"É ASSIM QUE DEVE SER" - CAPÍTULO 26

'You abandoned me

Love don't live here anymore

Just a vacancy

Love don't live here anymore'

(Love don't live here anymore - Madonna)

Dentro do quarto, ouço seus lamentos, o rugido do vento invade a janela aberta. Um ribombar do trovão que parece se distanciar. Olhando daqui, é impossível de se acreditar que entre essas paredes, há bem pouco tempo, ecoavam risos e o tilintar estridente de seus saltos finos contra o piso liso quando ainda se divertiam juntos. Sob a luz da vela que bruxuleia, aflita, aqui, ao meu lado, fico pensando no que minha mãe costumava dizer quando, por uma estúpida insistência, eu ainda cismava em pensar que havia algum tipo de sentimento dela com relação a mim que não fosse o de rejeição.

"Nosso lar é um santuário. Não posso deixar que qualquer um entre aqui", sua voz cheia de arrogância reverberava dentro da cozinha, enquanto, horrorizada, ela examinava, minuciosamente, as tatuagens de Camila, minha única amiga no colégio a quem trouxera à minha casa para terminarmos uma pesquisa de Biologia. A única dentre centenas de alunos que me aceitara e me acolhera, sem se importar com minha fama de louca ou bruxa. Talvez porque a dela fosse tão ruim quanto a minha. Logo, pelo pátio do colégio, éramos vistas sempre juntas e aclamadas por onde passássemos como "A bruxa e a Puta".

Bons tempos.

Sua pele tatuada aguçava minha imaginação. No antebraço, a face sarcástica de um demônio. Na nuca, uma lua crescente. Na virilha, o tatuador escrevera: "Carpe Diem".

"Os homens adoram!", exclamava Camila, rindo-se de meus olhos arregalados, a expressão de incredulidade e curiosidade misturadas, chacoalhadas e vomitadas em um "aimeudeus" tão patético quanto eu.

- Giovanni. - Digo bocejando, levando a mão à nuca. - Vou tatuar o seu nome assim que nascer. - Cruzo as mãos sobre a barriga, amassando os dedos entrelaçados. Uma angústia surge num ponto entre os meus seios. O diafragma sobe e desce ritmicamente. Ouvindo o som de minha própria voz em meio à penumbra, afirmo. - Meu filho vai se chamar Giovanni. Se eu ainda puder ser mãe, seu nome será Giovanni. - Silencio, exalando um suspiro. Com a voz soturna, pondero. - Fernando disse que não posso ter filhos. Não depois do que ele me fez. - Solto, lentamente, o ar pela boca, trincando os dentes por onde as palavras saem cheias de mágoa. - Não depois do chute, da hemorragia, do segredo guardado a sete chaves. Eu não desejo um filho seu, Fernando. - Volto à minha adolescência e revivo o dia ao qual ele, rindo, apelidara de "Sunday Bloody Sunday". Um domingo chuvoso, frio. O feto jogado num dos cantos do banheiro. O ladrilho branco manchado pelo líquido viscoso que saíra de meu útero lesionado, minhas pernas bambas, abertas; os olhos arregalados de pavor o encaravam, aguardando algum tipo de ajuda que jamais viera. Imersa na banheira, vira o sangue jorrando de mim, misturando-se à água num tom de marrom, escoando pelo ralo. "Me leva ao hospital", pedira, devastada. Como resposta, um riso irreverente e um beijo no topo da cabeça como se nada de importante houvesse acontecido ali, naquele banheiro. - Ele nunca prestou. Por que não percebia isso antes? - Fecho os olhos e ainda posso sentir o toque suave das mãos dela trançando meu cabelo, com habilidade. - Vc nunca me amou, tia. Nunca. - Lastimo enquanto a dor aguda vai se irradiando, tomando conta dos meus ombros, enrijecendo os músculos das costas. - Era o meu coração que a senhora queria? Era só isso que a senhora queria de mim quando me conheceu? - Bufo uma risada. - Pois não vai ter. Não mesmo. Quando eu morrer, meu coração vai junto. - Uma pausa e aguço minha audição. Não a ouço gemer no corredor que se liga ao quarto onde estou. Deve estar longe daqui. Provavelmente, ao lado do filho psicopata. Encorajada, enraivecida, pressiono as mandíbulas quando declaro, subversiva. - Meu coração já não é do seu filho, tia. Meu coração não é dele e jamais o será. É bom que a senhora e aquele bruxo filho da puta encontrem outra otária pra salvar o filhinho doente porque o meu coração vai comigo para o túmulo. Vai comigo, entendeu!? Comigo! - Pressiono os olhos de onde não saem lágrimas. Sequei. Murchei. Desidratei. Encolho-me sob o edredom. A porta do quarto de hóspede trancada por dentro. É certo que Fernando virá ao meu encontro após retornar do restaurante e, é igualmente certo que não terei estômago para tratá-lo como se eu de nada soubesse. Ele foi longe demais. Longe demais para voltar atrás e recomeçar. Matar o próprio pai?! Isso é mais do que maldade. É doença. Ou será que imaginei? - Silencio uma vez mais, observando a cruz em madeira, um tanto inclinada para a esquerda, acima do batente da porta trancada. - Ah! - Dou de ombros, resmungando. - Que fiquem com tudo. Não preciso de uma herança manchada de sangue, muito menos desta casa. Não preciso de um amor distorcido ou da companhia de um bêbado maldito, parricida do inferno. - Aumento o tom de voz, esperando que ela me ouça como se fosse algo normal falar com mortos escondidos atrás da porta. - E também não preciso do amor de uma tia que dizia me amar! - Um silêncio sepulcral, seguido de um farfalhar acima da cabeceira me faz arquejar. - Puta merda. - Digo, rindo de mim mesma quando percebo que a cortina esvoaçando é tão somente a cortina e não a visita de outra morta arrependida, amargurada, perambulando pela noite à procura de perdão. - Patética. - Solto o ar num assobio. - Eu sou patética

Encaro o teto fracamente iluminado pela chama das velas que se consomem a cada segundo. Traças pendem do teto, teias nos cantos do cômodo. Penso que minha miopia está regredindo ou o teto está mais próximo de mim. Um outro trovão, mais forte do que o primeiro, indica que a tempestade está se aproximando. Meu tio me ensinara a contar o espaço entre um trovão e outro, pois, segundo ele, este seria um método infalível para que eu soubesse se deveria ou não recolher as roupas do varal.

"Aprendi com meu pai", enfatizava ele, cheio de orgulho. Mentira. Aprendera ao meu lado quando assistíamos à reprise de "Poltergeist - O Fenômeno" cujas falas eu até decorei.

"Esta casa está limpa!", bradava a paranormal baixinha e roliça, óculos 'fundo-de-garrafa', voz irritante de quem suga gás Hélio de uma bexiga cheia em festas de aniversário. Orgulhosa, ela estava convicta de que, graças à sua astúcia, o mal não retornaria à casa da menininha ariana, macabra, descendente direta de algum membro da "Klu Klux Klan". O cabelo de boneca e uma franjinha absolutamente "démodé". Por mim, todos deveriam ter sido tragados pela TV de onde escapara um demônio decrépito, lento e babão que mais parecia o meu tataravô por parte de mãe. Na minha opinião, não me fariam falta alguma. A garotinha de cabelo a Là 'espiga de milho', a gorducha charlatã, os pais maconheiros, a irmã inexpressiva e o índio que nada fizera por salvá-los.

- Esta casa não está limpa. - Balbucio, limpando a garganta, as mãos trêmulas, um suor frio por entre os dedos que se agarram à barra do edredom que me cobre até a cabeça. Já passam das onze. Amanhã sairei desta casa, deixando para trás um rastro de dor e morte e vou seguir adiante. A mochila está pronta conquanto meu coração não esteja. O que mais é preciso acontecer para que eu me mova e faça algo digno!?

"Cresça", meu tio ordenara.

- E como se cresce, tio? - Com a cabeça pousada no travesseiro, beijo o vidro que protege sua foto trancafiada num porta-retratos. Cruzo os braços sobre a foto, pressionando-a contra o meu peito, os olhos fixos no teto, divago. - Como vou me sustentar? Sempre dependi de alguém. Dos meus pais passei às suas mãos, tio. Será que vou conseguir sozinha? Só com o que ganho na boate? Devo implorar por abrigo aos meus pais? Volto à prostituição? Tento, uma última vez, uma vaga na loja do shopping? Ainda tenho meu emprego no 'California'? Por que Carlos sumiu? A cruz está de cabeça para baixo ou estou imaginando coisas? - Limpo a garganta, estreitando os olhos, mas nada enxergo além de sombras que se movem ao sabor das chamas das velas que se esparramam, deformadas, sobre as mesinhas nas laterais da cama. Lá fora, a chuva desaba, raivosa. Aqui dentro, a eletricidade acabara faz tempo. Penso que, se as velas se extinguirem, estarei totalmente entregue à escuridão e às memórias macabras desta casa onde eu fui absurdamente feliz.

Sinto-me estranha deitada na mesma cama onde aquele homem se deitara com a minha tia já faz alguns anos. Traidores. O que ele possuía de tão especial que a arrastara às trevas? Por que os trovões não cessam? Por que o sono não chega? Por que diabos estou com medo? Por que meu tio o aceitara em sua casa? Gael era o seu nome. Gael, Ga'al, Gael. Por que sinto que o conheço? Cacete. O crucifixo está de ponta-cabeça. - Concluo, engolindo em seco, quando, quase sem voz, repito o que minha mãe me ensinara.

- Nosso lar é um santuário, tio. Não se deve deixar qualquer um entrar. - O espelho retangular com moldura em madeira resolve se desprender da parede. Assustada mais com o fato inexplicável do que como estrondo, grito. - Puta que pariu! Sete anos de azar.Só me faltava isso. - De súbito, ergo o tronco como um boneco de mola. Sem querer ouvir respostas, pergunto. - Como isso aconteceu? Não tem graça. - Praguejo enquanto observo, sentada no colchão, os caquinhos espalhados no piso, iluminados sob a luzrepentina de um relâmpago que cruza o céu encoberto. Deesguelha, percebo, à minha esquerda, sapatos de bico fino, lustrosos. - Merda. - Murmuro, sentindo meu corpo pinicar por inteiro. O coração se contrai. As pulsações aceleram. Meus músculos se retesam, de imediato. Deixo-me cair de costas, de volta ao travesseiro. Inspiro e expiro num ritmo mais apressado na esperança de que aquilo vá embora. Meu tio costumava me questionar sobre a forma como eu pressentia a intenção dos que já haviam partido para o "Outro Lado". Ele não conseguia entender como eu compreendia o que desejavam ou se eram bons ou maus antes mesmo de falarem comigo ou me tocarem. "Não sei, tio. Só sei que sei", respondia a ele, sorrindo, porque sentia-me segura em seus braços. Braços que não mais abraçam. Braços imobilizados para sempre, debaixo da terra, escura, úmida. Braços que serão devorados pelos vermes famintos. - Tio. - Amedrontada, eu o chamo. Levo a mão ao peito como se esse ato tivesse o poder de acalmar meu coração que palpita, descontrolado. O quarto parece diminuir de tamanho. Da testa, escorre um suor frio. Minha pressão arterial despenca, vertiginosamente quando, engolindo a saliva que molha a garganta seca, eu o chamo pela segunda vez, num tom ainda mais baixo e vacilante. - Tio. É o senhor? - Faço uma pausa, ouvindo a carótida latejar. - Me ajuda. É o senhor?

"Não".

A voz grave, melodiosa responde. Parece estar dentro dos meus ouvidos. Abro os olhos desmesuradamente, girando o pescoço de um lado para o outro, fixando meu olhar atônito nas chamas das velas que seextinguem com um único e ligeiro sopro.

"NÃO!"

Meu berro ecoa dentro de mim mesma onde me encontro presa. Não consigo me mover. Ossos, músculos paralisados enquanto os olhos - única parte de meu corpo que se move - procuram pelo Crucificado, de cabeça para baixo. "Me ajuda!", imploro sem poder falar. Observo, apavorada, o edredom ser arremessado, violentamente, contra a parede. Tento erguer a cabeça a fim de ver meus pés e o que - ou quem - está afundando o colchão ao meu redor. Entretanto, por mais energia que eu empregue, não consigo retirar a cabeça do travesseiro. Estou grudada a ele sob uma pressão surreal que chega a deformar a pele do meu rosto tamanha a intensidade. "De novo não!", penso, sentindo o horror se instalar em todas as minhas células que lutam para me manter presa ao corpo de onde quero...preciso sair. Por dentro, eu me vejo miúda cercada por ossos, a potente e ruidosa corrente sanguínea que desemboca num coração que ameaça explodir. Como em um pesadelo, forço meus pulmões a exalarem o ar que faz vibrar as cordas vocais e músculos da laringe. Tensiono as pregas vocais com um grito mudo que nem eu mesma ouço. É excruciante abrir a boca e nada ouvir além da minha angústia. Esforço-me por escapar das mãos fortes que separam, num só golpe, minhas pernas. "Deus", ouço meu pensamento aflito, a respiração ofegante. O rugido do vento

lá fora sopra a cortina de voil que esvoaça acima de minha cabeça, alheia ao meu tormento que está prestes a começar.

Mergulhada em total escuridão, meus pés e mãos e tronco estão esmagados contra a cama. A Força da Gravidade é implacável. Mas não se trata dela. É outra a força que me esmaga. Perdida como uma criança, esboço um "Pai Nosso", porém, esqueço-me da letra, das frases e de onde estou. Uma confusão mental me faz perder a noção de Espaço e Tempo. Meus olhos giram em suas órbitas sem que eu possa mover um dedo sequer. Tento rezar uma segunda vez e volto a me perder, a poucos segundos de perder a lucidez. Eu peço ajuda a Deus. Clamo por Seu nome. O que mais posso fazer?

"Nada".

A voz sussurra ao meu ouvido. Por dentro, estou num movimento frenético como um carrinho desgovernado em queda livre numa enorme montanha-russa. Meus órgãos todos pulsam de raiva e pavor. O coração ribomba na garganta. - Gael. - Ouço a 'presença' que me sufoca. - Meu nome é Gael. - Repete ele enquanto abro e fecho os olhos, confusa, pequena, vencida. - Sua tia foi minha. - Continua ele a falar dentro da minha mente pulsante. - Agora, é a sua vez. - Não não não. Por favor, não! - Shhh...

Sua mão grande e quente vai subindo por entre as minhas pernas, alcançando minha cintura. A 'presença' repugnante arranca, com selvageria, minha calcinha. "Jesus", minha alma suplica enquanto o meu corpo sente o peso de seu corpo ainda que eu não o enxergue. Quero respirar, gritar, morrer ou me defender. E NÃO POSSO! Suas mãos estão em meu ventre, entretanto, meus punhos estão presos por outras mãos menores, mais grosseiras. Em meio ao caos, eu ainda posso distinguir detalhes, o que torna tudo ainda mais aterrador, embora não possua clareza de pensamento para juntar as frases de uma oração, invocação ou qualquer sentença que faça sentido. O medo me desnorteia. Meus braços estirados ao lado do corpo, como uma cruz humana, a cabeça presa à cabeceira. Os fios de meu cabelo puxados com brutalidade. Não sei explicar como as informações chegam até mim, mas sinto que há mais do que uma presença maligna no quarto.

Estamos em quatro.

Enquanto prendem meus pés, afastados um do outro, a 'presença' maior abocanha, sobre o tecido da camisola, meus seios, mordendo os mamilos com voracidade. Dói! Comprimo os olhos e, desgovernada, muda, enojada, sob o poder de algo invisível e soberano, procuro raciocinar, sem êxito. Nada vem à minha cabeça além da palavra "socorro!". Suas unhas pontiagudas lanham a pele de meus braços. Sua língua afiada molha meu pescoço. Sinto seu cheiro adocicado, enjoativo. Ouço seu resfolegar quando me penetra com bestialidade. Abro a boca, num esgar, mas o grito, novamente, não sai. Após um esforço hercúleo, movo o dedo mínimo. Uma risada sarcástica se mistura ao som distante do trovão. A tempestade se afasta. Movo o polegar que parece ser de chumbo. Ele continua a se contorcer dentro de mim. Seu membro é enorme e abrasador. A cada investida, a dor aumenta bem como minha ira por ele. Abro os olhos, encarando o teto. "Tio!", clamo ensandecida. Indefesa, entrego-me à 'Força' que me domina por um tempo indeterminado. Nada sou perto dele e dos que o acompanham. Já não sei se estou sonhando. Bem que poderia ser apenas um pesadelo, mas eu não cheguei a dormir, logo, não pode ser um sonho. Estou acordada. Eu sei que estou.

"Paralisia do Sono", relembro o diagnóstico do psiquiatra insensível quando ainda era uma adolescente. Retorno ao presente. Ao pesadelo terrível, real e duradouro onde, após anos, volto a ser usada por seres repulsivos do "Outro Lado". Há justiça nisso? Deus, me ajuda.

"Eles não te ouvem."

Escuto nitidamente a voz carregada de ironia daquele que me invade. Ele está certo. É injusto, real, terrível, humilhante, mas ele tem razão. Não há o que fazer além de esperar que tudo acabe.

E acabara tão repentinamente quanto tivera início.

- Socorro! - Cuspo o grito tardio que ecoa pelo quarto ao mesmo tempo em que a eletricidade retorna. Cubro meus olhos com a mão, encolhendo minhas pernas. Minha camisola, ensopada de suor, se cola ao meu corpo. Por segundos, tento compreender o que acabo de vivenciar. Basta voltar à minha adolescência onde havia meu tio para me proteger dos vários ataques que jamais foram consumados. Agora, estou só e com muita raiva e asco de meu próprio corpo. O asco dá lugar à fúria que me impulsiona a rolar para o lado, caindo de joelhos no chão. Engatinho até a porta trancada onde me recosto, encolhida. O ventilador de teto volta a girar, secando o suor do meu rosto e do corpo exaurido. Ouço o som familiar da algazarra das pessoas lá fora. Eles comemoram o retorno da energia elétrica às suas casas. Aqui, em meu quarto, inerte e vazia, abraço as pernas flexionadas, impulsionando meu tronco para frente e para trás. Longe da lucidez, assobio a oração de São Francisco. Esqueço-me da metade em diante. Paro de assobiar. Silencio, rastreando a 'presença' maligna. Ele se foi. Não sei como sei, mas ele se foi. Foi real? Eu sonhei? Confusa, imploro para que tenha sido apenas um pesadelo, embora eu conheça a verdade.

"A Verdade vos libertará", bufo uma risada histérica ao me recordar do padre em sua homilia. O mesmo padre que 'apreciava' menininhos e pregava a palavra de um Deus que acredito ter me esquecido. - Por que não me ajudou? - Rosno ao Crucificado de ponta-cabeça. Relutante, levo a mão às minhas partes íntimas. Urro, batendo propositadamente a cabeça contra a parede. - Maldito. - Digo, constatando que ele deixara, dentro de mim, seu fluído asqueroso. Emito um grunhido onde a repulsa e a vergonha se misturam. - Acabou. - Murmuro, decidida. - Nesta casa eu não fico mais. - Indignada e magoada, fixo os olhos na janela aberta. A chuva amainara e o vento já não ruge. Inspiro e expiro profundamente. Encorajada pelo doce cheiro da Dama-da-Noite que invade o quarto agora iluminado, berro num tom de advertência. - Esta foi a primeira e última vez que vc me toca, seu verme covarde! Eu juro! - Trinco os dentes, tremendo-me toda quando repito. - A última!

***

Lanço mão da primeira calça jeans que vejo quando abro o guarda-roupas e, cambaleante, eu a visto. Não quero pensar no que se passara há pouco ou no que provocara aquele tipo de abuso. Visto uma camisa de manga comprida, perguntando-me se mereço ser estuprada por um demônio ou o que fizera para que isso acontecesse? É falta de fé? É porque não frequento às missas onde nada aprendera além de ouvir cochichos sobre o meu relacionamento conturbado com o filho de Celeste, a 'Santa'? - Praguejo, calçando um par de tênis antigo, disposta a sair da casa o mais rápido possível. Conheço pessoas piores do que eu cujo sono é tranquilo e reparador. - Mas eu não posso! - Replico, sarcástica, irritada com o roçar incômodo da blusa nos mamilos fragilizados. Aviltada, retruco, em alto e bom som. - Eu não posso. Eu sou a escória e, para a escória, o acesso é livre. - Ponho os óculos. Pego a vassoura e, com o cenho carregado, varro os caquinhos de vidro do espelho que se espatifara minutos antes do ataque. Dele sobrara somente a madeira na moldura. De mim, sobrara um pouco de amor próprio que me impele a tomar a única atitude digna que me cabe. "Vá", escrevera meu tio antes de ser assassinado. Logo, devo obedecê-lo e trocar a facilidade de viver em uma casa luxuosa onde nada de material me falta e seguir adiante. Aonde? Não sei.

Não há mais nada aqui para mim. Nada além de trevas.

****

- Maldito. - Murmuro, cruzando o umbral da sala de estar. Não tenho ideia do que fazer a seguir. Ouço somente minha alma gritando para que eu saia e nunca mais retorne. Como me desfaço das lembranças dos dias felizes que passara nesta casa? Foram tantos anos! - Não sei. - Respondo a mim mesma, chorosa conquanto decidida a acordar e crescer. - Foda-se tudo! - Jogo a mochila nas costas, ajeitando meus braços nas alças e, antes de alcançar a porta que me leva à varanda, uma dor lancinante se espalha da nuca até o topo da cabeça. Quase sou escalpelada quando, barbaramente, sou puxada para trás. Sua mão pesada se prende ao meu rabo-de-cavalo. Desprevenida, caio de costas. A mochila amortece a queda. Minhas unhas riscam o piso em madeira enquanto sou arrastada pelo longo corredor onde me vejo, aos sete anos, imunda, correndo dela enquanto proclamava: "Pra quê banho se eu vou me sujar de novo?!".

- Não! - Um grito de revolta escapa da minha garganta. Movimento as pernas, tentando, inutilmente, firmar os pés no chão. - PARA! - Da dor aguda, retiro forças para não me abater. Sempre fui boa em transformar a dor em raiva e, a raiva, em algo produtivo. Atordoada, olho para os lados e nada vejo além das paredes que um dia eu manchei com as mãozinhas sujas de terra. - Solta! Me solta!. - Imploro, quando meus dedos agarram seu punho fino e delicado. Ergo o queixo e, de relance, eu a vejo. Com a voz embargada, o coração oprimido, num lamento, eu a chamo. - Tia?! - Nossos olhos se cruzam. Há resquícios de ternura nos dela. - Não faz isso! O que eu fiz!? Me ajuda. Tá doendo. Me solta. Por favor, me solta. Por quê?! Por que deixou de me amar?

"Vc me prometeu e não cumpriu", repete ela incessantemente enquanto caminha, agora, mais lentamente. Meu choro se mistura ao dela quando, enfim, ela, abruptamente, solta meu cabelo. Meu tronco pende para trás. A mochila, cheia de roupas, amortece o impacto da cabeça contra o chão. Desnorteada, abraço meus joelhos e fico ali, meio que enlouquecendo, desatando os nós dos tênis enquanto falo. - Meu tio disse que não devo nada à senhora nem ao Fernando. - De costas para ela, eu choramingo. - Eu pensei que a senhora me amasse. - Ela emite um chiado. Talvez um gemido ou um lamento, bem próximo ao meu ouvido. Com a voz trêmula, os olhos marejados, as mãos cruzadas sobre a cabeça entre os joelhos, continuo. - Era o que a senhora dizia. Que me amava. Que eu era a filha que a senhora perdeu. Isabella, lembra? A senhora dizia que eu era tão importante quanto a Isabella. Como pode ter mudado? Por que tudo mudou? Tanto ódio. Tanta raiva. Sabe que isso faz mal à saúde? - Choro como uma criança, a voz abafada, os olhos ardidos, as lentes dos óculos salpicadas de lágrimas. O peito dolorido, partido. - Eu não te fiz nada, tia. Eu não te fiz mal algum. Me perdoa. Me perdoa se eu te fiz algum mal. - Digo, soluçando, assoando o nariz na manga da camisa larga de Fernando. Sinto sua presença atrás de mim, olhando-me, muda, imobilizada, curiosa como se eu fosse a morta. Em pânico, levo a mão à boca, contendo a ânsia de vômito. Um fedor de carne em estado de putrefação invade minhas narinas. Seus dedos longos pousam em meu ombro esquerdo. Congelo, comprimindo os olhos. Curvando-me como um gongolo, aguardo pelo pior.- Tia. - Sussurro. - Não me machuca. Eu te amo. Eu preciso partir, mas eu te amo. - Ela puxa para si mechas do meu cabelo, então me dou conta de como o couro cabeludo está dolorido. Estou prestes a me virar e enfrentá-la, embora eu não tenha a menor ideia de como fazê-lo. Como se mata um morto? Como atingi-la? - A senhora sabe o que aconteceu hoje? Sabe o que fizeram comigo? - "Sim", diz ela, a voz entrecortada por soluços. - Sabe quem fez aquilo? - Ela diz um 'sim' cheio de culpa . Indignada, questiono. - Isso tá certo, tia? Isso tá certo? - Aos prantos, apoio as mãos no chão, impulsionando o corpo para frente. Um puxão forte e ligeiro e estou de volta ao chão, presa pela porra dos fios de meu cabelo que, definitivamente, devem ser inquebráveis. Então, explodo porque dói pra cacete. - Quer que eu morra??? É isso??? Por que é exatamente isso que vai acontecer se eu permanecer aqui, tia. Eu vou morrer. Se não for o seu filho a me matar, será aquele demônio chamado Gael! - Ela faz um "Shhh", carinhosamente. Eu estreito meus olhos, elevando uma sobrancelha. Quase chego a sorrir lembrando-me dos bons e velhos tempos onde ela me fazia calar a boca da mesma maneira, com aquele olhar vibrante, as bochechas sempre rosadas, um sorriso doce no rosto perfeito. "Pentear os cabelos de alguém é uma prova de amor incontestável", dizia ela todos os dias antes de eu partir para o colégio, o cabelo sempre muito bem penteado somente para ser chamada de 'bruxa'. - Tia. - Insisto com o pescoço dormente. - Eu preciso ir. Deixa eu ir embora? - Giro meu tronco para a direita e quase a vejo. Um último puxão em minhas madeixas e, num repente, ela se afasta. Sem hesitar, fujo, engatinhando até a sala. Ela me acompanha. Apoiada nos calcanhares, finalmente meus olhos a observam. Minha boca se cala. A tristeza me consome. Ela é a sombra do que um dia fora. No entanto, ainda há luz dentro de si quando a ouço suplicar cheia de ternura.

- Vai. - As palavras fluindo como música, cheias de mágoa e de uma força serena. - Vc não merece o que aquele homem te fez e eu não tenho poder contra ele. Vá embora, filha. - Erguendo-me do chão, dou dois passos em sua direção, estendendo a mão que toca em seu rosto.

- Mas...tia. - Hesito, cheia de saudades. Já não há vermes ou aquele odor nauseabundo. Ela se parece com a mulher radiante que sempre fora. Não quero ficar sem ela. Não quero permanecer ali. - E a senhora? Como fica? - Seu olhar se perde por um instante, pressentindo algo que eu não percebo. - Tia? - Preocupada, ela adverte. - Eles estão chegando. Vá. Se não for agora, eu não vou poder te ajudar. - Eu abro a boca e a fecho diante de sua agonia. - VÁ! - Sua mão acaricia minha cabeça, deslizando os dedos pela trança que ela mesmo fizera. Abro um sorriso, exalando um suspiro. "Uma trança perfeita!", penso, exultante e emocionada porque agora eu sei que ela me ama. E como se ela houvesse me escutado, esclarece. - Sempre te amei, filha. Sempre vou te amar. Agora vai! - Vendo-me indecisa, com as mãos em meus ombros, ela me faz girar na direção da porta e, suavemente, me empurra. Hesito, imaginando que poderia ficar aqui e cuidar dela, mesmo que ela esteja morta. Que diferença isso faz??? Ela ainda me ama e amor de uma morta é melhor do que não ter amor.

- Tia! Eu poderia...- Abanando a cabeça numa negativa e com os olhos úmidos, ela aumenta o tom de voz e ordena.

- VAI!

******

Chego ao 'Hotel California' onde recebo um abraço reconfortante. Por San Juan Diego! Não há lugar melhor no mundo do que em um abraço. - Doc! Que saudades! - Exclamo contra seu diafragma porque, diante dele considero-me uma anã. Conto a ele tudo pelo que passara desde a morte de meu tio até meu cabelo trançado pelas mãos de minha tia. Ele, apesar de não gostar de ouvir relatos sobre o "Outro Lado", me escuta atentamente. Excluo o episódio macabro da 'Paralisia do Sono'. Ele certamente iria querer espancar o agressor e eu me sentiria ridícula tentando explicar que não se bate em 'mortos', logo, achei de bom tom pularmos esta parte. Sentado à mesa, Doc não desvia os olhos atentos de mim. Lollipop, a ruiva estonteante, está se aquecendo na barra de 'Pole Dance'. Em breve, a casa estará fervilhando. Faminta, aceito um super mega sanduíche servido em um prato que Doc, suavemente, faz deslizar sobre a mesa, até mim. "Dois hamburgueres, alface, queijo, molho especial, cebola, picles num pão com gergelim", cantarolo, com os olhos marejados e a boca cheia enquanto penso em meu tio e eu, diante da TV, disputando quem decoraria com mais rapidez o slogan do "Mc Donald's" que, àquele época, fora o culpado por quatro quilos a mais em meu corpo. Todos alojados em minha bunda, barriga e seios. Mas valeu a pena. Tudo valia a pena ao lado dele. - O quê?! - Pergunto desorientada diante da expressão insana no rosto de Doc que se mostra exasperado.

- O que pretende fazer daqui por diante, Giulia?! Sua vida vai mudar. Vc precisa de um plano, uma meta!

- Plano? Meta? - Repito, achando estranhas as palavras que pronuncio. Abro a boca desmesuradamente a fim de que o sanduíche caiba no espaço entre meus dentes e língua, pois, a última coisa na qual quero pensar no momento é em meu futuro longe da casa onde eu tinha absolutamente tudo. - Plano...meta.

- Giulia! - Doc grita, chamando minha atenção. - Um plano!

- Tenho não. - Respondo, baixando os olhos, lambuzando a batata frita no molho Cheddar que se esparrama entre o pão e a carne. Penso no quão ferrada eu estou e se terei grana para me alimentar quando sair daqui. Ergo a cabeça e, insegura, continuo. - Não tenho planos, vida, perspectivas, dinheiro, amor. Sequer um lugar para dormir.

- Não seja por isso. - Replica Doc, abrindo um sorriso encantador, os olhos risonhos como os do meu tio. Céus. Eu preciso. Eu, de fato, preciso parar de me lembrar dele o tempo todo se eu quiser seguir adiante. - Minha casa é sua. - Diz ele, com franqueza. Sorrio, os maxilares se movendo, aflitivamente, enquanto abano a cabeça numa negativa. Rindo, ele repete num espanhol sofrível. - Mi casa, su casa!

- De jeito algum. - Retruco, esfregando, rudemente, o guardanapo de papel em minha boca, limpando o molho no canto dos lábios e os vestígios daquele demônio devasso de minha memória. Percebo a diferença entre Doc e seja lá qual for a face do fantasma irlandês que me violentou. É gritante! Doc irradia luz por onde passa apesar de seu jeitão intimidador, truculento; o franzir de testa e os olhos semicerrados que me encaram como um médico observa sua paciente louca que afirma estar sã. Volto ao presente quando ele estala os dedos diante dos meus olhos surpresos. Então, entendo que ele aguarda uma resposta, embora eu não me lembre da pergunta. - Não mesmo! - Afirmo, confusa. - Vc cuida de seus filhos e netos. Não vou permitir ser um peso em sua vida, Doc. Eu sei o quanto vc trabalha pra sustentar a todos. Dois trabalhos, Doc! - Inclino-me, dramaticamente, em sua direção, jogando metade do sanduíche sobre o prato. Rastreio ligeiramente, com a língua, vestígios de alface nos dentes superiores quando enfatizo. - Vc tem dois trabalhos e eu me pergunto quando vc arruma tempo para dormir e descansar essa cabecinha que não para de pensar nos outros! - Ele abre a boca e, diante de meu dedo em riste, ele a fecha. - Não adianta tentar me convencer do contrário. Te amo por me ajudar tanto, Doc, mas, preciso crescer. Era o que meu tio queria. É o que devo fazer. - Seus olhos de um castanho claro se entristecem, então, seguro sua mão sobre a mesa, ao lado do palco, a fim de lhe agradecer por tanta generosidade. Ao invés disso, cenas de sua vida conturbada detonam a minha mente já bastante exaurida. Em seu lar, duas crianças choram à ausência da mãe: a filha de Doc, assassinada pelo amante. Num quarto escuro, sua esposa definha, vítima de uma depressão intermitente que a faz maltratar a família inteira, especialmente Doc, seu amado esposo. Eu o vejo chorar no banheiro, mãos apoiadas na pia, a porta fechada, os ombros curvados pelo peso do remorso. Sua dor é minha como sempre acontece quando esse tipo de fenômeno ocorre. Acho que devo voltar a usar as luvas. Somente assim eu poderei ter controle sobre os meus sentimentos e os de outros. - Obrigada, amigo. - Sussurro sensibilizada. Afasto minha mão, desfazendo a nossa conexão, logo, esclareço. - Não posso ser mais um peso em suas costas, Doc. Eu não vou. - Num só gole, ele esvazia a garrafa de água tônica. O fundo de vidro choca-se contra a mesa em madeira quando ele, decidido, declara.

- Não aceito. Ao menos, até encontrar um lugar para morar, vc vai ficar na minha casa. - Enquanto ele me fala, ouço o chacoalhar da cauda de uma cascavel a cada instante em que ele move seu relógio de ouro no pulso que se agita a cada motivo que ele me dá para que eu aceite sua oferta. - Não faz sentido. Para de ser teimosa e me ouça! - Assevera ele, socando a mesa com o punho cerrado. Assusto-me com sua reação intempestiva. Observo sua exaltação minuciosamente. - Onde vai dormir hoje?! Na rua?! - Agastado, ele indaga, espalmando a mão na mesa. - Eu mesmo vou te levar a esse tal de Giuseppe e veremos o que ele tem pra te dizer. - Estreito meus olhos, ressabiada. O sanduíche no prato, a voz dele se elevando, nervosamente. Sua imagem difusa. - Se seu tio te deixou alguma herança, é o seu direito recebê-la. Vc precisa crescer, Giulia! Crescer e enfrentar seus medos. Mesmo que seja pouco, seu tio te deixou alguma coisa! Esta no diário! É seu e vc vai correr atrás do que ele te deixou!

- Não fica nervoso...Doc. - Sussurro, desconfiada.

- Não estou! Só quero que me ouça, filha! - Filha??? Assinto com a cabeça até que ele pare de falar e comece a se tranquilizar. A velha e incômoda sensação de que algo sinistro está por vir toma conta de mim, arrepiando os pelinhos da minha nuca. Estremeço, subitamente, voltando os olhos às luzes do palco que se acendem, num repente.

- Giulia! - Eu o ouço vagamente enquanto me deixo levar de volta ao dia em que dançara com um homem magnífico, alto, notas amadeiradas em sua gola, um pescoço másculo que eu infelizmente não lambi. Donna Summer cantava enquanto dançávamos a sós, na pista tão iluminada quanto este palco. Canalha! Por que me abandonou? Por que, Carlos? - Giulia! - Repete Doc, pousando a mão em meu braço. - Acorda, menina! É da sua vida que estamos falando. Acorda! - De chofre, meu coração se enche de uma alegria insensata. É o mesmo tom de voz, a mesma expressão no rosto amargurado, as mãos cruzadas sobre a mesa, os olhos risonhos me encarando com ternura. Só há uma pessoa no mundo que se preocupa assim comigo, ou melhor, havia.

- Tio?! - Falo tão baixo que quase não me ouço. Por Baco! Retorno à mesa certa de que estou diante de meu tio. Levo a mão ao coração descompassado, estreitando meus olhos, procurando em Doc traços do pai de Fernando. - Giulia, meu anjo. - Diz ele, exalando bondade. - Ouça. Cresça. Pare de se ausentar. É hora de fincar os pés no chão.

- Jesus. - Suspiro.

- O quê!? O que viu?! - Doc recua, intimidado. - Fala!

- Nada. - Minto.

- O que viu?! - Insiste ele.

- Nada! - Esbravejo, comovida. De nada adiantaria explicar a Doc o que acabo de assistir. A imagem de seu rosto se misturara ao do meu tio como ocorre em uma TV cujas imagens sobrepostas não nos deixam ver com clareza. Sua pele negra, clareara. Seus olhos castanhos, foram tingidos de azul. Aquele sorriso inesquecível. Um sopro morno de amor eterno em meu rosto umedecido pelas lágrimas que escorrem sem que eu consiga controlar. - Não me olha desse jeito! - Choramingo. - Eu não vi nada! - Minto, limpando as bochechas com o dorso da mão. - Diabos! Será que eu nunca serei vista como uma mulher comum???

- Giulia, coma. - Ainda cabreiro, Doc aponta o indicador ao prato e, recostando-se à cadeira, docemente me ordena. - Come e me obedeça. - Ergo uma sobrancelha e penso em retrucar, no entanto, ainda estou faminta, logo, calo a minha boca com outra fatia do sanduíche que pretendo comer ainda nesta vida. Assim deveria ser a dor da saudade: diminuída a cada mordida, a cada dia que finda. Mas não é. E, pelo visto, a dor de Doc também não. Ele sofre calado. Braços cruzados, ouvidos apurados, a visão perfeita à cata de baderneiros. Esse é o meu amigo. Meu grande amigo. Creio que amigos são a família que escolhemos. Grata por tê-lo ao meu lado, inspiro profundamente antes de tocá-lo uma vez mais. - Minha esposa vai te adorar. - Diz ele num repente. Sua esposa não vai me adorar, Doc. Muito menos os que estão com ela. - Eu sempre falo de vc para ela. - Ele suspira sofregamente e se corrige. - Eu falava.

- Uh-hum. - Finjo concordar. - Vamos nos dar muito bem. - Garanto, dobrando o guardanapo sujo em quatro partes. De cabeça baixa, penso que estou prestes a conhecer a verdade, logo, preciso conhecer a fundo o terreno onde devo pisar daqui a algumas horas. De barriga cheia, pouso a minha mão sobre a dele. Propositadamente, eu me reconecto à sua vida e, abruptamente, sou jogada no quarto escuro onde vejo sua esposa, sentada em sua cama, olhos fixos na TV ligada, o chuvisco na tela, o chiado de estática. - Puta merda. - Doc sorri, alheio ao que faço. Eu deixo de ser o centro de sua atenção quando ele volta a trabalhar, observando o movimento crescente dos clientes da boate. Ele não faz ideia do que estou fazendo, e para ser sincera, nem eu. Sua esposa não está sozinha no quarto do casal. Um forte arrepio subindo pelas costas me avisa de que não devo continuar. Eu não quero saber de detalhes. Eu não quero me meter nisso. Eu não preciso fazer o que não desejo. Ele é bom. Ela é boa. Que Deus - se é que Ele existe - cuide de ambos. Não eu! Eu não vou pisar naquele quarto. Podem tirar o cavalinho da chuva porque eu-não-vou! - Doc, aceito seu convite. - Aliviado, ele joga a cabeça para trás com uma expressão vitoriosa em seu semblante. Emborco a garrafa de Coca-Cola, já morna, esvaziando-a em três longos tragos, o que, acidentalmente, me faz arrotar. - Perdão. - Peço, ruborizando, lembrando-me do patético campeonato de 'Super Arrotos', aos sábados, após as pizzas, junto à família que escolhera. Eu me recusava a arrotar, portanto, jamais recebera o título de campeã que, invariavelmente, pertencia sempre a Fernando, o ogro psicopata. - Bebi rápido demais. - Explico envergonhada. - Por San Juan Diego! - Exclamo, impaciente, elevando minha sobrancelha questionadora quando "Sweet Jane" empaca diante de mim e me pergunta, olhando-me de cima a baixo, com um par de botas prateadas de cair o queixo e aquela expressão esnobe que lhe é peculiar.

- Vc voltou?

- Não. - Respondo. - Eu morri. Vc está olhando para o meu holograma. - A gargalhada gostosa de Doc me incentiva a expulsar de mim a raiva que sinto dela, de Fernando, do morto devasso e de meu tio que me deixara sozinha neste mundo onde só há trevas. - Diga o que quer o mais rápido possível porque daqui há precisos cinco segundos, eu me autodestruirei, meu bem. Vou desaparecer, fenecer, dissipar, desvanecer, obliterar, eclipsar, refundir, extinguir, acabar, diminuir, reduzir, evaporar, sucumbir. Um...dois...

- Uau! - Perplexa, ela leva as mãos à cintura e continua a me encarar. Não posso deixar de admirar sua beleza, um tanto vulgar, embora fascinante. Doc continua a rir até chorar enquanto eu me pergunto se há comida entre meus dentes. - Vc é exatamente como o Nando me disse. - Provoca ela, requebrando "as cadeiras". Para tudo! "Nando???" Desde quando Fernando passara a ser "Nando" para vc, sua coisinha loira faiscante???

- Vc tem algo a me dizer ou pretende requebrar até o chão? - Ela solta uma gargalhada genuína. Os fios de seu cabelo são impecáveis. Imagino se são dela, de fato, ou se acaso, trata-se de uma peruca. - Vc hilária! - Exulta ela, balançando a cabeça, inclinando-se em minha direção. Por um triz, não lhe arranco a peruca. Ela continua a rir e, por segundos, eu quase chego a gostar dela. Na verdade, eu me apiedo porque ela não faz a menor ideia de quem é o homem que sempre cobiçara. - Quer se sentar e se juntar a nós dois, querida? - Sarcástica, reviro os olhos, empurrando com uma perna a cadeira que se volta para ela. - Podemos falar sobre seu enxoval. Tenho ótimas ideias!

- Sério?! - Ela recua, espantada, escondendo as mãos nos bolsos do roupão preto com seu nome bordado na altura dos seios. - Vc não tem ciúmes???

- Não, meu bem. Inclusive, posso até te dar o que havia comprado para o meu enxoval nos tempos em que meu cérebro permanecia inativo e eu intencionava me casar com o 'Nando'! - Enfatizo o nome do filho de minha tia, arregalando os olhos. Trinco os dentes num sorriso forçado quando proponho. - Mas, prometa-me que vai se inscrever numa aula de 'Krav Magá'. Vc, certamente, vai precisar.

- Não entendi.

- Eu percebi, querida. Deixa pra lá. Doc! - Eu o encaro, erguendo-me da cadeira, aprumando-me. Encolho a barriga porque sei que ela está escaneando defeitos em meu corpo neste exato momento - Eu já vou. - Aviso, retirando os óculos, deslizando a mão pelo rosto. Minha pele está áspera como lixa, meus cabelos, um lixo. O couro cabeludo, sensível. Seguro a trança. Esboço um sorriso triste. Ela me faz lembrar de que ainda sou amada por minha tia, o que enche meus olhos de lágrimas. - Vou me arrumar. - Empurro, enraivecida, a cadeira com o pé. - Trabalhar é preciso. Depois, conversamos. - Volto meu olhar de superioridade a ela que permanece parada à minha frente, provavelmente ainda tentando entender o que seria 'Krav Magá'. Uma nova marca de batom? Uma nova variação de 'loiro cinza médio sol radiante'? Não! - É uma luta, meu bem. - Esclareço. - Creio que vc vai precisar se realmente quiser conquistar aquele homem.

- Por quê?! - Ouço a pergunta após ter passado por ela. Sua voz está impregnada de dúvidas. Não gosto dela, mas, daí a desejar que ela passe por tudo o que eu passei nas mãos daquele narcisista, homicida filho da puta é outra história. - Por que tenho de aprender a lutar pra ficar com o Nando? - Por San Juan Diego! O que ela tem de linda tem de burra. Giro nos calcanhares, lançando-lhe meu olhar flamejante.

- Nada, querida. Absolutamente nada. Eu estou brincando. Não se preocupe com nada. O 'Nando' e vc formam um belo casal. - Vou andando até o camarim. 'Sweet estúpida Jane' vem me seguindo, vaporosa, com sua estola preta estilo "galinha de encruzilhada" enrolada ao pescoço. Sento-me diante do espelho cravejado de lâmpadas incandescentes, então, percebo o quanto envelhecera nos últimos dias. "Carlos, Carlos, Carlos." Bufando, provoco seu reflexo. - O que vc quer, Maria das Dores?

- Não me chame assim!

- Ué! Não é o seu nome?! Maria das Dores?! Um lindo nome. - Deixo escapar um sorriso triunfante enquanto passo meu batom. Ela pode ser mais bonita do que eu, no entanto, eu danço melhor. Danço sim! - Tá bom. Tá bom. Não precisa ficar assim. - Apiedo-me dela quando a vejo segurar as lágrimas apertando a raiz do nariz, comprimindo os olhos. Estou odiando este meu lado à La 'Madre Teresa de Calcutá'. - Sweet Jane! - Digo em alto e bom som, jogando minha calça jeans e a camisa de Fernando sobre o biombo onde inicio minha transformação. Hoje, "Tiffany-Twisted" vai sair da casinha. - Diga logo o que quer. Por que está me seguindo feito um cão de guarda? - Ela não responde. - Sweet Jane, vc não está...??? - Estupefata, inclino a cabeça para fora do biombo e a vejo chorar, apoiando as mãos na mesa onde há uma mistura bizarra de maquiagens, lantejoulas, brincos, goma de mascar, sacos vazios de amendoins e outras porcarias. - Ei! - Imprimindo suavidade em minha voz, pergunto. - O que está havendo? Por que tá chorando? Posso te ajudar? - Por Baco! Nem eu me reconheço mais! Vou me aproximando enquanto, docemente, sugiro. - Se quiser, podemos conversar. - Ela força um sorriso, assentindo com a cabeça. Retira um lenço de papel da caixa e assoa o nariz sem ruído algum enquanto eu pareço um elefante enraivecido quando faço o mesmo. Sua mão volta à mesa quando a minha a toca, acidentalmente. Talvez a compaixão tenha me unido a ela a ponto de me deixar ver um pouco de sua vida, desvendando seus segredos.

E lá vou eu mergulhar na vida alheia outra vez...

Uma casa pequena, bem mobiliada. A TV da sala de estar, ligada. No canal de desenhos animados, o gato continua a levar a pior enquanto o rato tira onde de sua cara. O conjunto de sofá em couro, vazio. Uma cortina de miçangas separa o corredor do quarto cuja porta é rosa. Na parede junta à cama, flores pintadas à mão. Na escrivaninha, uma foto de Sweet Jane sorrindo para o fotógrafo invisível, abraçada à filha que prefere não sorrir. Olho para trás e vejo a menininha da foto, sentada em sua cadeirinha de balanço ninando a boneca de cabelos escuros como os dela. A menina tem medo, então, procuro entender o porquê. O quarto é gracioso. Tem tudo o que uma garotinha de oito anos deseja, exceto, a presença da mãe. É por este motivo que a criança chora baixinho, receosa em acordar o namorado da mãe. Ele passa por mim, fedendo à cachaça. Caminha pelo corredor em direção à cozinha, mas algo o faz recuar até o quarto da menininha. Então, ele para e a aprecia. Seu sorriso é asqueroso. Suas intenções são repulsivas. O homem olha para o relógio, preso à parede do corredor. Um outro sorriso cheio de lascívia e contentamento, no entanto, a menininha não sabe o significado da palavra 'lascívia'. Ela só não gosta de ser observada por ele enquanto brinca com sua boneca que lhe diz para ter cuidado com o homem da "mão boba". A 'mão boba' do homem do sorriso asqueroso acaricia o topo da cabeça da menininha que chama pela mãe. O homem asqueroso promete que não vai doer. O trinco da porta da sala emperra. Precisa de lubrificação. A mãe reclama do lado de fora. O homem asqueroso se afasta da menininha, subindo o zíper da calça jeans. "Da próxima vez, eu consigo", pensa o homem repugnante. Sigo o homem com os olhos raivosos, os punhos cerrados. Um leve puxão na barra do meu vestido me faz parar. Giro meu corpo e a vejo. Ela segura sua boneca pelo braço. Com a mãozinha, faz um gesto para que eu me agache. É o que faço. - Me ajuda. - Cochicha ela enquanto meu coração se enche de amor, piedade, revolta e ódio. - Leva ele daqui, tia. Leva.

Abro os olhos e escuto os gemidos de dor de Sweet Jane. Estou apertando seu braço, fincando minhas unhas em sua pele. Olho para ela, mas não a vejo. Ainda ouvindo o pedido da menininha, engulo em seco, abanando a cabeça, retornando aos poucos, ao meu corpo quando, encontro seu olhar estarrecido.

- Vc já sabe. Não sabe? - Jane leva as mãos ao rosto, absolutamente constrangida. - Vc só queria que eu te dissesse o que vi porque vc sabe que sou 'estranha' como dizem por aí. - Em sua mudez, ouço a resposta. Como um cão raivoso, eu me inclino na direção de sua boca, meus olhos congestionados, as narinas dilatadas, trinco os meus dentes quando rosno. - Volte à sua casa agora e salve a sua filha! - Aterrorizada, ela pega sua bolsa, as chaves do carro e, sem retirar o roupão ou a estola preta, segue a passos largos em direção à porta. Antes que suma do meu campo de visão, eu a advirto. - Se vc não denunciar esse pervertido, eu mesma o farei.

De súbito, ela retorna e, ao me abraçar, sussurra dolorosamente um "Obrigada". Estou tão enojada com o que acabo de ver que não retribuo o abraço. Por que ela chora? Remorso? Culpa? Insegurança? Medo da solidão? Ela sabia? Não sei. O que faz uma mulher aceitar qualquer lixo humano dentro de sua casa, pondo em risco a vida de uma criança?

Não sei.

Melhor perguntar à minha mãe.

***

Um lampejo de preocupação percorre os grandes olhos de Doc quando ele me avisa, num tom sombrio, um pouco antes de chegarmos à rua onde ele mora que, talvez, eu não esteja preparada para o que estou prestes a ver. Bufo uma risada quase histérica enquanto digo.

- Meu bem, fique tranquilo. Não há nada neste ou em outro mundo que eu já não tenha visto. - Ele me olha de soslaio, com uma das mãos no volante de seu carro. Um Opala verde-abacate com rodas de magnésio, ar-condicionado. Bancos e teto em couro marrom e um ultra possante aparelho de som. Um estouro! - Pode acreditar. - Confirmo, observando as pessoas lá fora pela janela do passageiro. Imagino que cada um dos pedestres tem seu próprio universo. Seus problemas, seus dons e maldições. Pensamentos alegres ou sórdidos que não são ouvidos por mim graças à diva Madonna que, na canção, conta que o amor já não mora em seu coração porque fora abandonada. É exatamente o que penso e sinto. Não há amor aqui desde que Carlos me largara.

Neste exato momento algo faz meu coração parar de bater por segundos. - PARA TUDO! - Grito, girando a manivela que faz o vidro da janela descer ao mesmo tempo em que meu coração volta a bater, acelerado. Doc, aturdido, pede para que eu volte a me sentar no banco. "É perigoso", avisa ele. - Para o carro, Doc. Por favor! - Imploro, com a metade de meu corpo para fora da janela. - Por favor, para!

- GIULIA! - Ouço seu grito enquanto corro o mais rápido que posso até a estação do metrô onde os pedestres desaparecem abduzidos pela escada rolante. - Volta! - Doc insiste.

- Tarde demais, Doc. - Resmungo, acariciando a pedra que queima a palma da minha mão. Estreito os olhos e miro bem no meio de suas costas largas, a camisa branca, o cabelo curtinho, o pescoço abrasadoramente sedutor, aqueles braços... - Miserável! - Murmuro, abrindo um sorriso maligno, erguendo o braço, girando meu tronco para a direita. - Essa é por mim! Pelas noites que não dormi pensando em vc! - Arremesso a pedra rosnando "Carlos Canalha!" no mesmíssimo instante em que ele se volta para trás, aturdido, como se houvesse ouvido o meu grunhido. Creio que ele ouviu. Espero que tenha ouvido. Espero que sinta a dor da pedra que, infelizmente, resvalara em seu braço e fora ao encontro à cabeça de uma senhorinha inocente ao seu lado. "Puta merda! Ela não merecia", penso enquanto nossos olhos se encontram. Apesar de confuso, ele abre um daqueles sorrisos que iluminam tudo à sua volta e, por instantes, volto a acreditar que ele gosta de mim. Instantes que se dissipam quando a raiva borbulha em minha garganta, então eu cuspo. - EGOÍSTA! COVARDE! MISERÁVEL! - Corro de volta ao carro de Doc que arregala os olhos quando me jogo no banco do carona, fecho, com violência, a porta do carro e ordeno colérica.

- PÉ NA TÁBUA!

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 23/09/2020
Reeditado em 23/09/2020
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