FOLHETIM PANDEMIA COMPLETO
1- LAPSO
Depois daqueles drinks, não se lembra de mais nada. Só da sombra dela, passando trôpega por cima do seu corpo e procurando o banheiro. “Bons tempos aqueles em que perder a consciência era uma forma de dizer vou ali a já volto”, pensou alisando a cabeça como se fosse uma das ausentes curvas da amada. Ela, que um dia se foi e não voltou nunca mais.
Será que os vermes já tinham violado seu corpo no cemitério Père Lachaise? Que desfilava nua sob a ponte do Velho Sena? Ou passeava sua nova pele nos congestionamentos da Champs-Elysees, onde asiáticos, negros, brancos e os da raça azul cravavam em seu seio a espada invisível do olhar em desejo?
Ela sempre foi uma indagação, no final das contas, pensou. “Perguntar é o motor da minha profissão. Já estou acostumado a ficar sem respostas”, disse conformado, bebendo o café, dando uma tragada no cigarro e colocando a lauda na velha e rangente Remington, batucando as primeiras palavras do dia.
2- NEM MEIA PALAVRA
“ 14 de junho de 1920” foi a única coisa que conseguiu escrever. Logo ele, que até pouco tempo jactava-se por criar, das vastas grutas das palavras, os castelos de ideias mais altos, as pontes das amarguras mais intensas, os muros das mais doloridas lamentações. Agora, nem isso.
As palavras pulavam das mãos da imaginação antes que pudesse acariciá-las nas teclas, fugindo como pássaros de volta à imensidão. “Coisa que eu deveria ter feito quando embarquei no Demerara”, lembrou-se tristemente da viagem. Diferente das palavras, naquela época, ele não sabia voar.
O navio partiu de Lisboa em setembro de 1918. Era para ser o fim de uma tragédia sangrenta para quem teve o coração partido por uma dama em Paris, aplacada por bebedeiras abissais que adormecem a alma. Foi em parte. Mas virou para ele um inferno em alto mar. Ele estava lá para arder nas chamas do que foi aquela barca do inferno: a que trouxe a gripe da Europa para o Brasil.
“Talvez, como o doente número um”, pensava ele, enrubescendo as faces que tinham perdido este dom há muito tempo...
3- CORTINA DE FUMAÇA
Na verdade, desde que saíra de Paris com destino a Lisboa, vinha sentindo aquele mal estar generalizado, que creditava ao fato de ela havê-lo deixado nas condições que deixou: em um hotel de Montmartre, sem uma palavra, sem adeus, sumindo na escuridão do lapso para buscar o poder que tanto desejara, lutara e agora conseguira. O barão. Finalmente ela entraria na corte pela porta da frente.
Acreditava que toda agrura que passava naquela saída de Paris era provocada por saber que dera o melhor para manter aquela chama de amor fumegante. Entregara-se a ela, trocara a vida tediosa dos jornais por aquela coluna na primeira página da Gazetta, que podia ditar ao telefone de onde estivesse, sem ter que aguentar o insuportável editor. O dinheiro dele não vinha dali, mesmo. Vivia de intermediar negócios junto ao governo, alguns com viés cabuloso. Por isso, a conhecera, a acompanhara a Europa, dera-se a ela. Não lhe bastara isso?
Não lhe bastava a dedicação total de um amor incondicional? Ela já não dispunha de tudo que uma mulher precisava? Já não tinha uma educação primorosa, dominava quatro ou cinco línguas, conhecia as artes desde os primórdios rupestres até os movimentos mais revolucionárias... Quantas não se bastariam apenas com aquelas mãos talhadas para dar vida as pedras e as tintas; com a leveza dos beija-flores quando dançava, com os olhos azuis bem encaixados em um rosto de geometria perfeita, destes agraciados pelos deuses?
Talvez o mal-estar que sentia naquela Lisboa chuvosa fosse por ausência dos frêmitos daqueles seios curvilíneos, febris, adocicados, jovens como pêssegos aveludados e firme como convicções. "Suas convicções..." começou a dizer no exato momento em a fogo do palito de fosforo para um novo cigarro, acendeu a luz de um detalhe daquela última noite. Do absinto, do vinho, da champanhe, dos discursos, da briga, da droga... Sim, a droga! Escapara com vida do navio Demerara por causa da droga que usava no convés como cortina de fumaça para ocultar suas dores! Só isso explicaria ter sobrevivido a tudo. Inclusive a gripe, que como uma lúgubre dançarina espanhola, tirava seus pares para a dança da morte, com aquela coreografia horripilante do martírio sufocando velhos, jovens e crianças.
4- DE CORPO E ALMA
Não sabia ao certo quanto tempo a doença ficava incubada. Mas lembra-se que já dentro do navio de volta ao Brasil, primeiro apareceu a náusea, como se todos os órgãos internos, de repente, entrassem em convulsão e atividade, feito um exército se armando para enfrentar um feroz batalhão de invasores. Depois veio a maldita dor de cabeça acompanhada pela febre, que fazia com que suasse como se estivesse em chamas e tremesse feito um peixe tentando respirar fora d’água.
Por fim, a falta de ar tomava conta de tudo, como alguém que se afogasse no seco, com os pulmões atolados num poço imundo de sangue e catarro. Dois ou três dias depois dos primeiros sintomas, o pobre e sofrido corpo ia a óbito. Manchas azuladas nos rostos e nos pés, devido à falta de oxigenação, coloriam de tétricos os pobres miseráveis. No seu caso, porém, os pulmões resistiram. Crê agora que, pelo fato de o órgão já estar incrustado pela gosma da droga que fumava, o vírus não tenha encontrado espaço suficiente para proliferar e lhe abocanhar o pouco que lhe restava de alma. Mas fato é que o coração suportou. Afinal, naqueles dias, tudo que pulsava dentro dele era um monolítico bloco de pedra.
Nem viu quando o navio chegou no Recife. Tampouco pode notar que o serviço portuário retirara os corpos de duas passageiras, mortas ao longo da viagem. Uma delas, a jovem que vira no convés e com quem trocara poucas palavras. Dezenas de outros contaminados desceriam ainda em Salvador e Rio de Janeiro, antes que o transatlântico da Morte rumasse para Buenos Aires, com toda tripulação adoentada.
Ainda combalido, desceu na capital federal, foi ao jornal, visitou uns amigos, e acabou por enfurnar-se em Botafogo para tratar de suas dores. As do corpo e da alma. Mas principalmente para pôr as ideias em ordem, coisa que não era muito a especialidade dele.
5- ENCONTRO DE CONTRÁRIOS
Mas por que se lembrava daquelas coisas ocorridas há anos, antes da epidemia chegar, trazendo aquele rememorar do horror? A lauda a sua frente marcava 14 de junho de 1920, e era aí que ele, pensava, deveria focar. Ou será que - desde que aprendera o caminho do dinheiro, intermediando e agindo no comércio internacional como um lacaio muito caro das negociatas do Barão e membros do governo - dera-se agora ao luxo de abdicar de tão honrosa façanha: escrever aos pobres mortais, sedentos por garrafais crimes? Não era, pois, para isso, que julgava ter vindo ao mundo? "Mil novecentos e vinte é longe demais para quem perdeu o rumo em 16", pensou ele. E voltou suas lembranças para quando a viu pela primeira vez.
O navio saiu do cais do Rio de Janeiro em direção a Marselha, de onde o destino dele era seguir para Paris e o dela ir a um encontro em Zurique. Até o momento em que a poesia do encanto dela tropeça com o niilismo corpóreo dele, que ao vê-la, esqueceu filosofias e entendimentos e pulsou e desejou e latejou como há muito não conseguia. Mas era visível e claro que se tratava de um encontro de contrários.
Ela tinha os lábios carnudos, os olhos esfumaçados e vestia-se com um casaco cinza chumbo, solto, com gola de pele. Uma clara e incomparável assinatura do estilista Paul Poiret adornava todo seu corpo. Trazia ainda um chapéu na cabeça, que, apesar da sombra que fazia sobre o rosto, não impedia os olhos azuis de brilharem. Quanto a ele, tinha lá seus atributos, mas se vestia de forma que era um retrato fiel do niilismo mais enraizado. Aquele, influenciado pelo filósofo alemão Friedrich Heinrich Jacobi, cujo exemplar de 1799 guardava como relíquia, na casa de Botafogo.
Porém, toda realeza dela desmanchou-se como um castelo de areia quando começou a xingar o barman por não atender seu pedido. Primeiro em francês. Depois em alemão. Em seguida inglês, espanhol, grego... Por fim acabou em ordinário português. “E minha bebida, fi duma ronca e fuça?”.
6 - NA BAGAGEM, NIÓBIO
O barman pediu perdão em todas as línguas. Por fim, resmungou “Ko le mu nitori o ji awọn ẹmi èṣu ji!”, algo como “ela não pode beber porque acorda os demônios!”, em iorubá. Ele riu e respondeu “Ni isimi idaniloju: loni o le ṣe iranṣẹ rẹ nitori Mo wa nibi lati dojuko wọn”, ou, em português, “fique tranquilo: hoje pode servi-la pois estou aqui para enfrentá-los”. E gargalhou gostosamente, mostrando seus marfins bem polidos e tratados e a alma- ao menos naquele momento – serena.
O barman também sorriu. A bebida veio. Ele então, dirigindo-se a ela, brincou: “Nos mares do sul, convém conhecer alguma língua da matriz africana, senhorita”. E juntou o paletó e o chapéu para sair, imaginando que ela era apenas uma estrangeira, destas com a língua treinada só para exigir drinks e ofender gentios. “Fique”, ela falou com aqueles olhos azuis de um céu paradisíaco. Desgraçadamente, ele ficou.
Foi então que, em uma solitária noite fria, num bar de transatlântico vazio e mar trêmulo, suas vidas sem entrelaçaram. Em meio a 1ª guerra mundial, quando ele se vestia com botas, uma calça de sarja, camisa branca e um paletó cáqui, e ela ainda flertava com a Belle Époque. O Brasil ainda não entrara na guerra e o pacto entre as nações em conflito de poupar os navios de passageiros ainda vigia. Podiam conversar tranquilos.
Nas apresentações, ele disse-lhe apenas que era jornalista, morava em Botafogo e tinha sido educado por religiosos. Não pudera dizer a verdade sobre a viagem a Paris. “Negócios”, disse simplesmente, omitindo que viajava levando amostras para uma negociata com contrabando de minério. Mais precisamente, nióbio.
7- OVOS DE DELÍRIOS
Não poderia ser diferente. Como dizer a ela que estava metido no contrabando de um metal, descoberto em 1801 pelo químico inglês Charles Hatchett – que fornecera importantes informações a membros da família real sobre o nióbio, agora, utilizado na real marinha mercante inglesa, para vedar submarinos e navios?
Como dizer que a ainda não havia reserva oficializada sobre o metal, mas, que os associados do Barão já exploravam o produto e estavam começando a contrabandeá-lo para a Europa, oficialmente como ferro, já em 1916? “Negócios”. pensou novamente. Só poderia dizer que eram negócios...
Ela, por sua vez, durante a conversa, dissera que iria para Zurique, mais precisamente ao Cabaret Voltaire, ponto de encontro de artistas e intelectuais, que discutiam uma nova postura frente a arte. Fora educada no Brasil e em Paris graças aos descolamentos da mãe, que, como preceptora, cuidava dos interesses do que restou de uma rica família ligada ao império, no tocante a educação e cultura dos membros. As mesmas artes que aprenderam as crianças reais, ela também aprendera. Poderia dizer que estava pronta até para se tornar rainha, mas não era dada a compartilhar estas convicções.
Mas além de viver e ser criada entre as princesas, obtendo conhecimento e sofisticação, a casa real lhe proporcionava estas viagens, a título de pesquisa e conhecimentos. Quando ela disse que tudo aquilo era uma droga, descobriram rapidamente afinidades, passando o resto da noite falando sobre arte e poesia, bebendo e fumando até que o sol nasceu iluminando os corpos nus, com raios desnudando suas intimidades pela luz que incandescia a cabine.
O encontro entre os dois foi tão intenso que ele mudou seu agendamento para acompanhá-la. A carga para Paris já tinha destino certo. Ele seria contatado no hotel somente 15 dias depois, com o resultado das análises e o pedido da quantidade. E então partiram rumo a rua Spiegelgasse1, bairro de Niederdof, Zurique, onde em meio a guerra, discutia-se que tipo de arte deveria aflorar naquele tempo sombrio. Era como se o caos, recebesse ondem e mandassem para lá os dois, como ovos de delírios para a chocadeira de ilusões.
8-MÁRMORE BRUTO
O vinho feito de folhas de coca, criado pelo médico Ângelo Mariani, em 1863, tinha grande prestígio na Europa durante aqueles tempos. Também era usual o ópio e a cocaína, que abundavam livremente em meio a guerra. Mas o jornalista e a revolucionária socialite usavam mesmo era uma mescla de canabis rastfariana da Jamaica, que ele misturava com nacos de peyote - este último, presente de uma dançarina indígena da Igreja Nativa Americana. Ela adorava esfumaçar o ambiente como o cachimbo de um velho pai de santo, entoando mizanfios para acessar entidades espirituais.
Defronte ao Cabaret de Zurique, espremido entre ruelas cobertas por negros paralelepípedos, tragavam grossas baforadas, adocicando, em seguida, a boca com o perfumado absinto e o louco vinho Mariani. Obscenos beijos aqueciam a alma dos dois, que rodopiavam em meio a discursos da intelligentsia. A proposta que ela defendia era a de romper com paradigmas, massacrar os parâmetros estéticos, “quebrar os grilhões da arte que aprisionavam os pés e impediam os artistas de voar”, como ela gritava ferozmente.
Juntava os dedos como quem empunhasse armas e efetuava disparos imaginários em todas as direções. Boquiabertos ante sua beleza e eloquência, os frequentadores do estabelecimento se extasiavam. Estavam lá pintores alemães, poetas romenos, desertores, dançarinos, todos agindo como guerrilheiros ante a carnificina daqueles tempos sombrios. Era preciso assassinar a arte para que ela renascesse. Aquele desejo dela pela volta da arte livre e inocente o fazia imaginar um bebê, verbalizando o primeiro “dadá gugu” da vida. E pode-se dizer que foi ali, naquela noite, que o dadaísmo nasceu. Arrancado a fórceps, num tempo onde nem os nascimentos seguiam mais a ordem natural das coisas.
Mas nem tudo fora êxtase, arrebatamento e felicidade naquela noite. Na embriaguez da lascívia, ela dançou nua sua voluptuosidade febril, despertando o desejo no coração dos homens e empedrando a alma dele, como um mármore bruto, tristemente sem mãos e ferramentas para torneá-lo.
9– BOXEUR ENCURRALADO
É preciso que um homem morra várias vezes para aprender a voar livre no céu do entendimento. Ter nascido e jogado na roda, adotado por freiras e educado por padres jesuítas não ajudava ele em nada. Claro que rompera com tudo. É certo que considerava as religiões formas de extorsões da alma. E nem duvide de que ele faria qualquer coisa para afrontar os deuses, inclusive cobri-la de beijos ali, no meio da extasiada turba. Mas, como um boxeur encurralado, encostou-se na parede para descansar a cabeça um momento, enquanto fazia uma análise sobre a mulher desnuda que o provocava à frente, diante dos júbilos de todos os homens, fuzilados que eram pelo olhar de reprovação vindo das mulheres, que exigiam silêncio. Feministas poetisas, pintoras, escritoras e até da baronesa Elsa von Freytag-Loringhove, que viria a saber depois, fora quem a convidara.
É preciso que se diga: a nudez dela, dentro do conceito dadaísta, tinha uma razão de ser, afinal, ela dançava! E a proposta de revolução cultural era justamente essa: a de desnudar toda arte - e sua dança era uma arte! - para que os conceitos antigos de dança fossem cobertos pela manta do esquecimento, e só a pele de seu aveludado corpo nu fosse a túnica invisível do novo movimento cultural.
Tal pensamento até o convenceria, caso aquela explicação ficasse restrita ao projeto da arte em questão. Mas adensou em seu cérebro a confirmação de que ela se transformava ao fazer aquela mistura diabólica de absinto, vinho Mariani, Canabis e peyote. No final das contas, no ovo daquele delírio, ela chocava uma Oxyuranus microlepidotus, capaz de matar todos que a circunvizinhavam, tão logo escapasse da parede que a aprisionava.
Sim, naquele momento ele imaginou que ela se livrara da jaula da casca e com o veneno do ofídio mais mortal do mundo, rastejava-se para cima dele. “Não demorará a hora em que irá querer que a divida com os demais”, pensou, ainda sem saber que, de fato, isso aconteceria muito em breve, na louca temporada da estadia em Paris.
10 –SOB A LUZ DA LUA
Ele era um daqueles homens parcimoniosos em questões de amor. Fora arrebatado poucas vezes e sempre de forma recatada, como se o tempo o preservasse para futuros desencantos amorosos. Não que o desejo pelo sexo oposto não despertasse nele fomes insaciáveis. Mas agia feito um predador contido, daqueles que esperam a frágil gazela do amor curvar-se na beira do rio para servir-se d’água. Sim, no deserto de seu coração, não havia oásis suficiente para aplacar voluptuosas fomes e deleitosas sedes. Até que apareceu ela.
O niilismo que permeava sua vida, onde desprezava deuses, tendências políticas e os enfadonhos jogos do amor, de repente, foi sucumbido por aquela avalanche de vida provinda dela. Era como se o telhado de suas filosofias ruísse, mostrando a fragilidade que sustentava o recôndito de seus silêncios, sendo agora preciso argumentar, justificar, declarar-se, poemar-se.
Ela abrira aquele desejo contido nele e agora, nada mais ele era do que um homem comum, destes capazes de arrancar e comer o coração de outro homem, caso ousasse envolver-se com ela. O ciúme apossara-se dele de forma inquestionável, mas ela não parecia disposta a quedar-se pelas necrófilas vestes com que ele vem embrulhado.
Foi por este motivo, o ciúme, que se permitiu finalmente dobrar os braços sobre uma solitária mesa e, ali, desmoronar um amontoado de lamentos, lavados pela cachoeira atípica que escorria de seus olhos. Não queria mais ver aquilo, enquanto ela dançava sorridente sob a luz da lua que iluminava a febril noite do beco.
11- RESTO DE LATRINA
Chorar era a comprovação cabal de que ele fracassara em seu intuito de passar incólume ao exercício do amor. Ele comprometia seus enunciados niilistas mais simples, chorando feito um paspalhão, num Cabaret Suíço, onde sementes culturais eram plantadas num mundo em guerra e onde projeto de futuro no coração dos homens era torcer para chegar ao amanhã com olhos abertos. Limpou-os, concluindo que, literalmente, dera com os burros n’água.
Não se chora em vão. Então, também embriagado, começou a vociferar cânticos lúgubres, tentando pôr fim àquela papagaiada toda. Pôs-se a declamar em francês com a voz raivosa e febril: “ Vouloir tuer le développement de l'art au fil du temps, c'est comme casser les mains de l'artiste pour montrer son talent dans la sculpture du marbre”,algo como “Querer matar o desenvolvimento da arte, ao longo do tempo, é como quebrar as mãos do artista para mostrar seu talento na escultura em mármore”.
O cabaré caiu.
E ele foi mais longe. Disse que a Vênus de Millo - que ele amava - era a prova mais clássica que poderia ilustrar o imbróglio. Sem as mãos, todos os gestos eram possíveis à imaginação, à escultura e à deusa. Aquela ilustre estátua sem braços era recriada em sua imaginação como a de uma deusa ornada em brilhantes, segurando com uma das mãos uma maçã e, com os dedos da outra, as vestes. Foi o que disse para a turba dadaísta, que o ignorou como um mictório masculino sujo e malcheiroso, jogado nos restos de uma construção.
12-NO TAPETE DA HISTÓRIA
Se havia uma arte em que lhe sobrava mestria era a de argumentar, usando as técnicas de Sócrates, as estratégias de Schopenhauer, os tratados de Voltaire. Este último, cujo nome fora agraciado pelos proprietários daquele cabaré, foi utilizado como mais uma arma em sua luta para levar adiante o enfrentamento àquelas ideias. Não que ele fosse totalmente contra aquela forma de embasar o movimento. Mas o embate, por si só, já dava a ele a perspectiva da vitória. Queria-os cegos diante da nudez dela.
E foi então que ele desembainhou François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire, proferindo o Tratado da Intolerância , mais precisamente o capítulo VI que pergunta se a intolerância pode ser de direito natural e de direito humano. Conclui que o direito da intolerância é absurdo e bárbaro, “é o direito dos tigres”, afirmava Voltaire, sendo bem mais horrível também porque os tigres dilaceram suas presas para comer, enquanto nós nos exterminamos por causa de alguns parágrafos".
Um ou outro parou para ouvir aquele ramalhete de ideias, mas o fato era que todas aquelas flores estavam mortas e malcheirosas, assim como seus autores. Diante disso, foi-se meio cambaleante, esgueirando o Cabaret, como se procurasse a saída daquele encontro com o inacessível amor, percebendo somente depois que ela o seguia, entre embaraçada e atônita.
A noite já caía em profundos sonhos, quando os dadaístas, reproduzindo os cânticos novos de suas propostas, enxotavam todo conhecimento das artes produzidas até aquele momento para debaixo do tapete da história. Sabê-la a seu lado novamente, coberta por sedas, algodões e joias, tinha um sabor de vitória. Seus dentes perfeitos quase se mostravam ante o silente da boca, mas conteve o riso. Paris era longe e ousavam ainda os primeiros passos.
13 – CÂNTICOS DOS CÉUS
Para que servia o nióbio que levara, ele acabou por descobrir em setembro de 1916, quando o mundo via pela primeira vez um tanque de guerra ser utilizado em uma frente de batalha na França. Foi também naquela época que, à luz da compreensão, mostrou que a treva das guerra não poupava nada: a cidade luz – embora pouco atingida por seus inimigos – andava agora às escura para evitar ataques alemães, os museus estavam fechados para a proteção de suas preciosidades e a alegria já não desfilava pelos cafés, agora abarrotados de preocupações e silêncio.
Queria ir até Montmartre, tomar algum Bordeaux enquanto flanava na antiga Place Ravignan – posteriormente Place Émile Gardeau - onde ficava o prédio Le Bateau-Lavoir, uma antiga fábrica de piano, que depois dividiu-se em salas de ofícios onde artistas franceses e de várias partes do mundo misturavam entalhes, cores, poesias, e esperanças de um futuro melhor. Gente como Picasso e Apollinaire moraram por lá. Não se dignou a subir suas íngremes escadarias.
A torre Eiffel também estava lá. Montparnasse crescia. Vênus de Milo, trancafiada, escondia suas mãos – que se ainda existissem naqueles tempos, por certo, encobririam os olhos tamanha a vergonha e tristeza que a cidade agora provocava. O mesmo deveria acontecer com Monalisa, que naquela Paris de tempos de guerra, em 1916, escondida pelas autoridades, não tinha mais qualquer motivo para ostentar aquele sorriso enigmático, tão belamente pintado por da Vinci.
Depois das negociações com os representantes britânicos, mandou uma mensagem ao Barão por Código Morse sobre o nióbio, lhe restou procurar sua amada que o aguardava em um hotel em Sant Michel. Não sem antes passar pela livraria Delamain, desde 1906 localizada na 155 da Rue St Honore - perto da Rue de Rivoli - depois de ter sido inaugurada no século XVIII sob os arcos da Comedie Française. Sem contar também a passagem, por fim, a igreja de Notre Dame, não por saudades de crenças ou rezas, mas porque o órgão continuava lá, magnificamente entoando aos sentidos os cânticos dos céus.
14- DE TÁXI AO FRONT
A capacidade dela de amar intensamente, partilhando volúpias e prazeres como um sublime gorjeio de pássara liberta – destas, a quem é dado o poder de dispor das convenientes chaves das gaiolas sociais – fazia com que ele ficasse indefeso em suas mãos, como um ouvinte cego, a quem só era dado o direito de extasiar-se. O murmurar lascivo de suas promessas e amores, misturando línguas e interjeições, poesias e arfares, fazia com que as noites em Paris passassem como orgasmos interrompidos apenas por doces espasmos.
Mas chega uma hora em que o amor sossega, como um guerreiro combalido a quem só resta descansar após árdua batalha. Não para ela, sempre com disposições juvenis, arrebatada pelo novo, desejando o próximo passo, a próxima carta, sempre vorazmente em busca da nova página.
Nua, estirada sobre a cama, ele pensava que ali estava uma modelo para ser eternizada em mármore por um destes escultores que abarrotavam os bares e cafés de Paris a procura do sucesso, destinado a bem poucos. E então aqueles olhos azuis fixavam o corpo dele e, em rápidas pinceladas, dava a luz ao papel canson com a beleza das aquarelas, mostrando que, definitivamente, ali, a artista era ela.
Que importava que naquele exato momento a guerra explodia há alguns quilômetros dali, com a besta da gripe espanhola sendo partilhada entre soldados amigos e inimigos, como uma puta apocalíptica dividida entre chumbos e baionetas? Menos ainda importava que na cidade onde fluía os acontecimentos mais importantes da humanidade, agora quietasse sem o alarido dos táxis, empenhados em encaminhar tristes soldados ao front...
15 - MORRER É FÁCIL
Paris era um desfilar de mulheres. Com os homens em direção ao front, elas foram ocupando as poucos os cargos, as ruas, os bares, os elevadores. Nos ônibus, táxis, metrôs, agora reinavam somente elas, onde até pouco tempo só havia homens afedorados. Olhando-as, como ele fazia naquelas manhãs, não dava para saber que mistérios continham aqueles rostos que desfilavam um misto de desencanto e tristes ausências pelas ruas. Mas o triste e o sofrimento não têm o poder de encobrir o belo.
E o desabrochar dos dias, pegava-os em choque entre as marcas nos rostos matinais e a intensidade da guerra e sua proximidade. Tanto que, algum tempo depois, ela atenderia o convite de uma amiga de socialite ligada à família real para passar uma temporada na villa que possuía em Cote d'Azur. Um chofer a buscaria. Ele, por sua vez, tratou de embarcar de volta, com suas tramoias bem sucedidas forrando as malas.
"Não era possível ausentar-se por tanto tempo do Brasil", pensou lembrando-se que as contas eram pagas pelos bolsos - ainda que fartos - do barão. Os tempos eram bicudos como aves esfomeadas, embora gente com influências como ele, tivessem uma espécie de proteção em suas carcaças. Mas sua estadia não demoraria muito no Brasil, uma vez que o país entrara na guerra após os alemães afundarem o navio Paraná, e agora o barão lhe oferecera outro negócio para contrabandear: remédios. Mandava matéria prima e trazia remédios. Para ser mais exato, aspirinas.
A aspirina fora uma inovação e era vendida em tabletes já em 1910. O medicamento chegou ao Brasil em 1912 e se tornou disponível sem precisar de receita médica. Virou febre. Com a guerra, contrabandistas começaram a fabricar o produto e ele estava no meio das negociações. Um ano depois, seria consumida como água, ainda que ineficaz no combate a gripe. "Morrer é fácil", pensou quando jogava no mercado uma mistureba ao gosto popular, que não apenas não curava, como ainda por cima tinha capacidade de matar. Dançarina era o nome do composto, que fazia alusão à como a doença era chamada pela boca do vulgo: Dançarina Espanhola. Que venham as castanholas!
16 - RESFRIADINHO
É preciso que se diga: não sabia que consequência traria, nem que haveria o uso indiscriminado do produto no mercado. Mas fato é que a corporação criminosa crescia assim como suas culpas e seus bolsos. O gorducho barão já o tinha cooptado totalmente para negociatas, dando espaço para outras penas. Naquele ano, a velha Remington ficaria para trás.
As mentiras sobre o vírus vinham através dos mares e eram tratadas como gripezinha ou resfriadinho, como diziam as autoridades ao serem inqueridas sobre a pandemia. Por questão de estratégia, os exércitos não divulgavam nem o número de mortes nem as causas, durante a guerra.
Assim também agiam os governos. A ordem era ignorar o assunto, como se a morte que abraçava a alma de milhares, fosse uma miragem. Mas os hospitais entupidos, as autoridades médicas boquiabertas e o povo perplexo iam aos poucos desmentindo os dados oficiais.
Houve um tempo em que seres tombavam com falta de ar, ditando aquele baticum do ofegar do desespero, o ritmo mais conhecido da morte. Em casas e portas de hospitais, a vida desmilinguia assim. Houve um tempo em que o andar da humanidade deparou-se com as pedras dos impedimentos e ele teve que optar entre sentar-se à sombra ou descobrir por qual estrada seguir.
17- NA CASA DE BOTAFOGO
Seguir para onde? Paris era proibitiva. Decidiu ir para Botafogo. Sentava-se à sombra, nas pedras do jardim da casa, enquanto as manhãs o pegava assim, devorando as páginas da Gazetta. Vibrou quando leu o deputado Sólon de Lucena dizer a respeito da morte durante a pandemia: "Dir-se-ia que a morte, não satisfeita com a larga messe de vidas ceifadas nos campos de batalha europeus, quis, na sua ânsia de domínio, estender até nós os seus tentáculos". O senador Jeronymo Monteiro, por sua vez, não ficava atrás e disparava: "Esse flagelo zomba da fortaleza física do homem e deixa como rastro um número extraordinário de mortos e um exército de combalidos entregues à fraqueza, ao depauperamento, à quase invalidez".
O governo, no começo, só negara a gravidade da doença mas, aos poucos, foi proibindo aglomerações, fechando teatros e cinemas, proibindo as pessoas de irem aos cemitérios para evitar aglomerações e também para que o povo não visse de perto os corpos insepultos. As aulas estavam suspensas, o comercio fechara muitas portas. Também, morria-se ao léu. A ponto de o governo, sem ter como enterrar os mortos, dar-se ao costume de laçar qualquer cidadão para que executasse esta tarefa, que era de sua única competência.
Os jornais eram pródigos ao mostrar denúncias neste sentido. E mostravam também os anúncios de remédios milagrosos, como a Dançarina, entre outros menos afamados. Eram água tônica de quinino, purgantes, balas a base de erva. Só não falavam do pango, como a maconha era tratada naquela época, como produto que fizesse frente a doença. Ele, no entanto, continuava a fumar. Ninguém falava que aquilo ajudava a espantar a gripe. "Que espantasse a tristeza, para mim já está bom", dizia para si próprio enquanto continha no pulmão a fumaça das tragadas.
Um belo dia, a pança do barão encostou no portão de sua casa, assim, de repente. Vinha trazendo ela a tiracolo. Como se prestasse um favor ao velho amigo, trazendo-a até sua residência, já que ela o procurara na Gazetta e não o encontrara. Foram até esfuziantes no encontro. Mas ele percebeu que, entre eles, haviam demonstrações de interesse de um para com o outro. O tempo viria a mostrar que ele estava certo em suas análises.
18 - DE VENTO EM POPA
Acordar, ler a Gazetta, tomar café, fumar um cigarro e sonhar que as coisas melhorariam dentro de poucos dias. Assim era a vida dele, que às vezes, arriscava um passeio pelas cercanias. Um dos seus vizinhos era a família Guinle, que tinha um palacete encantador, com palmeiras imperiais vistosas em frente à casa. Dali, ia até a rua São Clemente, de onde podia ver diariamente o Pão de Açúcar ao longe, ostentando toda aquela majestade de pedra bruta e, às vezes, névoa.
A casa de Botafogo era o refúgio que recebera como herança do bispo que o criara, educara e alimentara juntamente com as freiras. Tinha morrido anos antes e deixara sua biblioteca abarrotada de informações em mapas, relíquias, livros dos mais diversos, tudo para ele. Anos e anos, vivera naquele local, escondido como um pecado a quem não era dado o direito de revelar-se. Tudo que sabia sobre seu passado era de que fora entregue na roda dos enjeitados e que as freiras da Santa Casa o criaram. O bispo veio depois e o tratava como filho.
A mãe poderia ter deixado algumas palavras sobre o rebento, mas descobriu com o passar dos anos que ela não deixara nada escrito. E, no fundo, ele nem precisava daquilo. Fora educado com esmero. Era como se viesse ao mundo para ser filho bastardo do conhecimento, apaixonado que era por novas línguas, filosofias, ciências, histórias, geografia. Tudo lhe interessava. Lembrou-se que certa vez, o bispo com muita severidade, lhe dissera: “Com Deus na alma, livros na estante e discernimento no coração, a felicidades não tem como escapar do homem”, disse ele.
Nunca levou a frase totalmente a sério, talvez por isso a felicidade lhe escapara. Afinal, tirar deus da alma fora a primeira coisa que fez, tão logo teve discernimento sobre as religiões. “Tirar ela do coração é mais difícil que matar deuses”, pensou. E então veio o convite do barão para a festa, em plena pandemia, quando o vírus da gripe espanhola dançava de vento em popa na cidade do Rio de Janeiro.
19 - FACHO DE TREVAS
Enquanto escolhia um fraque preto clássico, com uma camisa branca plissada e engomada, com colarinho descartável, veio-lhe a vontade de usar aquele paletó summer que trouxera de Paris e que era a última tendência europeia. Depois, pensou melhor e desistiu do branco. “Nesta época, a cor era só para as enfermeiras”, pensou. O negro era a cor da morte e era ela que estava nas ruas. Assim, se vestiria. Uma gravata borboleta e a cartola finalizavam o conjunto da noite, acompanhados por reluzentes sapatos pretos de verniz.
“Não há tristeza que possa/ Suportar tanta alegria. / Quem não morreu da espanhola,/ Quem dela pôde escapar/ Não dá mais tratos à bola/ Toca a rir, toca a brincar...”, cantarolou a marchinha que seria sucesso no carnaval daquele ano. Mas música mesmo foi o que menos ele ouviu naquele baile. Só se falava de política. Um aglomerado de lamentações.
Na saúde, as críticas vinham de todos os lados, já que os hospitais e repartições funcionavam de forma precária, com gente despreparada e com total falta de material. Na verdade, a assistência pública era apenas figurativa em todos os sentidos. As escolas mandaram os alunos para casa, bondes trafegavam vazios, alfaiatarias, quitandas, lojas de tecido, barbearias, tudo baixou as portas. Abertas, somente as farmácias, onde os fregueses disputam a tapa pílulas e tônicos que prometiam curas milagrosas, aliás, como seu tônico Dançarina. As críticas vinham de todos os lados.
A nata da política brasileira estava naquele baile organizado pelo barão. Mas os figurões, assim como a arraia-miúda das ruas, não sabiam mais o que fazer diante de tantos problemas. Ele propôs num grupo que as aulas fossem suspensas e todos os alunos passassem de ano. Foi aplaudido e sugeriram até mesmo que fosse indicado para o ministério da Educação. Como não tinha títulos de mestre nem doutor no curriculum - embora tenha frequentado como ouvinte a Sorbonne – declinou imediatamente da proposta. Mas não permaneceu no grupo para dar prosseguimento a sua tese. Viu-a, de repente, adentrar o recinto pelas mãos do barão, e um facho de trevas caiu vertiginosamente sobre sua alma, ainda que a luz dela fosse suficiente para iluminar, sozinha, toda cidade.
20 – SOBRE ELA
Luz sublime e vertiginosa que adensa corpos em estado de êxtase. Perfume celeste que exala o embriagar inebriante dos anjos. Quintessência dos eflúvios de primaveris manhãs. Ânsia de boca que morde a carne do desejo no canto trêmulo dos lábios. Deusa de uma raça desaparecida, pergaminho indecifrável de uma língua morta, completude dos ciclos do universo de volta, após eons e eons, às mãos do desconhecido criador.
Qualquer coisa que falasse dela não seria capaz de traduzir a intensidade dos sentimentos, a força como ele a via, o desejo que ele sentia por ela. Aquele fogo ia além das palavras criadas pelos homens. Era inexplicável como certos símbolos desenterrados. E toda essa beleza, essa potência, essa força estavam ali, a sua frente, entre constrangida pelas mãos do barão que enlaçava sua cintura, e extasiada por ver que ele, mais uma vez, sentira o golpe.
Ah, por certo deveria existir algo naquela mulher, alguma substância química que ela aspergia em indivíduos como ele, borrifado durante aqueles encontros. Saíram a bailar sem que frases fossem proferidas. Só o silêncio era capaz de entender aquela linguagem, mas em bailes como aquele, silêncio era um despautério para as emoções que queriam extravasar.
Bailaram e bailaram. Até que o barão o tirou daquele paraíso, chamando-os para um desjejum em sua residência. Bailaram até que embriagados e sonolentos, estirados num sofá de pele de leopardo na sala que dava de frente para a Bahia da Guanabara, sentiram a presença do barão, já em afagos libidinosos para com ela, avolumando seus desejos como se fora possível partilhar tão valorosa e rica pérola com porcos como os de sua espécie.
21-A NOTÍCIA
Estupefato, percebeu que ela quase se entregava. Sim, seus olhos emitiam luzes de que o semáforo não estava totalmente fechado para ele, de que ela não se importava de dividir-se entre os dois, de que a lascívia que a banhava tinha seiva suficiente para ambos. Um soco bem encaixado, no queixo, fez o rosto do barão bater na pança, e estirar-se nocauteado no chão.
A partir daí, tudo foi se encaixando, como um tétrico quebra cabeça e ele já não se lembrava mais como dispor as peças. Soube depois que ela e o barão já estavam de cacho há um bom tempo. Tinham, inclusive, ido para Paris comemorar o enlace. Soube por fim, que ela contraíra lá, na Cidade Luz, a gripe espanhola.
Ele, ela, o barão.
O trio, cujos nomes eram desimportantes para serem arrolados aos fatos, a partir daquele dia, seria insulado para sempre. Sumia no turbilhão do esquecimento aquela última vez que estivera com ela em Paris, no começo de 1918. Na noite no hotel de Montmartre, onde ela disse que ficaria com o barão. Quando se acabaram em vinho, absinto e tragadas de pango. Na véspera do dia em que tomaria o Demerara. Sim. Apagou de sua mente tudo, sim. Até que chegou aquela notícia. Ela morrera.
22- ESQUEÇA PARIS
Foi então que se voltou para a lauda branca-amarelada, tingida apenas pelo negro impresso de uma data: 14 de junho de 1920. Algo revirava e acelerava seu coração, misturando vontades, febres e desejos. Procurava as teclas da velha Remington, certo de que ainda havia tempo para contar tudo aquilo aos seus leitores. Dos crimes, do remédio Dançarina, da descoberta de que a maconha prevenia a gripe, dos amores, dos desejos e das perdições. Mas as mãos fraquejaram.
De repente, aquela misteriosa doença que aparecera naquele ano de 1920 – e que muitos acreditavam ser uma consequência que atingia os que foram contagiados pela gripe espanhola – o acometera. Conhecida como encefalite letárgica - ou doença do sono - ela transformava as pessoas em estátuas vivas, sem que jamais voltassem a movimentar-se. E só então ele percebeu que, como a Vênus de Milo que tanto amava, não tinha mais braços para dedilhar palavras.
“Esqueça Paris”, suspirou ofegante, enquanto o coração extenuado dava seus últimos galopes e, aos poucos, ele era tragado de suas trevas para a celeste luz de um sol, onde ela agora habitava e de onde o chamava.
“Nada importa”, foram suas últimas palavras. Sem ousar, no entanto, arriscar se era para o céu ou o inferno que ela o atraia.
FIM