Gian Diep (cap 1)

Os dias estavam ficando cada vez mais tediosos, as poucas pessoas que observava pareciam ser como livros que ele já tinha lido e relido. já os conhecia, até já brincava de deduzir as próximas ações delas, como fazia sempre com o zelador da igreja que ficava não muito longe da sua janela.

Um homem idoso de pele clara com vários sinais escuros espalhados pelo rosto e braços, com pouco cabelo ao redor da cabeça, magro mas com bastante energia, sempre disposto, e bastante ágil para alguém da sua idade, usava sempre calças social escuras com chinelas havaianas e camisa na grande maioria de eventos realizados pela sua igreja. sempre a tarde sem nenhum padrão de horário, passava assoviando na frente do condomínio de Gian, que já estava o esperando na janela. Atravessava usando a faixa de pedestres da escola que era sempre mantida clara e visível para que os motoristas parassem para a travessia dos alunos. Gian descia e sentava em um dos bancos que ficava no canteiro da avenida, o banco escolhido era sempre o que lhe dava clara visão da frente de toda a igreja, mas que tinha uma lixeira na frente que fazia Gian ficar imperceptível. Ele sentava abria seu livro velho de geografia, destampava a garrafa de água e a colocava do seu lado direito e o guarda chuva no lado esquerdo. esse era seu ritual. a partir daí ele estudava minunciosamente o velho que estava varrendo a área externa da igreja, assoviando hinos que Gian reconhecia por já ter ouvido nos dias em que observava as dezenas de pessoas que frequentava a igreja no seu tempo de atividade. dessa vez tinha algo diferente com o velho zelador, ele não chegava a terminar as melodias como de costume e parecia preocupado com algo. Gian tinha certeza que não era problema de saúde pois o velho já tinha demonstrado seu bom estado físico ao afugentar com rispidez dois moradores de rua que estavam dormindo na marquise da igreja.

Isso despertou a curiosidade de Gian- parece que temos um mistério.

foi a fala de Gian abafada e acompanha de um tipo de riso forçado que não expressava nenhum tipo de graça.

Gian seguiu observando o velho homem que ao tentar passar por cima do monte de folhas que havia juntado, a correia da suas sandalia do pé esquerdo soltou-se do dedão e ele cambaleou apoiando-se na vassoura que serviu de bengala para evitar a queda. Gian previu com exatidão a reação do velho ao se recuperar do susto. -E é o doido é? falaram os dois em sincronia. Gian previu também que ele chutaria as folhas espalhando mais uma vez o que a havia juntado, e que se bateria com as palmas das mãos nas coxas e ombros como se se limpasse batendo algum tipo de poeira. Gian ja conhecia completamente o velho. e se orgulhava disso. era uma sensação de realização. mais um pra sua lista de pessoas que ele conhecia profundamente.

logo após esse pequeno tropeço uma mulher loira de aproximadamente 25 anos alta e magra chegou ao portão da igreja e falou com ele.

-está tudo bem aí?

-Sim sim é só coisa de velho.

- velhas são as suas sandálias Papai.

os dois riram e se abraçaram, com muito carinho o velho lhe deu um cheiro nos cabelos e um sutil beijo na testa.

-como está a mamãe?

-Bem filha, ela esteve preocupada com você ontem,

- preocupada? como assim? por que?

- Ela ligou pra sua casa e seu esposo ficou confuso dizendo que você saiu dizendo que iria nos ver, como você não apareceu ela ligou de novo, e ele cada vez mais grosso disse que você não tinha motivos pra mentir nem esconder pra onde tinha ido. ela ficou uma pilha de nervos achando que poderia ter lhe colocado numa fria.

- Ele não me contou nada disso.

- Filha onde você esteve ontem a noite? com esse toque de recolher, esse vírus por aí, o melhor que fazemos é ficar em casa.

- então faça sua parte papai. fique em casa com a mamãe, você insiste em limpar essa igreja que nem está aberta.

- uma doença a mais, uma a menos, não faz diferença pra alguém como eu.

os dois riram, se abraçaram e se despediram. ela atravessou na faixa da escola e passou pela lixeira perto de Gian. ela usava um short jeans até os joelhos, blusa de mangas compridas rosa florida e sandálias iguais as do pai.

-Onde será que ela esteve? balbuciou Gian fechando seu velho livro e fechando sua garrafa de água. Gian ficou inquieto com a situação. vozes faziam perguntas na sua cabeça e ele mal conseguia se concentrar no velho depois disso. as vozes questionavam Gian como se estivesse num julgamento.

onde ela esteve? porque não respondeu ao seu pai? porquê o marido escondeu isso dela? de onde ela veio agora? as vozes exigiam que Gian respondesse e não aceitavam um não sei como resposta. uma coisa era certa, assim como das outras vezes Gian Diep teria que buscar respostas para saciar as vozes da sua cabeça.

Gian a perseguiu sem ser notado na busca de respostas para as perguntas na sua cabeça, a filha do zelador passou pelo condomínio de Gian, e ao passar ele armou seu guarda-chuva para não ser visto pelo porteiro. ela virou a esquina e Gian não exitou em segui-la, ela atravessou a outra avenida e se dirigiu ao grande supermercado do bairro, Gian sentou num dos bancos do canteiro no meio da avenida e a observou; ela estava parada na frente do supermercado apoiada em um dos carrinhos de compra, Gian destampou sua garrafa de água, abriu seu livro velho de geografia e baixou um pouco a aba da sua boina surrada, pronto agora ele a estuda atento a todos os detalhes que ela mostrasse. não demorou muito até aparecer um rapaz moreno corpulento na sua mesma faixa de idade usando o uniforme branco do supermercado, certamente da área da padaria ou açougue. ele veio até ela e os dois conversaram algo que Gian não percebeu do que se tratava mas depois de algumas risadas e um cochicho ao pé do ouvido se despediram com um rápido e ousado beijo.

ela aguarda o sinal verde para atravessa a avenida de volta e Gian levanta o livro velho para não ser visto, a loira filha do zelador não o percebeu e seguiu andando por um caminho diferente do que fez quando veio. ela continuava pela rua do supermercado em direção ao banco e Gian a seguia de longe mas sem a perder de vista. na esquina ela acenou para algumas das crianças do orfanato que estava brincando no parquinho e continuou seu trajeto. passou mais uma vez pela rua da igreja se esticando pra ver se seu pai ainda estava lá. Gian tinha certeza que não pois sabia que o velho sempre que saia da igreja ia até o posto de combustível na avenida principal, tomava um cafezinho e conversava com os funcionários do posto sobre o fim da quarentena e sobre o futuro das finanças dos times de futebol ja que os jogos estavam proibidos diante da situação de isolamento social. ela continuou andando até a ultima casa da rua uma que ficava nos fundos do restaurante. chegando ela entrou e Gian sentou no banco do canteiro destampou sua garrafa de água e a colocou do seu lado direito, seu guarda-chuva no seu lado esquerdo, abriu seu livro de geografia e observou.

-analisava tudo que se passava dentro da casa, ele via um homem branco ,gordo, barbudo e sem camisa com gestos bruscos e aos gritos com ela, certamente se tratava de uma discussão ou briga de casal e Gian sabia o motivo para tal briga. quando as vozes na sua cabeça começaram a questionar.

-será que ele sabe dela com o cara do supermercado? é por isso que ele está brigando com ela? quanto ele sabe ? será que tem provas? ou fica sugerindo e ela negando com suas mentiras de mulher adultera?

as vozes estavam fazendo Gian perder a paciência ele tira a boina leva o rosto até o livro e solta um grunhido baixo e desesperado, depois disso toma um gole de sua água, as vezes isso ajudava as vozes pararem.dava pra ver pela porta que o homem gordo estava vermelho e aos berros. até que para na sua porta um belo carro preto e desce um dos médicos da clínica que havia na esquina daquela rua. ele chama com palmas da rua e o homem gordo rapidamente se recompõe e vem atender, os homens na porta são bem parecidos tem o mesmo corte de cabelo e a mesma barba expressa, o que fez Gian deduzir que eram irmãos, enquanto se cumprimentavam a loira veio até a porta para ver quem era e o médico sorriu e acenou para ela ela retribuiu ainda abalada com a briga de segundos atrás, rapidamente o médico perguntou -como está sua mãe isabela? - ela olhou para o marido que já a olhava com cara de cachorro bravo e respondeu: - ela está melhor as vezes tem algumas crises mas estamos aprendendo a trata-la adequadamente.

-ela vai ficar bem, e qualquer coisa que acontecer pode me ligar, eu farei o possível pra ajudar.

-obrigada, por tudo.

-não precisa agradecer, você é da família, não é?

ela sorriu e o homem gordo seu marido balançou a cabeça com ar de descontentamento. ela estava vermelha e parecia que estava chorando, percebendo isso o medico a chamou para fora mas ela balançou a cabeça negando e disse que estava de toalha.

-mentira.

falou Gian do outro lado da rua.

enquanto a loira sumia da vista os dois homens conversavam na porta, o medico dizia que o gordo mantivesse a calma que ele não a machucasse de novo porque dessa vez ele poderia ser preso, o homem gordo sério e rabugento argumentava.

-tenho certeza que ela está aprontando.

- mas você não pode da-lhe uma surra e esperar que ela se conserte.

-se consertou da outra vez.

- e você quase foi preso.

- vou dar um jeito de descobrir e se for verdade ela vai se arrepender.

o medico entrava no carro enquanto dizia : -não diga que não avisei.

buzinou e foi embora, o homem gordo encarou Gian por algum tempo e entrou em casa fechando a porta e puxando um tipo de cortina que cortava qualquer tipo de luz que passasse pelo vidro.

- parece que ele me viu.

foi o que disse Gian fechando seu livro e tampando sua garrafa de água. ele foi pra casa e lá não conseguiu ter um só minuto de paz. as vozes na sua cabeça estavam sedentas por respostas. -aquele cara bate nela? mas por que ela não o deixa? e o cara do supermercado, por que não faz nada sobre isso? será que ele sabe? ele deve saber que ela é casada. já passava das vinte e três horas e Gian estava sendo torturado pelas vozes que insistiam que ele fosse buscar respostas. elas falavam cada vez mais alto, e desesperadas dentro da cabeça de Gian. eram tantas vozes que ele á não conseguia distinguir nem interpretar cada uma. ele estava suando frio e com uma sensação claustrofóbica sentado na ponta da mesa. não havia comido nada, nem acendido as luzes do apartamento que estava iluminado somente pelas luzes da rua que entravam pela janela.

desesperado ele bateu com as duas mãos no tampo da mesa e decidiu resolver logo aquilo para poder voltar a ouvir somente o barulho da bombinha e das bolhas do seu aquário e as vezes o som dos dos automóveis passando la fora.

então pegou seu livro, sua garrafa de água e seu guarda-chuva e saiu.

foi em direção a residência do casal, a rua estava deserta, e uma brisa fria se fazia presente, ninguém ousava sair a noite naquela situação de quarentena, Gian era o único que vagava pelo bairro quando avistou vindo em sua direção saindo da rua do restaurante um carro que ele sabia bem a quem pertencia, um uno velho de duas portas cor de vinho e com um ronco que anunciava que estava prestes pifar de vez.

-o zelador. Gian pensou em voz alta

o carro vinha em sua direção e sua reação foi imediata, armou o guarda-chuva na hora que o carro passava do seu lado, mas conseguiu ver que dentro do carro estava o velho zelador e sua filha e o banco de trás abarrotado de coisas que Gian não conseguiu ver o que era.

as vozes agora perturbavam Gian aos gritos que ecoavam e o ensurdeciam. os goles de água ja não ajudavam em nada. as vozes já não falavam num idioma reconhecível eram só gritos e gemidos que faziam Gian até reproduzi-los involuntariamente.

Gian seguiu em direção a casa da loira e sentou no mesmo banco onde esteve sentado logo mais cedo. abriu seu livro destampou sua garrafa de água e colocou do seu lado direito e o guarda-chuva do seu lado esquerdo, as portas da casa estavam abertas e o homem gordo estava arrumando algo que pareciam peças de roupas espalhadas pelo chão da casa. Gian tentava deduzir o que havia acontecido, mas as vozes gemiam num volume altíssimo dentro da sua alma, Gian implorava que parassem para que ele pudesse raciocinar e entender porque o zelador tinha levado sua filha? e as coisas que eles levavam no carro? qual o motivo daquela bagunça dentro da casa? Gian estava nervoso e irritado com sua incapacidade de se concentrar, estava perturbado e furioso a ponto de ter um colapso quando viu uma sombra crescendo na sua frente, Gian piscou os olhos com força a fim de recuperar a consciência e viu na sua frente o homem gordo raivoso e fora de si.

- O que é que você quer aqui cara?

- eu, eu. Gian não conseguia mais pensar em nada que fizesse sentido.

- eu vi você aqui hoje a tarde.

- não, não era eu. foi o melhor que Gian conseguiu responder.

- então é você o amante daquela cachorra? você fica aqui vigiando a nossa casa seu monte de merda.

- n n n não sou eu. Gian gaguejava como nunca havia feito antes.

- filho da puta.

Gian só ouvia agora os gritos dentro da sua cabeça e vozes que cada vez mais se acumulavam como se estivesse dentro de uma sala vazia onde os ecos respondiam com outas palavras. ele olhava para o homem gordo gesticulando bruscamente na sua frente e só ouvias as vozes como se elas viessem dele. um som de uma multidão vindo daquele monte de merda que também estava gritando com Gian coisas que ele não conseguia ouvir.

Luzes e cores piscavam diante dos olhos, um vazio gelado ele sentia desde a garganta até o umbigo, tremores em todo o corpo, respiração ofegante, era como se estivesse num quarto fechado e as vozes o apertassem por todos os lados até que ele fosse totalmente esmagado. em seu estômago havia algo borbulhando e um peso enorme nas suas costas. ja não via claramente o homem gordo na sua frente que ao vê-lo a beira de uma convulsão segurou-o pelos ombros e balançava gritando algo que Gian já não entendia.

então Gian reagiu a essa opressão torturadora, empurrando o homem que tropeçou nas próprias pernas gordas e caiu, Gian confuso e aflito olhava para os lados afim de que alguém o ajudasse. nunca estivera em tamanha agonia. então o homem se levanta aos berros e atinge Gian com um soco que poderia ter quebrado sua mandibula, xingando e gritando ameaças, Gian nessa hora começou a enxerga-lo embaçado, como se estivesse atrás de um vidro molhado.

numa atitude desesperada, Gian pega seu guarda-chuva no banco e acerta a face esquerda do gordo que o agredira. o homem recuou e Gian avançou acertando outro golpe na cara do homem que mais uma vez caia, mas agora de costas no chão. dessa vez o guarda-chuva quebrou e a ponta caiu quicando até o meio da pista. Gian olhou para o guarda-chuva na sua mão e viu o emaranhado de ferro das hastes e o tecido preto que esvoaçava depois de se soltar da ponta que quebrara. então correu e chutou o queijo do gordo que cuspiu um jato de sangue, por um segundo as vozes pararam na cabeça de Gian e ele se deliciou com os poucos segundos de silêncio que foram quebrados com os braços do gordo que se agarravam na calça de Gian puxando-o para baixo numa tentativa do homem de se levantar, Gian voltava a ouvir as malditas vozes num volume tão intenso que um zumbido ensurdecedor agora também se fazia presente dentro de sua cabeça, Giam segurou o gurda-chuva com as duas mãos e fincou na cara do homem gordo. Gian sentiu que a haste central havia perfurado o olho do homem que ja não gritava mais, outra fincada e as mãos soltaram suas pernas, a terceira e ultima fincada foi acompanhada de um tipo de rosnado.

as vozes calaram-se repentinamente, Gian soltou o seu guarda-chuva quebrado. e o silêncio trazia um prazer tamanho que Gian desfrutava como alguém que tinha saudade de tal sensação.

o silêncio era um velho amigo que o abraçava carinhosamente. respirou fundo deliciando-se daquele misto de prazer e satisfação. lenvantou as calças, ajustou o cinto, pegou sua garrafa de água e seu livro de geografia, endireitou a boina velha na cabeça e saiu caminhando pelo canteiro da avenida num êxtase de paz e serenidade.

o caminho de volta pra casa foi como se tivesse voltando de uma longa viajem. olhava com admiração pra cada arvore do canteiro, caminhou deslizando os dedos na porta da igreja, atravessou na faixa de pedestres da escola, cumprimentou o porteiro com um sorridente; boa noite e subiu ao seu apartamento. abriu a porta e entrou num gozo profundo. nada mais o incomodava, jogou uma pitada de ração para os peixinhos, sentou-se na sua poltrona bege e reclinou a cabeça no estofado macio olhando pro teto e ouvindo somente o barulho da bombinha e das bolhas do seu aquário, e as vezes o som dos automóveis passando la fora.

Carlos Ferreira gt
Enviado por Carlos Ferreira gt em 18/07/2020
Código do texto: T7009516
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