'É ASSIM QUE DEVE SER' - CAPÍTULO 19

Today I saw somebody

Who looked just like you

She walked like you do

I thought it was you

As she turned the corner

I called out your name

I felt so ashamed

When it wasn't you, wasn't you,

You are everything and everything is you.

('You are everything' - Diana Ross and Marvin Gaye)

Desço do palco contando as gorjetas. Ganhei hoje o suficiente para pagar a fisioterapeuta do tio e, quem sabe, comprar aquela sapatilha de ponta, dourada, com fitas em cetim? Pois é. Decidi dar a mim mesma uma chance de mudar de vida. Afinal, cheguei aos meus vinte e um anos. Isso deveria ser motivo de alegria e comemoração se as únicas duas pessoas que me amavam de verdade não estivessem fora de circulação.

Minha tia enfeitaria o bolo, lambendo os dedos lambuzados de glacê. Meu tio estaria à minha espera, no portão de nossa casa, sorrindo, quase sem ar, a voz fraca e rouca, por ter enchido dezenas de bolas coloridas que enfeitariam todos os cômodos da casa, principalmente, o terraço onde a boa e velha vitrola tocaria os hits dos anos 60, 70, 80, dando ênfase à sua banda predileta 'ABBA' que, na verdade, era a predileta da tia por quem ele era absolutamente apaixonado e a quem ele jamais contrariava. Não havia um desejo sequer dela que meu tio deixasse de cumprir. Não havia impossível quando o objetivo era de agradá-la. Por vezes, eu me pegava imaginando se era verdadeiramente por amor ou receio já que havia resquícios de ambos os sentimentos em seus olhos tão azuis quanto sorridentes. Ele sofria por dentro e jamais mostrava isso a quem quer que fosse. No entanto, eu o sentia. Meu super mega poder de me colocar no lugar do próximo (mesmo contra a minha vontade) me enchia de tristeza quando eu o abraçava, assim que ambos saiam constrangidos da sala onde eu costumava ensaiar coreografias montadas por meu querido, covarde e desaparecido professor. O canalha que me abandonara por medo de Fernando que, não por acaso, está me observando neste exato minuto enquanto enrolo como um charuto, o montante de gorjetas em cédulas de cem e cinquenta, e as entrego nas mãos honestas e protetoras de Doc.

- Põe na caixinha. - Cochicho no ouvido de Doc, passando para ele a bolada presa por um elástico. - Posso dizer que hoje foi um bom dia. - Declaro, orgulhosa e confiante, cobrindo-me com meu roupão rosa com estampas de borboletas. Ok. Ele não combina muito com as botas em couro, pretas e compridas até os joelhos, no entanto, não tenho tempo para me arrumar e, somente depois, retornar e entregar a grana a Doc antes que meu dinheiro literalmente 'suado' caia em mãos erradas. - Saiu cedo do restaurante? - Pergunto a Fernando que acompanha com os olhos estreitos o caminho que as gorjetas fazem até que Doc suma com elas por trás de uma cortina de miçangas coloridas deixando-nos a sós.

- Sim. - Diz ele, num sussurro, afastando-se de Doc que passara por ele sem sequer lhe dirigir um olhar de comiseração. - O movimento tá fraco. - Continua ele com a voz baixa, enfiando as mãos nos bolsos da calça social. Há raiva e suspeita em seu olhar que se volta para mim com a rapidez de um relâmpago quando deixa escapar palavras carregadas de desdém. - Vc se superou hoje. Estava pensando em mim quando arremessou aquele sutiã lá nos fundos onde os mais tímidos ou babacas ficam?

- Os babacas estão por todos lados aqui, meu bem. - Dou um meio sorriso, medindo-o dos pés à cabeça. Ele ri porque gosta da provocação e eu não entendo porque estou tão abusada conhecendo seu pavio curto para este tipo de comentário. Talvez pela presença de Doc que surge por entre as miçangas tão forte e tão alto que até eu mesma me assusto ao olhar para cima e encarar seu cenho carregado.

- Algum problema aqui? - Inquiri Doc, com sua voz grave e as sobrancelhas arqueadas. - Ele te incomoda?

- De maneira alguma. - Pisco para Doc que se posiciona entre mim e Fernando, tão acuado quanto um pintinho molhado, abandonado pela mamãe. Por dentro estou rindo de sua covardia diante da força física de Doc e, principalmente, da Luz que dele emana. - Estava explicando a Fernando. - Aumento o tom da voz e me inclino um pouco para a direita a fim de que Fernando me veja. - Que eu não irei com ele pra casa porque vc me pediu um favor. - Acabo de inventar essa história, portanto, já aguardava pelo olhar questionador de Doc e sua momentânea paralisia. - Doc? - Eu o desperto com um leve e discreto pisão em seu pé com a ponta de minha bota de mulher-gato e a incerteza dá lugar a outra expressão em seu rosto arredondado: a de conivência. Sua careca reluz sob as lâmpadas embutidas do bar quando ele sorri satisfeito atrás do balcão. - Um copo d'água, por favor. - Peço, sentando-me na banqueta giratória de couro, tamborilando os dedos nervosos numa garrafa vazia de cerveja deixada por algum desses imbecis que há pouco urravam ao me verem sair da farda de policial largada no chão, trajando apenas calcinha e sutiã e o quepe cobrindo parte do meu bumbum. - Vc me entende, não entende? - Fernando abre a boca e antes mesmo de me responder que não, Doc bate com o fundo do copo no balcão com tanta força que chego a fechar, por segundos, os olhos, aguardando uma pequena explosão de partículas tão brilhantes quanto o olhar de Fernando que me fuzila. - Ele é meu amigo, Fernando. - Digo num tom conciliador, bebendo da água numa só golada. Vendo-o irritado, inclino-me sobre ele, puxando-o, carinhosamente, pela gola. - Não posso deixar de ajudar. Devo muito a ele. - Cochicho ao seu ouvido. - Foi ele quem me protegeu daquele cara que tentou pôr as mãos imundas nos meus peitos! Lembra? - Enfatizo a palavra 'imunda', roçando meu nariz em sua orelha. Ele se estremece e se afasta, mudo, assentindo com a cabeça.

- Vc vê algum empecilho nisso? - Troveja Doc.

- Nenhum. - Diz Fernando, retirando as mãos dos bolsos, sacudindo os ombros para ajeitar o blazer em veludo marrom que lhe cai muitíssimo bem. Isso me faz lembrar da camisa simples em malha branca do homem do ônibus que lera meus pensamentos. - Podemos conversar? - Ele me toma pelo braço e, antes que ele me puxe para algum lugar e me faça desistir do meu plano para esta noite, eu bato a mão espalmada contra o balcão e ordeno, sorrindo.

- Uma garrafa de 'Jack Daniel's', please! - Fernando, furioso, aperta meu pulso enquanto Doc faz escorregar pelo balcão liso a garrafa até a minha mão livre. Eu a alcanço antes que ela se jogue contra o palco. Solto um gritinho de euforia misturada ao medo porque sei que Fernando quer me transar comigo hoje. Justo hoje. - Senta aqui! - Exclamo, indicando com o queixo, a cadeira ao lado da minha. - Vc tá muito tenso. Precisa relaxar. Aconteceu alguma coisa no "Italia Mia"? - Ele me obedece, franzindo a testa ligeiramente me fazendo perceber seu mau humor. - Bebe, amor. - Peço, empurrando o copo até ele que o segure com a mesma gana com que agarrara o meu pescoço da última vez em que quase me sufocou. - É por conta da casa. - Envio-lhe uma piscadela a fim de disfarçar o coração disparando no peito. Ele esvazia o copo em vários goles longos e volta a enchê-lo até a metade enquanto abre um de seus vários sorrisos: aquele de quem quer me partir ao meio. - Vc me entende, não entende? - Repito a frase porque não penso em outra quando vejo Doc se afastar de mim com a agilidade de uma gazela. Alguns babacas bêbados estão tentando tocar em "Lollipop", no palco. Deixe que toquem, Doc. Não vá. Não vá. Não vá. - Doc! - Cacarejo, angustiada. - Ele se foi.

- Tá de sacanagem comigo? - Fernando se inclina sobre mim com a ira de um cão selvagem. - Que babaquice é essa aqui?

- Do que tá falando?! - Minha voz é de quem está na defensiva e é assim que me sinto quando sua mão forte quase torce meus ossos do punho. - Tá doendo! - Aviso.

- Para de palhaçada e vem comigo pra casa! - Murmura ele, com a voz pastosa, puxando-me pela gola do meu roupão. Sinto seu hálito de uísque. Penso que, pela primeira vez em anos, sua queda pelo álcool me seria bastante conveniente na noite de hoje. - Isso é esquisito. - Comenta ele enquanto me observa, com uma expressão indefinível em seu rosto. A garrafa entorna o líquido em tons pastéis. O copo se enche até a borda. Detesto tudo nesta bebida. Desde a cor até o gosto e, mesmo que a apreciasse, eu a detestaria por ser a predileta dele. - Quer me deixar bêbado? - A última palavra quase não sai de tão enrolada. Eu dou uma risadinha vitoriosa por vê-lo cair tão facilmente em minha emboscada tosca e infantil. - Vc quer me deixar bêbado! - Afirma ele, rindo comigo, erguendo o copo acima de nossas cabeças. Ele está solto, leve, porém percebo a decepção tomando conta de sua expressão quando sua voz sai arrastada. - Por San Juan 'Digo'!

- Diego! - Eu o corrijo, afastando a ponta de seu cabelo já sem corte, cobrindo parte do olho. Por um instante, apiedo-me dele. Seria bem legal se fôssemos grandes amigos e pudéssemos voltar ao nosso lar sem que eu o temesse tanto. Mas...não rola! Não vou me deitar com ele. Não consigo me esquecer daquela noite em que ele me jogou às feras. Não dá. NÃO DÁ. ACORDA! - Acho que já bebeu demais. - Concluo, já arrependida, puxando para mim a garrafa vazia. Sua mão toca na minha e ambos estamos conectados ao vidro grosso e transparente. Reviro os olhos e, num solavanco, sou tomada por suas memórias mais recentes.

Ele sorrindo entre os clientes do restaurante. A porta automática que se abre diante de seus olhos. A brisa fria tocando seu rosto. Suas mãos no papel de seda estampado. O ruído agradável desse contato. O aroma inebriante das rosas vermelhas, seu passo apressado retornando pelo mesmo caminho. O momento exato em que ele se mira diante da fachada espelhada do "Italia Mia". Ele ajeita seu topete e abre um sorriso resoluto. As flores em uma das mãos e, na outra, uma caixinha em veludo vermelho. Sua voz explode em minha cabeça como bombinhas de São João.

"Casa comigo?".

- Não! - Grito, empurrando-o para longe de mim com uma mão em seu tórax. Seu olhar desnorteado e carente me confunde e me irrita ao mesmo tempo. - Ela é demais! - Faço a banqueta girar e dou de cara com "Candy Lollipop", uma ruiva de parar o trânsito. - Vc não acha, Fernando??? - Cerro os olhos, de costas para ele.

- Quem? Lolli o quê?

- Abre os olhos, Fernando! - Berro. - Ela tá na sua frente! - Sufoco um soluço, sentindo-me uma porcaria de pessoa. Justo no dia em que deveria ser o mais feliz de minha vida, eu não o desejo mais. Eu não quero receber as rosas. Não quero ouvir sua proposta de casamento. Não quero que ele me toque. Cazzo! Tudo o que desejo é reencontrar o homem do ônibus e lhe dizer meia dúzia de palavras que lhe farão corar diante de mim por seu atrevimento. Quero acabar com tudo porque me acho indigna dele e de Fernando que, da noite para o dia, parece ter tomado vinho no 'Santo Graal', pois está verdadeiramente modificado.

- Baby...- Seu hálito quente e etílico eriçam os pelos de minha nuca e tudo o que quero que ele faça é se calar e prestar atenção no show de "Candy". Talvez, assim, ele se esqueça de mim. Talvez, assim, eu me esqueça de mim. Talvez todos se esqueçam de mim e eu seja sugada por um buraco negro que se abrirá abaixo de minhas botas rutilantes agora. - Eu tenho uma surpresa.

- Cala a boca, Fernando. - Ainda de costas para ele, totalmente desorientada, apoio meu cotovelo no balcão, levando a mão à testa. Já não sei qual era o plano inicial ou porque eu o embebedei. Estou perdida, tonta, enjoada, atordoada e absolutamente sem direção. O que ele tem que faz com que eu me sinta uma merda de pessoa mesmo que eu tenha motivos para odiá-lo? - Ela não é uma gracinha? - Digo enquanto meu cotovelo vai de encontro ao seu abdômen porque sua mão pousa desagradavelmente em minha coxa.

- Ouch!

- Olha pra ela! - Grito, impaciente.

- Prefiro vc.

- Senta! - Giro violentamente meu pescoço em sua direção e o meu olhar flamejante o obriga a voltar ao seu banquinho como minha tia fazia quando ainda possuía controle sobre ele. - Calado! Vc já bebeu demais!

- Giulia!

- Shhhh! - Meu indicador vai, enfurecido, da minha boca até a dele. - Quietinho! - Ele se encolhe em sua 'cadeira da reflexão' feito um cãozinho amedrontado. - Ela é nova na casa! - Explico em voz alta, voltando minha atenção à mais recente aquisição do "Hotel California". - Não! - Lastimo em voz alta, erguendo os braços, dramaticamente. - Não deita no chão, menina! Eu não te ensinei isso!

Eu definitivamente não sei porque gasto meu tempo bolando coreografias fantásticas para essas meninas se elas não as seguem conforme eu as ensino. Pro inferno! O que vale aqui é se expor ao máximo mesmo que isso pareça de extremo mau gosto aos amantes da Dança. Ah! Foda-se! Ela precisa da grana e eles adoram ver os corpos nus das meninas rolando no chão imundo sob as luzes quentes e coloridas dos holofotes na beira do palco. Que seja! Ao menos, ela soube improvisar, arrancando suspiros, gemidos e urros desses idiotas quando lambe, voluptuosamente, seu pirulito como se estivesse lambendo um membro ereto, num quarto barato de motel, de um de seus 'clientes'.

Desprezível, conquanto essa lambida tenha tocado no fundo dos corações solidários desses cafajestes que gastam o que tem e o que não tem, enfiando na lateral da tanga super mega cavada de Lollipop, notas de cem que a farão sorrir ao final do show. Well! Ela é uma boa garota! Sabe o que quer e não carrega culpa dentro de si, diferentemente de mim que sou um poço profundo de remorso, autopiedade e baixa autoestima.

Uma bosta de pessoa.

***

- Vc sabe que eu tenho aquela coisa de pegar e sentir e, por vezes, pressentir. - Argumento, revirando os olhos. - Um saco! - Ele me observa atentamente. Em seus olhos, posso ver a impaciência tomando vulto, o que muito me satisfaz. Logo, continuo com a voz mansa e os gestos delicados. Ainda não sei como ele se mantém de pé após entornar uma garrafa e meia de uísque goela adentro. - Sabe ou não sabe, Fernando??? - Ele bufa, assentindo. - Então... - Minto. - Ele veio até mim e basicamente chorou. - Com um lenço umedecido, vou retirando a maquiagem que me deixa com cara de puta, embora eu somente exerça a função de Streaper. Eu preciso repetir isso a mim mesma para que eu tenha um pouco mais de amor próprio e, definitivamente, torne isso uma verdade. - Doc tá muito pra baixo e me pediu...pediu não. - Guardo as botas no armário. Fecho a porta ruidosamente porque sou surpreendida com a presença de Fernando logo atrás dela, parado, ébrio, assustadoramente pacífico. Vou me vestindo enquanto continuo a mentir. - Ele meio que implorou pra que eu tentasse saber como a filha dele está.

- Morta, ué. - Zomba ele numa gargalhada absolutamente dispensável. - O quê? - Ele encolhe os ombros na defensiva quando eu o encaro por detrás das lentes dos meus óculos. - Ela não morreu??? Não foi morta pelo macho dela???

- Não seja vulgar! - Rosno, olhando-o através do espelho cujas lâmpadas esquentam tanto o meu rosto quanto o sol de primavera. Retiro, barbaramente, com a ajuda do papel toalha, a porra do batom que ainda resta em minha boca. - Ela foi estupidamente morta por um canalha covarde e Doc gostaria de saber como ela está...- Hesito diante de seu riso debochado. - Do outro lado. - Pigarreio, limpando a garganta, cerrando os punhos contra a mesa. - De modos que, não poderei voltar contigo pra casa hoje. - Desvio meu olhar para que ele não perceba a mentira em meu semblante. Eu nunca soube mentir. E ele sabe disso. - Ele já me ajudou muito. - Prossigo, enfiando num dos compartimentos da mochila, de qualquer jeito, o biquini suado que eu mesma lavo em casa. - Agora é a hora de retribuir. - Ergo meus olhos inocentes. - Vc não acha? Ele sempre foi tão bom comigo. - Mal termino de falar e tudo o que vejo é a manga de seu blazer ofuscando o brilho de seu relógio de ouro. Sua mão está em meu pescoço. Meus olhos se arregalam. De onde ele tira tanta força mesmo estando bêbado??? - Para, Fernando. - Imploro, com a voz fraca. Ele sorri para mim, imprimindo mais força em seus dedos. Eu lhe devolvo o sorriso quando o braço gigantesco de Doc envolve seu pescoço, aplicando-lhe um "Mata-Leão" impecável, arrastando-o para longe de mim. Doc é o meu herói. Depois do tio, ele é o cara mais legal do mundo todo. - E eu que pensei que vc tivesse mudado! - Cuspo em seu blazer caro, indignada. Ele dá de ombros e se aconchega no sofá velho no canto do camarim, sorrindo. - Babaca. - Sussurro em seu ouvido, tentando afastar a piedade da porra do meu coração, lembrando-me que estou diante de um monstro. Quase não consigo quando ele balbucia "Te amo", antes de pegar no sono. - Sinto muito. - Lamento, beijando o topo de sua cabeça. Doc me apressa, então, eu rapidamente jogo a mochila nas costas e cruzo o batente da porta da boate, aspirando o ar frio das noites de inverno. Eu amo o inverno, o frio, a chuva fina que cai enquanto subo a ladeira convicta de que estou prestes a fazer a coisa certa.

Pedir desculpas ao garçom a quem eu maltratei na pior noite da minha vida.

***

- Despedido??? - O desânimo me invade. - Como assim???

- Não sei. - Responde apressadamente o maitre do "Italia Mia" que se surpreende ao me ver indignada. - Eu não sei! - Repete ele, gesticulando exageradamente como um bom italiano. - Nem tudo o que se passa aqui chega aos meus ouvidos!

- Chega sim! - Retruco, caminhando ao seu lado enquanto ele supervisiona com seus olhos astutos o trabalho dos garçons que se movimentam como formigas em meio ao grande salão. A casa está cheia e, por isso, ele estampa um sorriso franco no rosto. Giuseppe é o homem de confiança do meu tio. Ele me viu crescer. Ele sabe o quão insistente eu sou quando preciso saber de algo e eu, de fato, preciso saber porque diabos despediram o rapaz. - Quando foi isso? - Seu braço estendido me empurra para trás. Dou espaço a uma bandeja resplandescente acima da minha cabeça. Um garçom se contorciona de braço estendido por entre as mesas e percebo que, pela primeira vez, dou valor à sua capacidade de se mover equilibrando pratos e copos super pesados com uma mão enquanto a outra se mantem grudada às suas costas. Poderia ser um bailarino, assim como eu. Merda. Dois talentos perdidos. Tão educado quanto o homem que me servira o vinho naquela noite. Pergunto-me porque não olhei para o seu rosto no lugar de ter aguardado por um gesto de cavalheirismo de Fernando. Respondo: porque sou burra. Estúpida! - Quem fez isso, Giuseppe? - Ele estreita os olhos, fixos em mim como quem aguarda uma resposta. - Adivinha.

- Mentira! - Levo as mãos à boca, estupefata. - Por quê???

- Não sei. - Ele gira, elegantemente, nos calcanhares e caminha até a cozinha. Eu o sigo, exigindo respostas, aspirando o adorável aroma da massa fumegante dos pratos que passam por mim. Meu estômago ronca. Meu coração dói. - Foi na mesma noite em que vc esteve aqui. - Afirma ele, enquanto me faz sentar à mesa diante de um estonteante "Fettuccine alla Carbonara". - Disso eu me lembro. - Conclui, polvilhando a massa com parmesão e orégano. - Só não me lembro de tê-la visto sair. - Seus olhos castanhos vão de mim até o teto onde se fixam por alguns segundos. Então ele volta a me olhar, intrigado. - O que aconteceu naquela noite?

- Não sei. - Rumino com a boca cheia e o coração se rasgando ao meio. - Por quê? - Pergunto sem olhar para ele que puxa uma cadeira e se senta nela, lentamente. O movimento dos garçons e a gritaria dos cozinheiros organizando e preparando as comandas me deixa tonta, no entanto, Giuseppe não parece se incomodar com nada mais além de me observar enquanto tento esconder o que já deveria ter sido esquecido. - O quê? - Ergo os olhos, sugando um fio da massa. - Não me olha assim. - Resmungo, vendo-o tamborilar os dedos sobre a mesa. Seu queixo se eleva e suas feições se contraem. A julgar por seu silêncio e pelo fato de parecer não ter ninguém à sua frente além de mim, ele certamente está juntando as peças de um quebra-cabeça intrincado. Seu cabelo grisalho e as rugas na testa me remetem ao passado quando ele, ao lado de meu tio, trabalhava incansavelmente na primeira cantina onde um sonho tivera início. Um sonho do qual meu tio fora severamente arrancado graças àquela doença maldita. Trazer de volta à minha cabeça a noite em que estivera aqui pela última vez é quase tão terrível quanto me lembrar do tio que adorava cantar as músicas de sua terra natal, em dueto, com Giuseppe. Eram pateticamente formidáveis. DIABOS! - Fala! - Aumento a voz num repente, batendo contra a mesa meu punho cerrado. Giuseppe se espanta. - Desculpa. - Falo baixinho e, então, com doçura, eu pergunto. - No que tá pensando? Diz pra mim. Por favor. - Descanso os talheres ao lado do prato, recostando-me no espaldar da cadeira onde minha mochila está pendurada. Ele parece não ter me ouvido, logo, perco a paciência. - Desembucha!

- Interessante...- Analisa ele, levando a mão ao queixo.

- O quê? - Apoio-me nos cotovelos, com a metade do meu corpo sobre a mesa. - Fala, tio! - Seus olhos cismados se fixam nos meus. Ele hesita por segundos. - Por San Juan Diego! Fala!

- Fernando e ele discutiram naquela noite. Eu me lembro. Eu vi. Tínhamos muitos clientes, mas eu vi. - Levo ao mão ao peito, recostando-me de volta à cadeira. Ofegando, eu o escuto. - Fernando chamou sua atenção e foi bastante rude com o rapaz. Depois, Fernando foi embora, mas o rapaz ainda permaneceu aqui por um bom tempo. - Minhas mãos trêmulas se juntam às dele sobre a mesa em madeira. Gaguejando, eu suplico.

- Co-continua. - Seus olhos distantes vagueiam pela cozinha. Sou um aglomerado de sentimentos e meus músculos estão retesados porque sinto que algo de surpreendente está prestes a ser revelado. Surpreendentemente bom ou mau? Não sei. Com a minha sorte, posso imaginar. - Giuseppe. - Sussurro fantasmagoricamente como uma alma penada.

- Eu não me lembro de tudo. Eu precisei sair. - Ele olha para mim, porém não me vê. Seus olhos se arregalam no exato momento em que ele ergue seu braço, estalando seus dedos. - Isso! - Exclama ele, exultante.

- O quê???

- Quando retornei...- Ele dá uma pausa. Eu prendo a respiração. - Aonde eu fui naquela noite?

- Não importa! - Solto o ar pela boca, empurrando o prato para o lado e, num instante, meu nariz está bem próximo ao dele quando ordeno, entredentes. - Continua. - Seus olhos voltam a se estreitar. Sua sobrancelha se ergue, então sinto que fui longe demais. Volto, me desmanchando, à cadeira onde tento controlar minha respiração acelerada. Eu não faço ideia do porquê de estar tão descontrolada por alguém que não conheço. - Scusa. - Peço, baixando os olhos. - Tô nervosa.

- Não precisa pedir desculpas. - Ele abre um sorriso sereno. - Tenha paciência. Estou velho e a minha memória tem falhado. - Assinto, lembrando-me uma segunda vez, de meu tio. Meus olhos se enchem d'água e tudo o que quero é voltar à minha casa. É quando Giuseppe volta a atrair a minha atenção com o que acaba de se lembrar. - Eu cheguei a procurar pelo rapaz para pagar o que lhe devia, mas ele havia sumido. Então, caminhei até a adega porque a porta estava escancarada. - Ele encolhe os ombros, confuso. - Aquilo não era normal. A adega não é aberta para todos. Eu tenho as chaves. Somente Fernando e eu temos as chaves. - Levo a mão ao estômago que dói. Sinto o suor frio banhando minhas mãos e as costas. Minha pressão está caindo vertiginosamente ao me lembrar dos momentos em que sofri na adega. - Ei, bambina! - Giuseppe, preocupado, aperta minhas mãos entre as dele e se ergue da cadeira. - Stai bene?!

- Termina. - Imploro com a voz fraca, a camisa ensopada grudando em minhas costas. O coração batendo na garganta. Ele, contrariado, volta a se sentar, secando o suor em minhas têmporas com o guardanapo. O mesmo em que vira minutos antes de ser violentada. - Por favor.

- Não tenho muito a dizer. - Ele parece ainda mais confuso e hesitante quando comenta. - Um dos nossos disse que o viu saindo daqui com algo nos braços, minutos antes de fecharmos as portas. O que ele carregava, segundo quem o viu, estava coberto por uma de nossas toalhas de mesa. - Giuseppe continua, incrédulo. - Cazzo! Como alguém sai daqui com algo enrolado em uma toalha e não fazem nada!? - Seus punhos cerrados se chocam contra a mesa. - Isso não parece certo. - Ele me procura com os olhos atônitos. - Capisci ora?

- Não. - Exalo um suspiro profundo e respondo à sua pergunta. - Não entendo. - Recosto a testa na ponta da mesa, contendo a avalanche de emoções que percorre meu corpo tão violentamente quanto a circulação sanguínea. Estou olhando para um ponto fixo entre as minhas coxas, tentando juntar os fatos. Minhas lágrimas se espalham sobre o tecido grosso da calça jeans que visto. Giuseppe me fez recordar do que eu havia esquecido. Eu fiz de tudo por apagar aquela noite da minha vida e com toda a merda que eu quis jogar no lixo, eu o joguei também. Como num 'Cubo Mágico', vou posicionando as camadas e encontrando as resposta, então, tudo faz sentido.

Ouço os passos ligeiros e pesados contra o chão. A porta que se abre num repente, o medo de que eles tenham retornado, o pano fino roçando minha pela machucada, meu corpo sacolejando enquanto ele caminha. As luzes no teto, o ruído das cadeiras sendo arrastadas no salão, as gotas da chuva caindo em minha boca lacerada. Um beijo no topo de minha cabeça coberta. A voz suave e infinitamente triste que diz:

"Eu te encontrei."

Sua pele molhada exala um aroma amadeirado. O abraço acolhedor, repleto de ternura me aconchega. A sensação morna de que eu estou a salvo em seus braços.

Aaah! Era você...

- Giulia! - Giuseppe me faz despertar.

- Oi! - Eu me empertigo, secando meu rosto com o dorso das mãos. - O nome dele. - Indago, enérgica, enquanto prendo o cabelo num rabo-de-cavalo. Giuseppe não percebe, mas estou tremendo feito vara verde. - O nome dele, tio. Qual o nome dele? - Ele abana a cabeça comprimindo os olhos como se esse gesto fosse aguçar sua memória. - O nome, tio! - Berro, eletrizada.

- CARLOS! - Cospe ele.

- Carlos...- Repito num suspiro. - Carlos. Carlos. Carlos. - Quero chamar por este nome até que ele, o meu herói, apareça diante de mim. O homem que fora capaz de pressentir o meu sofrimento, enfrentando a ira injusta de Fernando e os riscos de continuar em um ambiente de onde fora expulso somente por mim. Por que não fora embora quando despedido? Por que procurou por mim? Como sabia que eu estava jogada num canto qualquer em uma sala onde o som dos meus gemidos não encontravam brecha para sair? - Carlos. - Eu o chamo, chorando feito criança nos braços de Giuseppe que me acolhe num abraço forte sem dizer uma palavra.

Tomo da água que ele me oferece, ajeitando a mochila em minhas costas curvadas. Caminho, cambaleante, até o portal que divide a cozinha do salão onde o faxineiro inicia a limpeza após o fechamento das portas. É hora de partir. Mais uma noite de trabalho se finda, embora, eu me sinta mais incompleta do que antes.

- Filha! - Giuseppe balbucia. Não lhe dou tempo para perguntas sem respostas, logo, eu o beijo na testa e envolvo meus braços ao redor de sua cintura opulenta. Seu cheirinho de lavanda me acalma e me faz lembrar de que há alguém à minha espera, lá em casa . - Conta pra mim.

- Contar o quê? - Volto meus olhos desesperançados a ele antes de chegar à calçada de pedras portuguesas. - Não há nada a contar. - Esboço um sorriso. - O senhor já disse tudo, tio.

- Giulia! - Insiste ele enquanto me afasto a passos largos, pensando em quantas vezes eu terei de desperdiçar chances que o Universo coloca em minha vida até aprender a ler os sinais. Por que não olhei em seu rosto? Ao menos, agora, teria um rosto associado a um nome. O que não é nada se ele não está aqui, perto de mim. - Giulia!

- Sim! - Replico sem olhar para trás.

- Como saiu daqui naquela noite? - Grita ele, bem no meio da calçada. Sua pergunta chega até mim numa rajada de vento frio e, certamente, ele não chegara a ouvir minha resposta porque sai num sussurro.

- Um anjo, tio. Um anjo me tirou daqui.

Inspiro a brisa do mar e quase chego a sentir o seu cheiro de sândalo misturado a outra fragrância que desconheço. O mesmo cheiro do punho que segurou a garrafa. O mesmo braço que me levara consigo, retirando-me do inferno. Apoio as mãos nas abas da mochila, curvando meu tronco para frente. Vou contando os tijolinhos da calçada. Do outro lado da rua, casais de mãos dadas passeando na orla. Um aperto no meu peito me faz querer chorar. Eu engulo o choro e continuo. Continuo porque não vou desistir de te encontrar. Não vou. Não posso. Não permito que me tirem essa esperança. Vc me salvou. Vc me levou ao hospital. Vc cuidou de mim e eu sequer conheço o seu rosto. - Carlos. - Repito seu nome, sorrindo, pois sei que ele existe. Alguém, de fato, se importa comigo e isso me traz uma sensação de conforto e paz que jamais sentira com relação a outro homem. - Eu vou te encontrar. Não sei como, mas vou te encontrar. - Ergo minha cabeça e olho para o céu. E, emburrada como uma criança, imploro à estrela mais brilhante. - Me ajuda.

Ainda admirando as estrelas, caminho em direção à esquina. Um frescor súbito me revigora. Inspiro o ar frio da noite e, com ele, o perfume da "Dama-da-Noite". Um sentimento nostálgico toma conta de mim, esvaziando-me por completo. Sinto que nada do que vivi até agora me fizera feliz de fato. Nada era meu. Tudo o que tenho são fragmentos de sentimentos doados por outras pessoas. Nada fora dirigido exclusivamente a mim. Foram restos, sobras de amor que me foram doados. Sou extremamente grata aos meus tios. Sem eles, eu não teria sido amada como filha. Eu sou grata. Juro que sou. Mas, antes de mim, havia Fernando e Isabella. Eles são os filhos de verdade. Eu sou a intrusa, embora jamais tenha sido tratada por meus tios como uma. O que eu quero dizer é que eu sinto falta de um amor genuinamente meu. Nascido por mim e para mim. Eu preciso experimentar esse amor. Eu sinto que ele pode existir. E, agora, mais do que nunca. Talvez esteja sendo tola demais. De repente, o cara só estava passando e, por acaso, me viu estirada no chão com o corpo coberto de sangue e teve pena de mim. Sei lá.

- O que é??? Nunca viu??? - Revolto-me contra um grupinho de jovens que passam por mim, olhando-me como se eu fosse uma louca. - Vcs não falam sozinhos??? - Viro-me na direção deles e, por eles, sou ignorada. Foda-se. Um grupo de idiotas bem vestidinhos, certamente, amados pelos pais que lhes dão de tudo. Cópias de Fernando aos dezoito. - Vão pro inferno. - Resmungo, girando nos calcanhares com tanto fúria que meu rabo-de-cavalo chicoteia algum rosto sem voz. Não me importo e continuo a divagar e a sonhar que, em algum dia, eu estarei ali, na orla, de mãos dadas com esse homem que vai me amar pelo que sou: um mulher absolutamente imperfeita, impulsiva, reativa, sonhadora, desbocada e com um tio que está em casa e precisa de mim. - Vermelho. - Murmuro sem desviar o olhar distante do semáforo. Há algo de hipnótico na luz vermelha. Algo que me tira instantaneamente do corpo se me fixar nela por mais de dois minutos. Ainda assim, consigo sentir a presença de alguém atrás de mim. Estremeço com um arrepio que se inicia na nuca e segue até a ponta do meu cabelo. Tenho duas opções: Girar o meu corpo rapidamente e chutar os seus culhões e sair correndo ou sair correndo antes mesmo de ver o verde no semáforo que parece estar quebrado.

"Culhões?! E como sabe se sou um homem?"

A voz sem rosto ecoa em minha cabeça, paralisando-me por alguns milissegundos. Tempo suficiente para ver o corpo da voz passar por mim e seguir adiante, atravessando a avenida. Alto, esguio, ombros largos, a cabeça baixa, as mãos nos bolsos de uma calça jeans. A camisa preta, em malha, a passada firme e constante. De repente, percebo que estou prendendo a respiração, então solto o ar pela boca por onde meu coração dolorido que saltar.

- Para! - Grito, dando o primeiro passo em sua direção. - É você?! - Dou o segundo e o terceiro sem ouvir respostas. Estou disposta a correr atrás dele quando, de súbito, uma luz fortíssima ofusca a minha visão ao mesmo tempo em que ouço o ruído estridente de pneus contra o asfalto. Eu o perco de vista quando olho, assustada, para o lado. Chego a encostar minha mão no capô do carro que não reconheço de imediato. Minha alma está com o homem que desaparece enquanto um outro sai do automóvel, batendo com força a porta do motorista. Sua mão aperta meu braço e eu me deixo levar. Ele me empurra contra o banco do carona e eu ainda procuro, em silêncio, pelo outro, lá fora. - Faz o que quiser. - Respondo a Fernando que, num tom de ameaça, rosna, arregalando os olhos avermelhados, a boca retorcida pelo ódio.

- Em casa, a gente conversa.

Eu me enxergo na janela do carro e tudo o que vejo é um rosto sem alma. Atrás de mim, no banco traseiro, dois espíritos tão baixos e famintos por sexo e sadismo quanto o monstro ao volante. Eu me encolho no banco do carona, tremendo de medo por mim e por meu tio porque...

Mr. Hyde voltou e, dessa vez, é para ficar.

***

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 29/06/2020
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