, no entanto, atormentado, ele bate a porta do carro, trancando-o por fora. Eu recuo um passo, o queixo erguido, a boca semiaberta, completamente sem ação. - No cemitério, vc se juntou ao grupo do Fernando e me expulsou de sua vida. Vc enlouqueceu, surtou. Não falava coisa com coisa. Nem parecia você! Sua voz era outra. Fernando te puxou e vc foi com ele. O que vc queria que eu fizesse?! Eu queria te levar para a minha casa. Lembra?

- Claro que lembro ! - Espalmo, violentamente, as minhas mãos em seu tórax. Um 'plaft' ecoa no ar. - Desculpa. - Resmungo, retirando minhas mãos dele que ergue, levemente, uma da sobrancelhas. - Foi mal. - Minto. Um truque barato para sentir sua pele, seu músculo, seu coração batendo em descompasso. Afasto-me enquanto berro. - Mas não levou!

- Giulia, querida. - Nossos olhos se voltam para a porta de entrada da casa de Doc onde sua esposa e neta nos acenam, divertidamente. Ambos estamos grudados em seu portão de ferro. - Não seria melhor conversarem aqui dentro? - Sugere ela mantendo a distância e o bom humor.

- Perdão, senhora. - Diz Carlos abrindo um daqueles sorrisos que irradia luz a quilômetros de distância. A pequena "Iluminada" sorri de volta a Carlos quando ele, polidamente, promete. - Não vou me demorar. Obrigada pelo convite e perdão por falarmos alto. - Assim que elas se retiram, ele volta a me olhar entre irritado e satisfeito. - Entra no carro. - Ordena ele, a voz grave, macia. - Vamos conversar com calma.

- Não. - Recuso-me, recostando-me ao muro chapiscado, braços cruzados, os olhos vagos enquanto tento juntar as peças da porra deste quebra-cabeça. - Por que não...? - Hesito antes de fazer a besteira de perguntar porque ele não me procurou em meu trabalho. Estúpida. Ele não pode saber onde e como trabalho. Desisto. - Por que não jogou uma pedra na janela? - Reformulo a pergunta idiota com outra ainda pior. - Por que não telefonou? E desde quando eu te enxotei do enterro do meu tio se nós ficamos juntos o tempo todo? Eu não me lembro disso e eu não sou louca!

- Pois parecia porque me enxotou de lá com a ajuda de seu grande amigo de infância e seus comparsas. - Perplexa, enxergando verdade em suas feições, calo-me por um segundo, voltando a me lembrar dos horrores que passara na casa de minha tia morta e tão insana quanto o filho psicopata, e do episódio grotesco da 'Paralisia do Sono'. Uma raiva vai me preenchendo o estômago, subindo pelo esôfago. Cerro os olhos e, com o indicador e o polegar, pressiono as pálpebras, sentindo uma angustiante revolta. Dou dois passos adiante, parando na beirada da calçada. Quero apagar o meu passado para que ele não me deixe. Quero me livrar da maldição de ver o que os outros não veem. - Agora vc lembra? - Sua voz doce me incomoda. Giro meu pescoço em sua direção. Fixo meu olhar raivoso em seu par de tênis tão velhos quantos os meus. Uma onda de ternura ameaça destruir a raiva, mas eu não permito porque a raiva é quem me mantivera viva durante esses anos. A raiva me dá forças para me levantar da cama quando as sombras me rondam como hienas famintas. A raiva jamais me deixara como meus pais, meus tios o fizeram. A raiva é tudo o que tenho, logo, enraivecida, respondo, investindo contra ele.

- Não! E não minta pra mim! - Aponto-lhe o dedo em riste. - Tá me ouvindo??? Não minta pra mim. Eu sofri pra cacete sozinha, desejando que vc aparecesse e me salvasse o que obviamente não aconteceu!!! Não aconteceu!!! - Ele lança sobre mim seu olhar penetrantemente sereno e quase desisto de continuar a brigar ou de tentar afastá-lo de mim quando a raiva me faz pensar: "Vc vai aguentar conviver com os meus problemas, Carlos??? A porra de um espírito demoníaco me violentou durante o sono! Isso é normal pra vc? Vai aguentar!? NÃO!" - Não se aproxima! - Advirto-o. - Eu não leio mentes, mas tenho meus truques para descobrir se alguém mente ou não! E vc mentiu, Carlos. Vc mente porque não há nenhuma senhora na casa dos meus tios porque simplesmente não existem mais "os meus tios". - É quando a ficha cai. Solto um arquejo de espanto, levando as mãos ao rosto com tanta força que ouço o estalo. - Por San Juan Diego...- Murmuro, aterrorizada, analisando o que acabo de dizer, diante de sua expressão de estranheza.

- Havia sim. - Assevera ele, aproveitando a pausa que dou por estar boquiaberta. Ele prossegue, visivelmente mais calmo e soturno. - Ela me disse que eu deveria deixar vc em paz se eu te amasse de verdade. Ela me pediu, me implorou. Os olhos dela estavam tão avermelhados! Possivelmente de tanto chorar. Senti pena dela e me afastei por um tempo. - Meus dedos vão escorregando da testa até o queixo enquanto movo a cabeça de um lado para o outro. - Eu não tenho motivos para mentir, Giulia. Durante o tempo em que vc ficou na casa do seu tio, após o enterro, eu estive lá por diversas vezes e sempre encontrava esta senhora que me expulsava de seu portão. Eu sequer podia gritar por seu nome. Ela começava a chorar ou a me xingar.

- Jesus...- Gelada como um defunto, eu me apoio no capô de seu carro. A cabeça baixa, o cabelo cobrindo meu rosto. - Não. Não pode ser...

- Eu não te esqueci, Giulia. - Insiste ele, pousando sua mão quente sobre a minha. Seu toque é como uma lufada de ar morno aquecendo meu coração, me trazendo paz e segurança. Puta merda. Isso dá medo porque não quero que acabe, mas, tudo o que é bom em minha vida acaba...acabando. - Giulia. - Sussurra ele, sem perceber que posso cair feito uma jaca madura a qualquer instante. - Eu não conseguiria te esquecer mesmo que tentasse. Eu não trabalhei direito pensando em como chegar até vc. Pensando em uma maneira de tirar vc daquela casa onde só havia memórias que te fariam mal. - Ele limpa a garganta, deslizando a mão, nervosamente, sobre seu cabelo num claro gesto de desagrado. - Além de ter aquele otário lá...perto de vc...o tempo todo. - Observo suas mãos, os punhos fechados, uma longa inspiração e ele deixa escapar, entre os dentes trincados, um "babaca". Expirando, ele se afasta de mim. Ergo a cabeça, confusa. Procuro por seus olhos. Ele parece se assustar quando minhas pernas vacilam como se eu tivesse uns cem anos de idade cruzando a linha de chegada de uma maratona. De imediato, ele me sustenta, mantendo-me de pé com as mãos fortes em meus braços. - Vc tá pálida! Sua pressão tá baixa? Vc tá suando frio. Vc comeu hoje? Giulia. - Geme ele, desorientado. Mais um gemido desse e eu pulo em seu pescoço. - Vc tá doente? Eu te levo ao médico. - Ele meio que me sacode porque ainda estou muda, hiperventilando. - Fala comigo, Giulia. Inspira. Expira. Fica calma. - Orienta ele, nervoso. Eu o obedeço e quando, enfim, consigo retomar minha respiração, pergunto.

- Como era a mulher? - As palavras saem com dificuldade da garganta seca. - Me diz. - Contrariado, ele replica.

- O que isso tem a ver com o que tá acontecendo agora?! É passado! Deixa pra lá!

- Me diz. - Imploro enquanto ele abre a porta do carro e me acomoda, delicadamente, no banco do passageiro. Fecha a porta e contorna o carro sem desviar os olhos de mim, um sorriso nascendo no canto da boca. "Eu o mereço?", pergunto a mim mesma quando ele abre a porta do motorista e se joga sobre o assento revestido em couro. Sua mão puxa a porta que se tranca e, em fração de segundos, a mesma mão afaga minha bochecha. Ele repete o mesmo gesto que me faz ter saudades de uma época que eu ainda não vivi. Ou vivi?

Seu polegar junto ao indicador, pressionam levemente a ponta da minha orelha o que me deixa mais tonta e acesa. Seria um ótimo momento para me agarrar a ele e confessar o quanto ele me faz falta, mas ainda há algo que preciso saber. E, talvez, ele não me queira. - Carlos, como ela era? - Repito num tom baixo. Ele morde o canto da boca, balançando a cabeça como aquele ar de quem desistiu de 'jogar pérolas aos porcos'. - Por favor. - Peço, delicadamente, observando seu sorriso inocente. Puta merda. Esse sorriso tem o poder de me trazer de volta a Terra e de me fazer gostar disso. Penso que não posso mais ficar sem ele. Definitivamente, não posso e não quero. - Diz.

- Que diferença faz? - Ronrona ele, enquanto eu descarrego minha tensão sexual na alavanca do câmbio de marcha, apertando-a até que as pontas de meus dedos fiquem brancas. - Esquece isso, Giulia. - Seu indicador se enrosca nos fios de meu cabelo que deve estar alucinadamente despenteado. Diabos! Fiquei ao lado da morta, chorando com ela, por um bom tempo. Devo estar horrorosa, fedida, o nariz inchado e somente agora é que me dou conta disso. No entanto, ele me olha como se eu fosse a nona maravilha do mundo e eu só tenho olhos para os músculos dos braços que eu quero tocar, beijar, abraçar, mas, antes, eu preciso confirmar o que está aqui, martelando na minha cabeça, porém, balbuciando, ele desconversa. - A gente se reencontrou, graças ao seu amigo Doc. Um cara bem legal. Ele foi ao meu trabalho, dizendo ser amigo do seu tio. - Doc mentiu. Que bom! Eu te amo, Doc! - Explicou que vc precisava de cuidados e que te trouxe até aqui. Se não fosse por ele, eu estaria perdido à sua procura, sem rumo, sem destino até agora. - Emocionada com sua persistência em me reencontrar e apavorada com o estou prestes a descobrir, fecho os olhos, tremendo-me toda. - Giulia? O que vc tem? Fala comigo. - Retiro a mão da alavanca do câmbio de marcha umedecida pelo meu suor frio. Ele bufa outra risada quando eu a seco com a barra de meu vestido. - O que tá fazendo? - Pigarreio, agradavelmente surpreendida com o tom amoroso com o qual ele fala comigo. - Giulia?

- O quê? - Passo a mão em minha testa suada. Enrolo os fios desalinhados de meu cabelo, dando um nó no topo da cabeça. De soslaio, eu o vejo por baixo de meu braço erguido e rosno. - Não me olha como se eu fosse louca.

- No que tá pensando? - Cruzo os braços, abrindo um sorriso irônico.

- Ué!!! Não é vc quem lê mentes?!

- No que está pensando? - Repete ele, com seriedade. Então, eu disparo.

- Descreva a mulher com quem vc falou. A mulher que te impediu de me ver durante todo esse tempo.

- Por que continua...? - Eu o interrompo, a voz duas oitavas abaixo.

- Des.cre.va.

- Alta, loira, magra. Uns cinquenta...sessenta anos. Bonita. Muito bonita. A voz suave, embora triste. Demasiadamente triste.

- Minha tia. - Estalo a língua, comprimindo os olhos. - Eu sabia. - Digo, desabando, sem controle. Curvo meu tronco para frente e encaixo minha cabeça entre as pernas, chorando copiosamente. - Isso não tá acontecendo. - Digo, entre soluços. - Não é justo. - Vendo-me devastada, ele me faz recostar em seu peito, enlaçando seus braços ao redor de meu tronco. Por que eu só me sinto tão protegida assim quando ele me abraça? Ele quer ser meu amigo ou algo mais? Digo a ele a verdade sobre o meu passado? Ele não vai aceitar. Cala a boca e aproveita porque vai terminar. - Não é justo. - Repito, com medo de que ele volte a me deixar. Meio que receoso, ele murmura uma pergunta.

- Giulia, sua tia não está morta? - Assinto com a cabeça, sentindo a expansão da caixa torácica que protege seu coração que deveria ser meu. Seus batimentos me acalmam. Não quero olhar para ele e explicar o inexplicável. Ele parece compreender meu silêncio, logo, permanecemos assim por um tempo indeterminado até ele cochichar, meio que rindo. - Eu falei com uma morta?

- Bem vindo ao meu mundo. - Choramingo contra sua blusa, seu cheiro amadeirado.

- Uau. Obrigada. Era tudo o que eu queria. - Ouço o som da minha risada, afastando-me dele a fim de assoar o nariz na barra da minha saia. - Não prefere um lenço? - Ele deve estar me achando uma porca louca porque estou gargalhando enquanto choro e tento secar meu rosto. - Toma. - Desajeitada, puxo a ponta de um lenço de papel. Da caixa, saem uns quatro. Dou de ombros, envergonhada. Quem consegue puxar somente um lenço de uma caixa de lenços??? Ninguém! - Sem problemas. - Diz ele, observando-me atentamente como se eu fosse me transformar, de um minuto para o outro, em "Konga - A Mulher Gorila". - Seria interessante. - Comenta ele que, obviamente, lera minha mente. Propositadamente, assoo meu nariz com a sutileza de um elefante espirrando água pela tromba. Seu sorriso me tira do prumo, então, desvio meus olhos ao espelhinho no tapa-sol de seu carro antigo, porém, reformado.

Um Maverick vermelho com o teto branco. O cheirinho de couro me agrada. Movimento os músculos faciais diante do espelhinho. Ok. Tudo limpo. Posso estar desleixada, esquisita, despenteada, mas, suja, nunca. - Na minha opinião, vc está ótima.

- Vc pode... - Reviro os olhos, jogando a cabeça para trás enquanto enfatizo com todos os "erres". - POR FAVOR - Soltando o ar pela boca, completo o pedido. - Parar de ler a porcaria dos meus pensamentos?

- Desculpa. Não é quando eu quero.

- Vc já disse isso. Vc sempre diz isso e sempre faz a mesma coisa. - Caraca. Ele está tão próximo a mim que sinto seu hálito quente em minha bochecha. Uau. - Um sa-saco. - Gaguejo. - Sempre diz isso.

- E vc ainda não entendeu. - Conclui ele, roçando a ponta de seu nariz na pele do meu rosto. Desnorteada, amasso os lenços de papel e os mantenho em minha mão. Fico me perguntando como alguém tem o incrível poder de me fazer calar a boca. Eu preciso quebrar esse silêncio que paira sobre nossas cabeças e não sei o que dizer além de 'Me beija e me faz esquecer de tudo'. Puta que pariu. Ele leu! Ele leu! Ele leu??? - Vc aceita ser minha hóspede por tempo indeterminado? - Ufa, não leu. Aliviada, rio de mim mesma, antes de mentir descaradamente.

- Não posso. Daria muito trabalho. Não é certo. - Recosto-me à cadeira confortável, ajeitando meu vestido mais do que amarrotado. - Ademais...

- Ademais? - Ironiza ele, apoiado ao volante. Sério!? Qual o problema com essa palavra!? - Ademais?

- Sim. Ademais...- Continuo, de olhos fixos no painel multicolorido. Quase tão colorido quanto o do carro do meu tio. Merda. Eu não vou chorar. Chacoalho a cabeça e, num repente, paro, os olhos fixos na janela dianteira e volto a fingir que não quero o que quero. - Eu precisaria trabalhar para te ajudar com as contas e tal.

- Eu te pedi isso?

- Não, mas...- Ele me interrompe, tocando, sutilmente, na ponta do meu queixo. Meio que surpresa, eu volto meus olhos ansiosos a ele. - Carlos, não é justo. Eu não quero te dar trabalho!

- Vc já me deu trabalho. Daqui por diante, vc vai me dar prazer.

- Prazer!? - Retruco, intrigada. - Agora é ele quem revira os olhos, corrigindo-se a tempo. Como se fosse necessário, ele reformula a frase.

- Vc vai me dar o prazer de morar em minha casa, sob a minha proteção. Melhorou? - Digo que sim, mas a ideia de dar prazer a ele de uma maneira mais mundana me agradaria por demais. - Vc quer? - Sussurra ele contra a minha boca. "Te dar prazer de forma mundana ou morar em sua casa?" - Quer? - Repete ele enquanto minhas mãos tocam seu pescoço, a barba por fazer. Aos poucos, sou invadida por uma sensação absolutamente nova que me enche de vida. - Responde. Vc quer?

- Quero. - Confesso, de olhos fechados.

- E o que mais vc quer? - Minhas mãos afoitas procuram pela alavanca do câmbio de marcha. Não a encontram. Agarro-me à sua coxa direita coberta pela calça jeans. - Responde. O que mais vc quer? - Diabos! Desde quando eu sou o tipinho recatada??? Diga logo o que ele quer ouvir e vc quer fazer!!!

- Ser sua amiga? - Parabéns! Ele murcha como um pneu furado retornando ao seu assento enquanto eu procuro algum lugar pontiagudo onde eu possa me empalar pela cabeça. ESTÚPIDA! - Carlos? - Sorrindo, ele abre a sua porta e, em poucos segundos, abre a minha, estendendo-me sua mão forte, dedos longos. Por Baco, como eu fui burra! - Aonde vai?

- Pegar suas coisas. - Esclarece ele, apontando a cabeça na direção da casa de Doc. - Vc está de mudança, mocinha. - Mocinha??? Eu sou uma mulher! Uma mulher burra pra cacete, mas uma mulher! - Eu sei. - Arregalo os olhos, arquejando espantada. Creio que nunca saberei se ele leu ou não leu o que pensei. Foda-se! - Tá ficando tarde. - Diz ele trancando as portas do carro e, com a naturalidade de um casal, ele entrelaça sua mão à minha. Sentindo-me pura, quase certa de que serei feliz, eu o deixo me conduzir, com um sorriso pateticamente alegre em meu rosto. - Ainda quero cozinhar pra vc.

- Sério? Pra mim? - Suspiro, sentindo a brisa fresca tocar em minha pele. - Não mereço tanto. - Num repente, ele para e se volta para mim. Suas mãos estão em minhas têmporas. Seus olhos vidrados nos meus. Com a doçura que se fala a uma criança, ele me diz.

- Vc merece tudo de bom nesta vida, entendeu? Pare de se menosprezar e aceite todo o amor que a vida e eu pudermos te dar. Giulia, vc vale muito. Acredite. - Puxando o ar pela boca, volto a respirar enquanto permanecemos imóveis diante do portão de Doc. - Vc não faz ideia do quando vc vale pra mim. - Há algo no tom de sua voz e em sua expressão que me assustam. Talvez, expectativas. Ele não sabe com quem está lidando. Não imagina o que eu já fiz. Não é certo deixar que ele pense que sou melhor do que realmente sou. E quando ele souber que já usaram meu corpo em troca de grana e que sua hóspede não passa de uma streaper? - Tem alguma pergunta a fazer? - Diz ele, encostando sua testa à minha. Novamente a tensão e o silêncio quebrados apenas pelo ruído dos automóveis cruzando a rua. - Pergunta. - Insiste ele, tranquilo. Eis o momento pelo qual esperei desde que o reencontrara hoje.

Cientistas estimam que um ser humano tem cerca de setenta mil pensamentos por dia. Três mil por hora e cinquenta por minuto. Multiplique por dois e chegará ao número de pensamentos que tenho volitando em meu cérebro confuso, esquizofrênico, mediúnico. Com tantos pensamentos e questionamentos produtivos, eu deixo escapar o mais infeliz, vendo o entusiasmo desaparecer do rosto do homem à minha frente.

- A gente pode comer lasanha?

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Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 18/10/2020
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