'É ASSIM QUE DEVE SER' - CAPÍTULO 22

"Do you hear me,

I'm talking to you

Across the water across the deep blue ocean

Under the open sky, oh my, baby I'm trying

Boy I hear you in my dreams

I feel your whisper across the sea

I keep you with me in my heart

You make it easier when life gets hard

I'm lucky I'm in love with my best friend

Lucky to have been where I have been

Lucky to be coming home again"

(LUCKY - JASON MRAZ)

Ela se calava quando eu, ainda criança, a questionava. Ela se calava e me arrastava consigo àquele prédio alto, cinza onde as paredes falavam...gritavam. Pediam por socorro. Àquela época eu não sabia como calar as vozes. Ainda as ouço, embora tenha aprendido a lidar com elas. Eu era uma criança em um local onde a Morte circulava pelos corredores sem ter sido convidada. Onde meu tio, irmão de minha mãe, encontrava-se internado. Perguntava, intrigada, por diversas vezes, à minha mãe pelo nome da doença que o mantinha preso àquele leito. Ela me respondia com a expressão aterrorizada de quem esconde algum segredo terrível: "Ele tem aquela doença", cochichava ela apertando meu braço, arrastando-me, desnorteada, a uma sala fria onde havia várias camas, uma ao lado da outra, com cortininhas verdes que me impediam de ver o que existia lá dentro. Mais tarde, soubera se tratar de um 'Centro de Terapia Intensiva'. Tanto esforço para quase nada. Seu irmão, na maioria das visitas, sequer abria os olhos, ainda que soubesse que estávamos lá. Sempre muito despachada, eu o queria beijar e acariciar sua cabeça com fios lisos e ralos, branquinhos como nuvens. Eu pouco me recordo dele. Meu tio, seu irmão, homem de bom coração. O rosto sisudo, sobrancelhas grossas e grisalhas. A pele pálida, um olhar severo que fora se abrandando conforme os dias em que passara ali, naquela cama, colchão duro, um fino cobertor que não o protegia do frio. Ainda aos cinco, não entendia o porquê de visitá-lo já que não havia uma ligação afetiva entre nós dois. Ao menos, era o que parecia. Ele não sorria. Ele não falava abertamente. Apenas murmurava palavras de repreensão pelo meu jeito extrovertido de ser. Talvez ele já soubesse o tipo de garota que eu seria, portanto, não me sorria de volta. Será que ele possuía poderes ou as tais 'faculdades' que possuo? Uau!

Não me importa. Eu os deixava lá, mudos, alheios e escapava até os leitos onde havia outros doentes que pareciam apreciar a minha companhia. Eu falava e falava e falava, absolutamente distante de seus mundos, de suas dores. Alguns me ouviam com interesse. Outros ficavam observando o teto como se seus olhos expelissem raios ultra potentes, capazes de atravessarem o concreto. Penso que eles adorariam admirar as estrelas lá fora. Minha mãe custava a me achar, chamando-me, num misto de raiva e medo, pelo corredor largo e curto, enquanto eu me escondia atrás da cortina de um verde claustrofóbico. Invariavelmente, a resposta que minha mãe dava ao meu pai que, raramente visitava o cunhado, era a de que ele não havia melhorado. "Está quase morrendo", lastimava-se, pondo-se de joelhos no genuflexório em seu quarto, orando para que seu irmão tivesse uma 'boa morte'.

"Diabos! E morrer é bom?", pensava eu, sentada na beirada de sua cama, agarrada à minha boneca Dayse, observando minha mãe repetir por dezenas de vezes as mesmas orações. Eu achava aquilo engraçado. Eu, de fato, prendia o riso, escondendo-me atrás da barriga de Dayse que ria comigo também. Todos esperávamos pela notícia de que o irmão de minha mãe havia morrido, mas ele nunca morria. Então, querendo dar um fim ao seu sofrimento e, igualmente, ao meu, eu me ajoelhava naquele móvel esquisito que sussurrava aos meus ouvidos que minha mãe era infeliz.

Grande coisa! Me conta uma novidade!

Eu precisava acabar logo com aquele lenga-lenga, então, eu repetia todo o ritual bizarro de minha mãe ao rezar, contrita, diante do Cristo Crucificado preso à parede descascada. Eu pedia a Ele que desse um jeito naquela situação porque eu já não aguentava mais sacolejar em dois ônibus até chegar àquele hospital e ver minha mãe chorar à toa. "Ou ele morre ou se levanta dali e vai pra casa!", exigia eu, com as mãozinhas rechonchudas cruzadas, a testa apoiada nas mãos, sob os olhos atentos de Dayse que me incentivava a continuar. "Não dá pro Senhor fazer alguma coisa? Ele não pode ficar bom? Se não pode, o Senhor pode levar ele embora de uma vez? É que eu tô ficando cansada e a Dayse também."

Se o Criador me ouvira eu não sei. O que sei é que, da noite para o dia, tudo havia mudado. Em visita ao seu irmão, minha mãe voltara a chorar, mas, desta vez, fora de felicidade. Meu tio sisudo parecia bem melhor. Até sorrira para mim! Eu o apresentara à Dayse sob os protestos de minha mãe que me puxava, afastando-me de seu irmão milagrosamente recuperado.

"Todo doente melhora antes de morrer", vaticinara meu pai, sempre disposto a piorar o que já estava ruim. Porém, infelizmente, ele não estava de todo errado. Após dois dias de uma súbita recuperação, minha mãe, enfim, me deixara em paz e não me arrastara ao hospital. Eu tive pena dela porque ela chorou como uma criancinha enquanto eu beijava sua bochecha molhada e lhe pedia para não ficar triste. Ela se sentira culpada por não ter estado lá quando ele partira para o Outro Lado.

Chamam a isso de "Melhora da Morte".

***

Acordo de supetão com a desagradável sensação que se tem quando se está caindo um pouco antes de pegar no sono. Abro os olhos e, certificando-me de que estou na cama, volto a fechá-los. Sorrio ao sentir o ar úmido entrando pelas frestas da janela, o tamborilar tranquilo da chuva na copa das árvores. Uma chuva constante e suave. Encolho-me debaixo do edredom, remexendo-me sobre a cama confortável. Um monte de travesseiros fofinhos onde apoio meus braços, deitada de bruços. Permaneço num torpor gostoso por um tempo. Quero continuar a dormir. Amo dias chuvosos e frios. São ótimos para ficar enrolada sob as cobertas exatamente como estou.

- Só mais quinze minutos não farão a menor diferença. - Resmungo contra o travesseiro, cobrindo minha cabeça com o edredom, irritada com as tarefas que me são atribuídas diariamente. Não pelo meu tio. Não mesmo. Ele merece muito mais do que eu poderia dar a ele durante o resto da minha vida, mas pelo imbecil do Fernando que deixa tudo nas minhas costas. - Não quero. - Respondo à voz que me pergunta se desejo tomar o meu café. - Deixa na mesa. Depois eu esquento. - Enfio minha cabeça embaixo da porra do travesseiro, praguejando com a voz abafada. - Não se liga nisso não. Eu me viro. Vai trabalhar.

- Hoje é o meu dia de folga. - A voz responde, serenamente, a uma certa distância de mim. - Não tenho a menor intenção de sair daqui. - Entre o lençol que forra o colchão levemente perfumado e o travesseiro, arregalo meus olhos enquanto a voz avisa, um pouco mais apressada. - Espera um pouco. Já volto! - Inspiro e expiro, procurando acalmar meus batimentos cardíacos. Giro meu corpo para o lado com travesseiro e tudo e logo encaro, atordoada, o teto. Dou duas fungadas rápidas e então confirmo as minhas suspeitas.

- É amadeirado! - Exclamo num desespero, ejetando-me da cama como um boneco de mola que sai de uma caixa fechada. - Que diabos estou fazendo aqui? - Pergunto a mim mesma, recostada ao guarda-roupas de madeira maciça. Encaro meu reflexo no espelho preso à parede e solto um arquejo de susto. Estou vestindo uma camisola branca, longa, com as mangas bufantes. Que merda é essa??? É linda, mas não é minha. Fecho os olhos, puxando o ar pela boca entreaberta. - Que lugar é este? - Minhas mãos tateiam o móvel e, imediatamente, as lembranças impregnadas nele chegam à minha cabeça. Enjoada, não admito mergulhar no mundo de alguém que não conheço. - Como vim parar aqui? - Meus olhos vasculham a escuridão do cômodo cujas cortinas vedam a luz exterior. - Carlos. - Leio na contra-capa de um dos livros sobre a escrivaninha, ao lado da cama, de onde acabo de sair. Vejo uma parede pintada de um azul indefinido. Talvez se eu abrir as cortinas...- Voilà! - Exulto no instante em que empurro o caixilho da janela para cima, enxotando para os lados a cortina de um marrom austero, do mesmo tom da cama de ferro num estilo colonial e romântico. - Azul Marinho! - Exclamo ao me deparar com a parede agora iluminada. - Perfeito. Esse azul empresta ao quarto um ar misterioso, sufocante, sombrio. Gosto disso. - Comento em voz baixa, apreciando a manhã chuvosa lá fora. A Dama-da-Noite procurando se curvar para entrar com seus galhos e flores brancas, delicadas num jardim bem cuidado. Ao lado esquerdo da janela onde me debruço, uma pequena estufa, envidraçada. Estreitando meus olhos, percebo que o local carece de limpeza. Pergunto-me porque essa mania de limpar o que vejo à minha frente. Talvez eu me sinta suja por dentro e essa sujeira transborde a ponto de eu não enxergar o que há de limpo ao meu redor. - Uau. - Digo ao me virar e escanear cada canto de onde me encontro. Toco, receosa, no telescópio apontando para o céu. Penso em olhar através dele, no entanto, ele me parece bastante caro e se eu o derrubar, certamente, terei de pagar por outro, logo, desisto. Quadros de 'Natureza Morta' em uma das paredes. Na outra, uma estante cheia de livros de capa dura, dentre eles, alguns sobre Biologia, História, Física e Alquimia. Um outro, acima de todos, na última prateleira, me faz estreitar os olhos perscrutadores, arrepiando-me, quando deslizo meu dedo sobre as letras douradas em alto relevo. - 'São Cipriano. O Bruxo'. - Sussurro num tom misterioso como se houvesse descoberto o grande segredo de Carlos, o homem que lê mentes. - 'Capa Preta'. - Complemento, ressabiada. - O que há de tão importante no livro de capa preta? - Vou dizendo enquanto folheio o volume famoso por seus feitiços e invocações a seres malignos. - E existem outras cores pra essa capa? 'São Cipriano da Capa Vermelha' ou 'São Cipriano da Capa Branca'? Por que evidenciar a capa preta? - Dou de ombros, indignada, vidrada nas imagens sem me atrever a pronunciar as palavras de um idioma estranho, as letras em preto e vermelho. As páginas amareladas como se fossem antigas, escritas pelo próprio bruxo. - Que horror. - Murmuro, amedrontada. Minha tia dissera-me, um dia, que eu já havia sido um bruxa em outras eras e, talvez, tenha sido queimada em alguma fogueira cercada por pessoas piores do que eu, daí, o meu medo com relação a esses assuntos. Pode ser. Bruxa ou não, eu odeio este tipo de literatura. Magia Negra, invocações, feitiços, macumba ou seja lá o que estiver nessas folhas toscas, desenhos de bodes, chifres, símbolos e sangue. EU TÔ FORA! Antes de fechar o livro, algo me chama a atenção. - 'Feitiço da Invisibilidade.' - Faço uma careta e solto um risinho desdenhoso, abanando a cabeça. - Era só o que me faltava! Além de ler pensamentos, o cara anda por aí sem que ninguém o veja?

- Vc não acredita nisso?! - De esguelha, vejo seu vulto, uma pitada de ironia na voz grave. Um susto. O livro vai ao chão e as minhas mãos cobrem o rosto, quando resmungo, constrangida.

- Puta... que... pariu. - As maçãs do meu rosto esquentam enquanto vou me agachando, encolhendo, murchando de vergonha. - Perdão. - Quase não ouço o que digo, embora meus olhos se abram desmesuradamente quando se deparam com o livro aberto, as letras em vermelho. - "Oração da Cabra Preta." - Recito, pausadamente, erguendo-me, o olhar fixo nas linhas macabras. Levo a mão à boca, devolvendo o livro à estante. - Oração da Cabra...- Mal termino a frase e uma sonora gargalhada sai de minha garganta, fazendo-me perder as forças. Apoio minhas mãos nas laterais do móvel tão antigo quanto o livro. - Me perdoa. - Digo, rindo, sem olhar para ele que se mantem parado ao meu lado como o Muro de Berlim antes de sua queda. - É que é engraçado. Eu não sei o que tem de engraçado nisso, mas...Por San Juan Diego! - Rio tanto que chego a roncar, o que me deixa ainda mais nervosa e desconcertada. - Cabra Preta??? - Repito sarcasticamente, inspirando entre uma risada e outra. - Perdão. Não consigo parar. - De cabeça baixa, meus olhos incidem sobre a minha camisola. Ela é branca, longa, linda, mas não é minha. Solto o ar pela boca, antes de me dirigir a ele que passa por mim e caminha, cautelosamente, em direção à cama. Meus olhos o seguem, a boca abre e cospe a pergunta. - Como eu vim parar dentro desta camisola???

- Adivinha. - Diz ele, pousando a bandeja de prata no criado-mudo.

- Vc não se atreveu??? - Indago, cruzando os braços abaixo dos seios, aguardando algum tipo de reação do homem que dançara comigo na noite passada. Um completo desconhecido e, cá estou eu, em seu quarto, com uma camisola que me remete ao Século XVII, segurando o riso por culpa da porcaria da cabra. - Vc não fez isso?! - Sentado em uma cadeira de balanço de madeira com assento e encosto de palhinha, tão antiga quanto a estante, o livro e, provavelmente, quanto à 'Cabra Preta', ele ergue os braços, na defensiva. - Fez??? - Aumento o tom da voz aguda, dando dois passos furiosos em sua direção. Paro a poucos centímetros dele que ergue a cabeça, os olhos acinzentados da noite anterior, a boca se abrindo num sorriso inocente. Contenho o ímpeto de esbofetear a sua face e beijar a sua boca quando abro a minha para ofendê-lo. - Canalha!

- É brincadeira. - Replica ele, num tom de voz divertido. - Foi vc Eu só te passei a camisola pela fresta da porta do banheiro. - Estreito os olhos, retorcendo o nariz. - Eu juro que não espiei. - Confessa ele, erguendo-se da cadeira que balança sozinha. Ele volta a passar por mim, espalhando seu cheiro amadeirado, delicioso, másculo, viril, forte. POR BACO. Volta aqui. - É uma mistura de Sândalo, Cedro e outras coisinhas. - Explica ele, rindo baixo.

- Vc não me ouviu! - Não sei se estou perguntando, afirmando ou ordenando que pare de ajeitar a porra da bandeja e me olhe nos olhos.

- Não. - Responde ele, voltando-se para mim, encarando-me com uma expressão branda no semblante. - Não ouvi. - Afirma, molhando a boca com a ponta da língua. Tonta, percebo a efervescência de um vulcão subindo através de minha corrente sanguínea até chegar às minhas bochechas que devem estar ridiculamente rubras. Isso é patético. - Isso não funciona assim, Giulia. - Esclarece ele, sem desviar os olhos dos meus. Lá fora, um trovão ribomba enquanto eu, desequilibradamente, solto um gritinho estúpido. Medo? Susto? Emoção? Excitação? Não sei. Tudo o que sei é que eu o conheço de algum lugar. Ao menos, é isso que sinto, mas não consigo articular uma palavra sem a porcaria do tom ameaçador. - Não leio mentes quando quero. - Ele sorri para mim e me deixa ali, parada, enquanto força os braços para baixo, os músculos das costas expostos, na tentativa de fechar a janela. - É como um fósforo riscado. - Grita ele contra o vento que traz a chuva para dentro do quarto. Estou paralisada, extremamente emocionada. Por Deus! Eu tenho absoluta certeza de que o conheço, mas de onde??? Por que meu coração não para de bater na garganta? Por que não consigo conversar com ele como uma garota normal. Talvez eu não seja uma garota normal. Não. Não mesmo. Eu não sou normal. E ele também não. - A chama de um fósforo riscado repentinamente na escuridão. É dessa forma que os pensamentos chegam até mim. Como a chama de um fósforo riscado na escuridão. - Ele se detém na janela. Parece estar gostando da chuva em seu peito. Melhor assim. É bom que não me olhe mesmo. Estou fervendo por dentro e, decididamente, minhas bochechas estão tão vermelhas quanto a ponta do nariz da rena que ilumina a porra do caminho do Papai Noel na noite de Natal. - Rodolfo.

- O quê?! - Levo a mão ao peito, arfando diante dele que, após fechar a janela, olha para mim como quem olha para a irmã caçula, adorada, mimada, digna de pena. - Não entendi! - Rosno, fracassada.

- É Rodolfo. - Diz ele, secando-se com uma toalha de rosto que somente Deus sabe de onde surgiu porque eu nada vejo além dos seus olhos pacíficos e a boca se movimentando conquanto eu nada ouça até que ele estenda o braço direito e toque, com seus dedos quentes, a pontinha de minha orelha, afagando-a. Puta que pariu! Eu sei que te conheço! - Rodolfo. - Repete, ele.

- Quem??? - Desperto, gritando.

- Rodolfo é a rena do nariz vermelho que guia o Papai Noel durante a entrega de presentes na noite de natal. - Explica com a voz rouca, seus dedos deslizando por meu pescoço até meu ombro. Me beija. Por favor, me beija. - Café? - Pergunta ele, erguendo, sedutoramente, uma das sobrancelhas.

- Como??? - Espanto sua mão ainda presa à minha orelha com um golpe preciso de Kung Fu. Aprendera assistindo aos filmes de Bruce Lee ao lado do tio. MEU TIO! - Preciso ir! - Anuncio, desorientada.

- Espera! - Suplica ele, fazendo-me sentar no colchão macio, pousando a bandeja em meu colo, ordenando. - Tome o seu café e depois eu a levo até ele. - Retorço a boca, estreitando os olhos questionadores. Estou morrendo de fome. Não me recordo da última vez em que comi algo, logo, baixo os olhos, satisfeita. - Deve estar com muita fome.

- Vc precisa parar com essa porcaria! - Advirto-o, de boca cheia. O pão está quentinho e branco. Uma fatia de queijo sem manteiga. O miolo intacto. Perfeito. Do jeitinho que eu gosto. - Eu não suporto mais essa palhaçada de ser lida o tempo todo. - Digo enquanto jogo o achocolatado goela abaixo em três longos goles. - Isso não é justo. - Choramingo, limpando o bigode marrom nos cantos da boca. Ele está me observando, sentado na cadeira de balanço, como se eu fosse um daqueles bonecos infernais que não podem entrar em contato com a água após a meia-noite. Como é mesmo o nome do filme? Tá aqui na ponta da língua. Gre...Gro...Gets...

- Gremlins.

- Para com essa merda! - Ordeno, colérica, jogando a bandeja sobre a cama.

- Foi sem querer.

- Mentira! Vc é um saco! Um pé no saco! Eu não suporto isso.

- Perdão - Implora ele, ajoelhando-se no piso, diante de mim. Não posso me levantar da cama sem que eu esbarre nele. E, sinceramente, não quero sair daqui. Ele é assustadoramente doce, gentil. - Não tenho controle. Eu juro. - Suas mãos unidas em prece estão sobre a minha coxa esquerda. O simples contato de seus pulsos contra a minha pele, ainda que eu esteja vestida, me causa uma sensação fantástica de prazer. Um prazer maior do que o sexual. É como estar de volta a algum lugar ou época onde fui feliz de verdade. Eu não sei como explicar. Essa merda toda tá acabando comigo. Por que ele tá rindo? É de mim ou pra mim??? - É pra vc.

- Porra! Vc fez de novo! - Salto da cama, irritadíssima. A bandeja voa. Minha visão embaça. Meu coração quer sair pela boca enquanto cambaleio até a porta de onde o ameaço, entredentes. - Vc não vai mais me fazer de idiota. BASTA!

- Não! - Ele emite um gemido desesperado, apressando o passo a fim de me alcançar. - Não sai assim. Eu juro que vou tentar me segurar. Eu não sei como, mas eu vou. - Ele fala enquanto eu ando, fantasmagoricamente vaporosa em minha camisola, sem a menor noção de onde estou. Bosta! Eu não conheço essa casa. - Giulia, para um pouco. Vamos conversar. - Giro, raivosamente, nos calcanhares, arregalando os olhos flamejantes. Ele não freia, então colidimos em pleno corredor. Não faço ideia de onde fica a saída dessa casa. - Fica. Vamos conversar! - Sua expressão é séria. Seu olhar incisivo.

- Conversar??? - Dou um passo em sua direção. - Com vc??? - Mais outro e nossos corpos estão unidos novamente. Seria uma ótima oportunidade para ele me beijar. MAS ELE NÃO ME ENXERGA. - Como??? - Meu indicador toca em seu tórax de nadador. Seus ombros são largos, sua pele macia. - Ora bolas! Vc não conversa! Vc adivinha. Da próxima vez, vou economizar a minha voz e o seu tempo, e pensar em tudo o que vc merece ouvir, sem precisar gritar como agora. Vc não é a porcaria de um Super-Homem e eu não sou a bosta de um livro pra ser lida! Vc entendeu??? - Estou a ponto de perfurar sua pele com a minha unha sem esmalte. Estou furiosa e não sei o porquê. Eu o odeio. Eu o adoro. Que porra é essa??? Só pode ser feitiço! É claro! O da 'Cabra Preta!' - Estatelo os olhos, a boca entreaberta, estupidamente imobilizada à espera de sua confissão.

- Sério! Isso é sério!? - Ele revira os olhos, passando as mãos pela cabeça, o cabelo rente ao couro cabeludo. Eu amo isso. - Vc pensa isso de mim!? - Ele se mostra indignado.

- O quê? - Sussurro, assustada.

- A Oração da Cabra Preta???

- DE NOVO??? - Ele gargalha, despudoradamente. - Vc fez isso de novo??? Eu não suporto isso. Odeio isso! - Na verdade, ele se curva para frente de tanto rir. - Vá pro inferno! - Baixo os olhos e a voz. Encolho os ombros. Os cabelos desgrenhados cobrem meu rosto. Quero chorar. Quero sumir. Sinto-me ridícula, boba, infantil. - Onde fica a saída?

- Giulia, olha pra mim. - Ele se recompõe. Eu exalo um suspiro. Lá fora, outro trovão. Os pingos da chuva engrossam e, agora, jogam-se contra o basculante, em alumínio, do banheiro. É pequeno. Bem menor do que o nosso. Digo, o do tio. Mas é limpo. Extremamente limpo levando-se em consideração o fato de ele ser um homem e, todos nós sabemos que homens são porcos ao usarem um banheiro. Ele dá uma risadinha. Eu finjo não perceber. Estou concentrada. Abro a torneira e deixo que a água lave meu rosto, levando embora a minha raiva sem motivo aparente. Ele permanece atrás de mim, recostado ao batente da porta. Os azulejos são antigos. A casa é antiga, embora não fale. Suas paredes não contam segredos como as das outras casas. Em compensação, ele continua a falar num tom fascinantemente arrependido. - Giulia, eu não tenho amigos. Não sou de conversar. Por isso, não sei como me comportar diante de vc. Vamos recomeçar? Giulia! - Repete ele, enquanto eu seco meu rosto. A toalha é dele. Seu cheiro. Sua essência. Seu coração acelerado. Seu choro. O sofrimento. - Me ouve. Deixa eu consertar tudo. - Ele toma de mim a toalha. Eu me desconecto de seu passado. - Fica um pouco mais. - Sussurra ele em meu ouvido. Minhas costas estão contra a parede, seus braços ao lado do meu rosto. Seus olhos não são como os de Fernando. São límpidos, transparentes. Não há nele resquício algum de malícia. Há bondade. É disso que gosto nele. Ele é bom. Um bom homem, como meu tio havia dito.

- Por que chorou ali? - Aponto com o queixo para uma velha banheira de louça branca no canto esquerdo do cômodo. - Vc chorou ali. - Assevero, tocando em seu peito. Seu coração bate na palma da minha mão. Ergo meus olhos e me vejo refletida nos dele. Exalando um longo suspiro, pergunto. - Quem te fez chorar? Por que tanta tristeza em seu coração?

- Não quero falar. - Cochicha ele. - Não vale a pena.

- Por quê? - Estamos falando baixo como se quiséssemos esconder algo de alguém, embora não haja ninguém além de nós dois na casa. - Não é justo que vc leia meus pensamentos e eu não possa usar de minha faculdade pra tentar te ajudar. - Ele abre um sorriso triste, cheio de gratidão. Enfim, mais calma, sorrio de volta. Seus olhos vão dos meus até o teto e retornam aos meus, ainda mais tristes, melancólicos, úmidos. - Por quem chorou? - Ele balança a cabeça numa negativa, apertando os lábios com força, num gesto de aflição. Fecho meus olhos e, apoiando minhas mãos geladas em seus ombros, deixo-me levar por suas lembranças.

Volto ao chão frio da adega de onde ele me retira com rapidez e extremo cuidado. Refaço o caminho até o hospital. Sua mão aperta a minha enquanto estou deitada na maca em movimento e ele me acompanha, caminhando apressadamente ao meu lado, prometendo não me deixar sozinha. As lâmpadas retangulares e fluorescentes do teto passam por mim como vagões de um trem desgovernado. Há vozes, gritos, ordens. Confusão. Sua mão se abre. Meus dedos deslizam por entre os dele. O ruído das portas se abrindo, um solavanco na maca. Uma sensação de vazio. As portas se fecham atrás de mim. Ele desaparece. A cortina verde e claustrofóbica me faz apagar. - Vc me salvou. - Admito. Com o polegar, ele enxuga a lágrima que escorre em meu rosto. - Como sabia que eu estava lá? Por que se importa comigo? Foi por mim que chorou? - Aumentando o tom de voz e da angústia oprimindo meu peito, eu o afasto de mim e explodo, ofegando. - A gente se conhece de algum lugar? Por que eu me sinto tão ligada a vc? Por que não diz o que quer? Quem é vc, de verdade? O que quer de mim? Vc usa de Magia? É um mago? Um bruxo? Tô tão perdida. - Levo minhas mãos à testa, visivelmente confusa. - Eu te conheço? Eu te conheço. - Confirmo, em dúvida. - De onde eu te conheço? Me diz. - Imploro, chorando copiosamente. Há algo nele que me faz sofrer, necessitar, desejar o seu perdão. - Quem é vc? Eu sei que vc sabe de algo. Eu sei. Eu vejo nos seus olhos. Me diz. Vc sabe que a gente se conhece. Me diz! De onde a gente se conhece!? Por favor! Me diz! Quem é vc???

- Sou teu amigo. - Responde ele, a voz baixa e frágil. Ele encosta o indicador num ponto entre minhas sobrancelhas. - Confia em mim. Só quero o teu bem, Giulia. O teu bem. - De imediato, sinto minhas pálpebras pesarem como chumbo. Luto por me manter acordada, agarrando-me em seus braços que me apoiam e não me deixam despencar feito um fruto podre e míope, pois vejo dois dele à minha frente. Dois que se fundem formando um só. Isso não é legal. Não me machuca. - Nunca. Confia em mim. Vc precisa se acalmar.

- Carlos, vc sabe. Me...

- Dorme, amor...3,2,1.

"Merda. Tudo escuro.

Novamente."

***

Além de bonito, ele cozinha muito bem. Acabo de devorar um pratarrão com feijão, arroz, bife e batatas fritas. Hmmm! Meraviglioso! Se estivesse de estômago vazio, eu daria ouvidos à voz que me indaga sobre o espaço entre a noite de ontem e o agora. 'Não sei. Não quero saber e tenho raiva de quem sabe'. Respondo à voz estúpida e me concentro nele que fala de sua vida e de como ele me encontrara naquela noite fatídica. Fora uma tarefa árdua fazê-lo se abrir para mim. Nunca alguém havia me dado tanto trabalho para falar de si mesmo. Eu sei. Eu sei que falo muito, no entanto, quando eu ouço, eu ouço pra valer. Debruçada sobre a mesa de jantar coberta por uma toalha em xadrez, vermelha, num estilo piquenique, eu o admiro em silêncio, vendo-o lavar a louça do almoço. Eu tentei lavar, mas ele me impedira, gentilmente, dizendo que sou sua convidada e, convidados, segundo ele, em sua casa, descansam e conversam. 'E apreciam as costas do anfitrião que se movem graciosamente como as de um bailarino', acrescento. Ele bem que poderia ser um bailarino, se o quisesse. Corpo, para isso, ele tem!

"Gosto de dançar.", diz ele, despretensiosamente como se eu tivesse dito o que pensei em voz alta. Eu bufo, revirando os olhos, tamborilando os dedos nervosos na mesa, pigarreando como uma fumante inveterada. Então, ele me olha com aqueles olhos serenos, incrivelmente penetrantes e diz que não vai mais acontecer. Ele acha essa coisa de ouvir os pensamentos algo normal. Um prologamento da conversa. "Às vezes, não dá pra distinguir se vc falou ou só pensou. A voz ouvida tem a mesma intensidade e volume daquela que é dita". Explica-me ele, voltando a se desculpar. Dou de ombros e aceito suas desculpas, mesmo porque, não tenho a menor vontade de sair de perto dele. É tão acolhedor, tão seguro e previsível. Previsível de um jeito bom. Tipo...eu sei que ele não vai mudar de repente e me agredir ou me forçar a fazer sexo com ele, como Fernando costuma fazer. Meu lado devasso acha que ele deveria ser um pouco mais atrevido, no entanto, quem está aqui, devorando-o com os olhos é a menina boba que ainda não crescera. Aquela que aguarda por seu príncipe ou, ao menos, por um beijo do garçom que me salvou naquela noite onde ele alega ter me visto pela primeira vez. Diabos! Ele não me tocou ou fez menção de tocar de uma maneira mais audaciosa desde ontem, quando dançamos. Estamos conversando há horas e eu estou sendo tratada como uma amiga de infância, uma 'quase' irmã. É irritantemente prazeroso estar aqui, relaxada, sentada num banquinho de madeira, apoiando meus cotovelos na toalha, pensando em como ele surgira em minha vida.

"Talvez a gente se conheça de outras vidas", supõe ele. Eu concordo porque é exatamente assim que me sinto com relação a ele, ainda que não dê atenção a esses assuntos. Não gosto de pensar que, em outras vidas, fui pior do que sou agora.

Cada gesto, cada palavra, cada olhar toca fundo no meu coração e tudo o que quero é abraçá-lo por horas e ficar ao seu lado, ouvindo-o falar de seus sonhos, de seu trabalho. Mas...

Ele não fala.

- Vc foi despedido por minha causa. - Assumo, sentindo-me culpada. Ele faz que não com a cabeça, sentando-se à mesa, bem à minha frente. A luz tênue da luminária de teto em palha empresta um ar romântico, íntimo à nossa conversa. Percebo o quão pequenina é a cozinha, embora muito asseada. Uma dor me constringe o peito por entender que ele necessitava daquele emprego. - Onde vc trabalha agora não é tão bom quanto no 'Italia Mia'. - Afirmo, lastimosa, esticando meu braço até ele, quase deitada sobre a mesa de jantar. - Deixa eu consertar o meu erro. Eu posso pedir ao Fernando...

- Sem chances. - Replica ele, educadamente, expressando desprezo em seu rosto de uma beleza rústica. Carlos não tem os traços tão perfeitos quanto os de Fernando, mas é terrivelmente estimulante sentir seu antebraço sobre o meu, acariciando minha pele com seus dedos longos e delicados. Engulo em seco, tentando esconder o movimento de fole do meu diafragma quando ele me pede. - Esquece isso. Onde trabalho, ganho o suficiente pra viver.

- Mas...

- Não conseguiria voltar àquele lugar ou voltar a falar com ele. - Confessa, inspirando profundamente, soltando o ar pela boca, - Eu tô bem. - Nossas mãos se entrelaçam. Abro um sorriso tímido. Ele me imita, afirmando com suavidade. - Eu tô muito bem. Pode acreditar.

- Mas vc ganha pouco! - Retruco, exasperada, afastando-me, de súbito, as costas eretas, narinas infladas. - Lá vc ganhava mais. Eu tenho certeza!

- Ganho o suficiente.

- O suficiente é pouco!

- É o bastante.

- Mentira! - Falo alto, estreitando os olhos. É hora de parar, mas eu não me ouço. - Por que não reage? Por que fica tão calmo? Vc não tem ambição??? - Estou gritando, colérica, e sequer conheço o porquê. Não sou assim. Não gosto de ser assim e, ainda assim, continuo a ofendê-lo. - Quer continuar nessa vidinha? Nessa casa alugada?

- A casa é minha. - Defende-se ele, imóvel, o olhar indecifrável fixo em mim.

- Não importa! - Ele pisca quando bato com o punho cerrado sobre a mesa. Eu mesma me assusto diante de minha reação. Sem controle, eu o ataco. - Não pensa em crescer? Estudar? Não pensa em ser alguém na vida? - Ele solta um suspiro curto, dilatando as narinas, então declara, pausadamente, parecendo não ouvir o meu pedido de desculpas.

- Eu sou alguém.

- Eu não quis...- Recolho a mão enlouquecida, escondendo-a debaixo da mesa quando ele ergue a sua num claro sinal de que não deseja ser interrompido. Eu acato o seu desejo porque o respeito. Eu não tenho medo dele como tenho de Fernando. Eu o respeito. - Sou formado e pós-graduado em Ciências Biológicas. Especializado em Botânica. - Abro e fecho a boca, numa inútil tentativa em me redimir. Ele fecha os olhos, balançando lentamente a cabeça, continuando a falar num tom baixo, grave, soturno. - Não costumo julgar as pessoas por sua formação acadêmica.

- Eu também não. - Digo apressada, arrependida. Seus olhos se abrem, cheios de compaixão. - Juro que não!

- O que importa é o que fazemos com o que apreendemos, mesmo sem diplomas ou títulos que, por muitas vezes, não têm o menor valor.

- Mas...- Eu deveria ter uma trava de segurança que me impedisse de continuar a falar merda. MAS NÃO TENHO. - O que faz um biólogo trabalhar como garçom em um restaurante de três estrelas?

- Biólogos pagam contas.

- Biólogos trabalham como biólogos para pagarem suas contas!

- Biólogos exercem outras profissões quando não conseguem trabalhar como biólogos! - Ele bufa, revirando os olhos. - Vc precisa crescer. - Diz ele, abrindo um sorriso conciliador.

- Eu sei! - Grito, contrariada, curvando o tronco, a testa na beirada da mesa. As lágrimas empoçando o tecido branco da camisola longa que cobre as pernas. - Eu sei. - Repito, destruída, observando meus pés.

- É impulsiva, reativa, desequilibrada, desbocada, atrevida.

- Eu sei. - Rosno, ainda de cabeça baixa. - Me ajuda. Eu quero mudar.

- Eu não quero que mude. - Arregalo os olhos, empertigando-me, exalando um longo suspiro, quando pergunto, confusa, olhando em seus olhos.

- Não?

- Não. Eu gosto de vc, assim, como é.

- Louca? - Mordo o canto da boca, insegura.

- Louca. - Eu pigarreio quando suas covinhas surgem iluminando a cozinha, a área de serviço como o sol nascente. - Completamente louca. - Engulo em seco, levando a mão à boca, impedindo meu coração retumbante de saltar com uma dentadura larga. O silêncio ameaça nos esmagar, então, pateticamente, eu começo a assoviar, procurando por teias de aranha ou traças nos cantos do teto impecavelmente limpo. Ele cruza as mãos sobre a mesa, então sinto outra onda de calor espalhando-se pelo rosto, colo, alcançando os ombros e braços. - Puta que pariu. - Digo, espantada. - Sua cozinha é limpa pra cacete. Tem faxineira? - Ele faz que não com a cabeça, erguendo uma de suas sobrancelhas perfeitamente desenhada. - Uau. - Suspiro e vou rindo e respirando, aos poucos, como uma asmática em crise. - Vc me surpreende. - Confesso, incomodada com seu olhar avassaladoramente insistente. O que ele deseja saber que já não sabe? Que eu tô super sem graça? Que eu falei merda? Que sou ridícula porque o ofendi por me sentir uma porcaria de pessoa? Eu não estudei. É isso que vc quer que eu confesse? Eu não sou formada em nada. Tá bom pra vc ou quer mais??? - Vai continuar?

- O quê?

- A me olhar desse jeito.

- Que jeito?

- Ah! - Dou de ombros. - Vá pro inferno!

- Vc pensa muito. - Pondera ele, cruzando as mãos na nuca. Os músculos do peitoral expandido-se por debaixo da malha de sua camisa branca. - Isso deve cansar.

- Cansa. - Admito. - E muito. - Desvio meu olhar ao piso em cerâmica branca, os rejuntes limpos, tão brancos quanto seus dentes.

- Viu? - Olho para ele. Vou emergindo após outra onda de calor. - Sou pobre, mas sou limpinho. - Revirando os olhos, resmungo.

- De novo? Vc não se cansa de ler mentes? Não sabe que isso é invasão de privacidade?

- A culpa é sua. - Alega ele, inclinando-se em minha direção, pousando sua mão sobre a minha. - Pensa alto demais. Não dá pra não ouvir.

- E se eu quiser esconder algo de vc? - Minha mão agarra-se a dele. Torço para que ele sinta o que sinto por ele. - Como eu faço? Digo...tem uma maneira de esconder algo de vc?

- Eu não ouço tudo. - Defende-se, juntando a outra mão livre à minha. Estamos absolutamente conectados. Um sanduíche de mãos ávidas por se conhecerem. - Eu enlouqueceria se ouvisse tudo. Ouço os pensamentos mais emotivos, explosivos. O resto chega até mim como frases entrecortadas, sem sentido.

- E quando eu posso ter certeza de que vc não vai ouvir o que penso? - Seu sorriso maroto me faz corar uma outra vez. Já não dou tanta importância a este fato porque é óbvio que ele sabe que eu sei que sinto algo por ele. - Diz. - Imploro.

- Normalmente, não consigo ouvir com clareza em ambientes agitados, onde a música é alta e há muitas pessoas juntas, pensando em coisas diferentes, ao mesmo tempo. - Sua mão, no topo do sanduíche, desliza pelo braço, sinuosamente até meu ombro, os dedos acariciando minha nuca. - Por quê? Qual é o seu plano sórdido? - Encabulada com sua atitude um pouco mais audaciosa, respondo, gemendo, relaxadamente.

- Nada não. Bobagem. - Penso que agora seria o momento ideal para o beijo. Os pelos de meus braços eriçados, sua mão acariciando vigorosamente a nuca, meus olhos fechados, a boca entreaberta.

- Putz! - Volto ao corpo, num impacto, arregalando os olhos, sendo arrastada por ele, através de um corredor minúsculo que logo nos liga à sala. - Preciso te mostrar uma coisa! - Exclama ele, feliz, caminhando afoito, sua mão segurando a minha, seu perfume invadindo minhas narinas.

- Aonde vamos? - Grasno, agastada enquanto ele ri como uma criança que encontra seu brinquedo há muito perdido. Ele me faz correr até a lateral da casa, as folhas orvalhadas, a Dama-da-Noite exalando seu perfume inebriante, uma forte sensação de segurança se espalha em minha alma. Estou feliz. É isso. Estou feliz ao lado dele. E, se ele não for quem parece ser? Se gostar de homens? Eu não vou suportar. Não. Não mesmo. Não vou perguntar se ele é gay. Talvez seja. FODA-SE! Não o quero mais. Se é gay, assuma. Não brinque comigo. Eu decido. Eu não te quero. Sou eu quem não te quer, Carlos. - O quê??? - Indago, na defensiva quando ele me faz parar num repente, encarando-me como um predador. - O que é? O que eu fiz??? - Pergunto, com a voz esganiçada, as bochechas queimando como as de um peru em véspera de Natal.

- Nada! - Diz ele, sorrindo, voltando a me arrastar como uma boneca de pano. Paramos abaixo da janela de seu quarto, em frente à estufa, quando ele se volta para mim e anuncia, orgulhoso.

- É aqui que me sinto feliz.

- No meio das plantas??? - Ele assente, pacífico, pleno enquanto caminhamos por entre flores de cores vívidas e fragrâncias exóticas. Ele realmente me encanta ao tocar as ervas, olhando-as com tanto amor que chego a ficar com inveja delas. Puta que pariu! A que ponto eu cheguei! Inveja de flores. Por que não me toca? Tá me ouvindo? Diz que tá me ouvindo! Olho para ele que se mantem ocupado em me apresentar cada uma das espécies dentro daquele aquário gigante, destacando seus nomes científicos, a família botânica às quais as plantas pertencem para, enfim, olhando direto nos meus olhos, falar a minha língua.

- Calêndula, Melissa, Funcho e Cidreira.

- Não me diga. - Zombo dele, erguendo o queixo, a autoestima abaixo da ardósia onde pisamos. - São bonitas.

- São poderosas. - Argumenta ele, com um brilho nos olhos. - São a cura para muitos males. Levei tempo pra construir isso aqui, mas valeu a pena.

- Tempo e dinheiro. - Digo, abespinhada.

- Faria de novo se precisasse. É o que gosto de fazer. Criar para curar. - Há mais do que orgulho em sua fala. Há aquela certeza que somente os que alcançaram seus objetivos a possuem. - Existem pessoas que precisam de remédio e não têm como pagar por eles. Então, eu os manipulo, aqui, nessa pequena e milagrosa estufa.

- Por que não cobra por seu trabalho?

- Vc não ouviu nada! - Vocifera ele, arrastando-me para fora da estufa, enfurecido. Ouço o baque seco da porta atrás de mim, enquanto ele me puxa, vigorosamente, até seu quarto, jogando minhas roupas sobre a cama, sem olhar nos meus olhos. - Pode se vestir. Eu te levo pra casa.

- Não! - Revolto-me tarde demais. Ele fecha a porta, deixando-me sozinha com a raiva que sinto de mim mesma. Eu estraguei tudo. Ele me mostrara o seu mundo. E eu pensando em dinheiro enquanto ele falava de altruísmo. Nossos mundos são diferentes, embora eu consiga me ver ao seu lado. Não quero ser pobre. Não quero. Estou errada em querer que ele cresça? Por que sinto que já brigamos antes se não nos conhecíamos até ontem? Por que sinto a obrigação de me desculpar até que ele me perdoe?

Andando nervosamente de um lado ao outro do quarto, agarrando-me às laterais do camisolão "a la Cathy", a louca das charnecas do "Morro dos Ventos Uivantes", decido que não sairei dali sem o seu perdão. Abro a porta num solavanco, soltando um grito de susto quando o vejo no corredor, as mãos apoiadas no batente da porta como se a casa fosse desmoronar. Sua expressão de dor, surpresa e alegria me embriagam, então, eu me jogo em seus braços e, agradecida por sentir seu coração batendo junto ao meu, suplico.

- Me perdoa. Eu sou uma idiota. Eu te admiro e te respeito. Eu não quis te ofender. Juro. Juro. Eu não vejo nada de errado em vc. Vc é bom, altruísta, gentil...- Com uma mão, ele tampa minha boca, olhando diretamente para os meus olhos bem abertos.

- Me faz um favor? - Assinto com a cabeça já que não posso falar. - Cala a boquinha e me beija.

***

Posso dizer que aquele fora mais do que um beijo. Enquanto sua língua se encontrava com a minha, meu pensamento voava longe. Eu me senti em outro corpo, em outra época, amada por ele que não era, exatamente, como ele, mas era ele. É confuso. É surreal. É fantástico. Não sei quanto tempo o nosso primeiro beijo durou.

Uma pena ter acabado.

***

Sinto o sabor de seu beijo enquanto subo, lentamente, a ladeira que me leva de volta a casa. Embora eu tenha saído daqui ontem, parece que estou regressando após séculos. Séculos de felicidade ao lado dele. Ele é pobre, filantropo e burro, mas, eu verdadeiramente, o quero para mim. Um lado grita que devo deixá-lo. Como vou pagar minhas contas sem que ele saiba onde eu trabalho? E, se ele souber, vai desistir de mim? Eu vim da pobreza e, se não fosse por meus tios, ainda estaria nela. Não gosto de ser pobre. Não há quem goste. Dizem que gostam da pobreza porque, para muitos, é uma prova ridícula de evolução espiritual. "Antes ser saudável e pobre do que rico sem saúde", dizia minha mãe. É O CACETE! Antes, saudável e rico com grana pra ajudar quem necessita, porra! Falsos, hipócritas! Que o diabo os carregue! Que o diabo me carregue! Odeio ser pobre! Mas, acho que o amo. É tão forte, tão intenso e tão sereno. Não quero ficar com ele. Não quero ficar sem ele. Estou disposta a lutar contra Fernando somente por ficar com Carlos. Ele disse que me ama desde a primeira vez em que me vira. Amar alguém jogada no chão, ensanguentada, aviltada, à beira da morte é, de fato, bizarro. Mas...

- Que merda é aquela! - Minha voz sai fraca de medo. Estou a poucos metros da casa do tio e, logo acima do telhado, vejo uma nuvem densa. Morcegos voando num círculo sombrio. Fecho os olhos, rezando para que, ao abri-los novamente, eles tenham desaparecido. - Não, não, não. - Diante do portão principal, observo, aterrorizada, sob o portal da sala de estar, um vulto gigantesco tremeluzindo a uns dois metros do chão. Quero juntar os fatos, mas nada faz sentido.

"Vc precisa entrar."

Uma voz feminina sussurra aos meus ouvidos enquanto empurro a porta que range assustadoramente ao se fechar atrás de mim. Jogo a mochila no chão e, tomada por uma coragem súbita, corro até ele. Empurro, com um forte chute, a porta do quarto. Ouço meu próprio grito de horror. Caio de joelhos. Fecho os olhos, comprimindo-os com força. Levo minhas mãos às orelhas, tapando os ouvidos e, como uma criança emburrada, discuto com a voz metálica, fria, indiferente que repete, exatamente, o que meu pai me dissera quando eu ainda era uma criancinha.

"Todo doente melhora antes de morrer".

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 26/07/2020
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