XI

A bandeja do desjejum com cereais, um copo de leite desnatado e torradas com geleia é levada por Ernestina à alcova dos Dumont. A empregada está cabisbaixa, não havia se recuperado da noite passada, por isso, roda a maçaneta bem devagar; para, receia abrir a porta... A imagem de Catharine caída à cama, em sono profundo, fugindo de uma realidade tão vil, a incomodava ao ponto dela dar um passo para trás e soltar a maçaneta. Seus olhos se enchem de lágrimas, porque enquanto George era aplaudido em público, elevado a mais alta insígnia da carreira política, sua esposa fadava-se ao fracasso, perdida numa sombria cova de lobos, devorada impiedosamente pelos sentimentos mais nefastos.

Sem Alana, Catharine não passava de um corpo vazio, atirado a um lodaçal de lamentações, afinal, para ela, a menina era mais que uma filha, era “a estrela que entre as névoas do inverno cintilava, apontando o caminho ao pegureiro. A messe de um dourado estio, o idílio de um amor sublime, a glória, a inspiração...”, como outrora escrevera o poeta Fagundes Varela em o Cântico do calvário. E o que seria da herdeira dos Dumont sem o seu amor, a sua glória e inspiração? Certamente deixaria de existir! Que outra coisa imaginar?

Ernestina deveria fazer alguma coisa, impedir que as desgraças preditas se revelassem verdades cruéis. Mas o que poderia fazer?

_ Catharine precisará muito de seus ombros, Ernestina! Nunca lhe falte, por favor, boa amiga! E quando tudo estiver perdido, eis que a salvação está nesse envelope... Ouça-me, mulher! A única pessoa em quem posso depositar um fio de esperança é você! – correm-lhe à mente as palavras de Franceline no leito de morte.

Confusa, a criada pensa retornar à cozinha, deixar a bandeja sobre a mesinha e se deitar um pouco... Está estafada com tantas desgraças! Mas a consciência a impede de descer as escadarias, assim, mui receosa, retorna ao aposento. Põe a mão de novo na maçaneta, respira fundo, pede a bênção de Deus e abre a porta. Contrariando todas as previsões mais otimistas, à sua frente não estava uma mulher extenuada, mas uma outra, tão linda como antigamente, em um tailleur preto, com corte reto e debruns contrastantes.

_ Como estou, Ernestina? – pergunta Catarine, em tom sereno, de frente para o espelho, enquanto completa o modelito com um delicado colar de pérolas.

_ Linda, senhora! – suspira a mulher, completamente perdida. _Tão linda quanto Carla Bruni, a ex-primeira-dama da França. Mas aonde irá desse jeito? Eu trouxe o desjejum do jeito como gosta.

_ Irei ao cemitério, preciso depositar algumas flores no túmulo de Alana.

_ Está preparada para voltar àquele local e reviver o momento mais triste de sua história, senhora? Não seria melhor que alguém as levasse? Se quiser, eu mesma as levarei!

_ “Ajuda o teu semelhante a levantar a carga, mas não a levá-la”. Conhece essa frase, Ernestina?

_ Seria de Pitágoras?

_ Seria não... É de Pitágoras, o grande filósofo da antiguidade.

_ O que a senhora quer dizer com isso? Não entendo!

_ Que não devamos desejar fazer o papel do próximo; deixe-o fazer sozinho para que aprenda a sobreviver nos momentos mais difíceis – diz, com os olhos cintilando. _Fiquei pensando toda essa noite e há uma coisa em que George tem razão: eu sempre tive de tudo, estava superprotegida do tempo, guardada dentro de uma bolha, como se não fizesse parte do mundo real. Quando essa bola rompeu, o que me restou, Ernestina? Apenas a dor! A dor de toda uma vida!

_ E quando essa suposta bolha rompeu?

_ Ao receber a notícia de que Alana sofria de câncer. Você sabe o que é amar uma criança e saber que ela terá poucos meses de vida? Que terá de abrir mão da coisa que mais ama no mundo por um mero capricho do destino? Foi quando percebi que o mundo em que vivia era um faz-de-conta, criado, alimentado e manipulado para evitar que eu sofresse...

_ Compreendo, Dona Catharine, mas a perda de Alana ainda é recente, as cicatrizes estão expostas e, ao primeiro sinal de fraqueza, abrirão novas feridas, tão profundas como estas que ainda jazem em seu coração. Não acha melhor esperar mais um pouco? Eu levo as flores para a senhora!

_ Era como se eu fosse uma dessas bonecas de louça, melhor, uma flor-de-cera, em cima de uma cômoda, longe da mão de uma criança, feita apenas para ser apreciada – continua, em meio a divagações -... assim eu me sentia!

_Flor...flor-de-cera? Por que uma flor-de-cera?

_Porque enquanto está lá, naquela cômoda, intocada, mantém-se bela; ao mínimo toque, pode se partir em muitos pedaços. Assim eu me sentia, aliás, ainda me sinto: uma flor-de-cera!

_ A senhora está sendo ingrata... – indigna-se a criada.

_ Com quem? – estranha a mulher, virando-se para ela.

_ Com as pessoas que a amaram tanto ao ponto de errarem, como agora pensa... Erraram por amá-la de mais! Não imaginavam que tanto cuidado causaria dano tão profundo.

_ Não estou entendendo, de quem está falando?

_ Uma dessas pessoas foi sua mãe. Ela fez de tudo para que tivesse uma vida distante do sofrimento...

_ Minha mãe??? – interrompe-a, com ira. _ Refere-se àquela mulher que fora flagrada com o amante? Do que fui poupada, Ernestina? Ela me conduziu à dor intensa, ou pensa que não sofri ao vê-la apanhando de meu pai? O que FRANCELINE DUMONT sempre desejou foi o corpo dos outros homens! Não se importava com ninguém, a não ser com sua libido.

_ Não fale assim de sua mãe! – revolta-se, pondo a bandeja na cabeceira da cama._ Sua mãe não era nada do que seu Dilermando dizia. Ela a amava mais do que tudo! Sou testemunha ocular de sua preocupação.

_ Que preocupação era essa que me arrastara para o limbo? – seus olhos engolem-na._ Se ela me amasse, não teria deixado meu pai para se encontrar com outro homem.

_ A senhora não tem esse direito, Dona Catharine! Ninguém tem o direito de julgar o outro.

_ Não estou julgando o outro, querida! Julgo minha MÃE! – finaliza o assunto. _Leve o café, não quero comer nada.

_ A que se deve essa mudança, senhora? Porque ontem era uma outra pessoa, caída a um canto da sala, vítima de agressão; hoje, parece outra, engajada, com uma força interior de causar espanto. A que se deve, senhora?

_ Preciso reescrever minha história! Veja o que minha inércia foi capaz de fazer! – mostra-lhe os pontos. _Essas marcas macularão para sempre minha face. Eu preciso reescrever minha história de algum modo, se é que isso seja possível. Eu preciso!– fixa-se à própria imagem refletida no grande espelho do closet._Eu preciso!

E sem mais explicações, retira-se do quarto, deixando Ernestina sem palavras. Sentada à cama, a serviçal se encolhe, escondendo a face entre as mãos.

_ Estou apaixonada, Ernestina! Nunca mais irei apanhar de Dilermando... Quero lutar pelo que acredito... E o que eu acredito é que a felicidade, diferentemente do que pregava Manuel Bandeira, não é uma aventura. A felicidade faz parte de nossa existência, não é fantasia! Veja, a FELICIDADE está ao nosso redor, exala o perfume das flores... Sinta o seu aroma! Que delícia! Quer vê-la, Ernestina?

A criada faz um sim com a cabeça.

_ Feche os olhos... A FELICIDADE não pode ser vista pelos olhares terrenos; apenas pelos olhos d’alma – afirma a mulher, enquanto cobre as marcas da surra da noite passada com uma fina camada de pó. _Viu? Não é linda?

Uma lágrima solitária desce o rosto da empregada, que nada diz, pelo menos com palavras.

_ A que se deve essa mudança, senhora? Até ontem estava disposta a deixar de lado o caso que vive à espreita para se reconciliar com seu esposo. A que se deve?

_ Eu preciso reescrever minha história de algum modo, se é que isso seja possível. Eu preciso! E ao lado de quem realmente amo!- responde Franceline.

_ A história se repete... – sofre a mucama, voltando-se das lembranças. _ E nada posso fazer para impedir que outras desgraças se abatam sobre essa casa. Nada!

Caminha até a janela e assiste as nuvens passearem pelo céu.

_A não ser que entregue o envelope... – continua a empregada, quando encontra a patroa entrando na limusine._ Não! Não estou preparada para isso.

_ Leve-me ao cemitério, Joaquim. Por favor! – pede Catharine. _Só agora percebi, onde está meu marido? Por acaso ele lhe deu o dia de folga?

_ Parece que saiu uma notícia no jornal falando do trabalho dele como vereador... – diz, admirando-a pelo retrovisor. _Estava tão eufórico que preferiu ir sozinho para a prefeitura.

_ Típico dele: curtir a felicidade a sós! – confidencia-se a herdeira dos Dumont.

A seara por onde o chofer conduz o veículo é extensa e se comprime, em alguns trechos, às encostas da viela. A visão da região é bucólica. Homens de família conduzem o gado, outros roçam a terra em meio à fina garoa, enquanto as crianças, descalças e com roupas feitas com retalhos, brincam de pega-pega. Catharine se prende a uma meninazinha... Como se parece com Alana! Seria o seu retrato, não fosse o sangue plebeu que lhe corre à veia.

Ao contornarem a rotatória que ligava o norte ao oeste do município, chegam ao cemitério.

_ Deixe-me aqui, Joaquim! Daqui a pouco estarei de volta.

_ Quer que eu a acompanhe, senhora? Está chovendo! Olhe... tenho um guarda-chuva.

A mulher resiste por um instante, mas termina por aceitar a oferta à medida que a chuva aumenta. A passos vagos, eles se dirigem ao túmulo da garota – o mais extravagante daquele mísero lugar, como se os vermes se importassem com esse detalhe.

_ O que deseja, Rubens? – inquire o contrariado vereador, em frente ao prédio da prefeitura.

_ Apenas cumprimentá-lo, excelentíssimo vereador. O senhor é mesmo um exemplo para nossa cidade. O Centro de Saúde que conquistou salvará muitas vidas...Quem sabe até mesma a de sua esposa, quando para lá ela for, após um novo espancamento.

_ PARE COM ISSO! – exige o edil. _Sou um homem de bem, que luta pelos interesses do povo...

_ E que bate sem dó na mulher, como alguns desses covardes que vez ou outra aparecem na tevê – completa o médico, cochichando-lhe aos ouvidos. _Não se esqueça de que lhe falei, hein? Um simples passo em falso e toda sua carreira irá para o espaço. Aliás, o que foi isso no seu rosto? Parece marca de um soco! O mundo está mesmo perigoso, não é vereador? – debocha, afastando-se. _Deixe-me ir, a reunião com todos os membros ilustres da comunidade principiense está começando... Não virá? Que eu saiba, essa reunião também lhe diz respeito.

O homem não responde à provocação, vira para a rua e esmurra a palma da mão, dizendo:

_ Preciso acabar com esse infeliz! E já!

_ Senhora, está bem? – pergunta Joaquim, no cemitério, à mulher que limpa as lágrimas.

_ OH, minha queridinha – olha para a fotografia que está na lápide, por que se foi tão cedo? Por quê? Como estou infeliz!

_ Senhora... senhora...acalme-se!

O som de um trovão estremece o lugar.

_ Precisamos ir, o tempo está piorando.

_ E o que é pior que perder uma filha, Joaquim? Nada é maior que essa dor, pode ter certeza, meu anjo!

A chuva se avoluma e faz com que Joaquim se aproxime ainda mais dela. Aos poucos, está ao seu lado, roupa com roupa, pele com pele. O perfume dela o inebria, é uma dádiva do céu, um beijo de Deus. As chamas do desejo se reacendem no coração do homem simples cujo único intento em vida é amar... Amar aquela mulher com o corpo e a ALMA.

Desolada, deita a cabeça nos ombros dele; está mais frágil que outrora, com a respiração ofegante e as mãos gélidas como a dos mortos; diferentemente dele, que suspira agitado, não um suspiro qualquer, mas o de um homem que enfrentou todas as intempéries do mundo para viver um grande amor. Um amor tão lindo que beira à surrealidade!

E aos poucos ele se solta, vira-se para ela, limpa-lhe as lágrimas, uma a uma, e sem pensar nas consequências, aproxima sutilmente seus lábios aos dela e, como que instado pelas faíscas da volúpia, beija-a... Beija-a tão profundamente como nunca beijou outra mulher!
 
Nenhuma descrição de foto disponível.

XII
Catharine cede aos encantos do motorista e o abraça com força, retribuindo o beijo. Sente-se a pombinha livre do cativeiro, sobrevoando o céu infinito... Com os ponteiros parados, o tempo parece ser a única testemunha daquele momento ímpar, cuja felicidade transcende a qualquer lógica humana. Era um beijo diferente, com um toque angelical, para não dizer mítico, dado por um homem humilde a uma mulher de classe, como aquele que Donald O’ Connor deu em Gene Kelly, em Cantando na Chuva5. Talvez, comovente seria a palavra correta.

A chuva intensifica, as árvores balançam, folhas voam para todos os cantos, perdem-se no temporal, mas o beijo não finda, ferve o sangue daqueles corpos, elevando-os ao êxtase da paixão.

_ O que há, George? Por que está amuado? – pergunta o prefeito, durante a reunião com os membros da sociedade principiense. _Parece que viu um fantasma?

_ Alguma coisa está me apertando o coração! – responde, visivelmente desconfortável.

_ Lá vem você com essa história... Ave! Deve ser macumba! Já procurou um centro para limpar o espírito, sinto que está carregado – escarnece Tanaka, gargalhando._ Olhem para esse indivíduo – pede aos presentes, não parece que viu fantasma?

_ Deve ter mesmo visto, não é vereador? – incita Rubens, bebericando uma xícara de café. _Aliás, seu rosto está roxo... O que lhe aconteceu?

Os olhos de George faíscam de ódio ao se encontrarem aos do médico.

_ Não foi nada, apenas bati a cabeça no guarda-roupa...

_ No guarda-roupa? – interrompe o médico. _Fez como a Perpétua de Jorge Amado? Que coisa!

_ Perpétua? Quem é essa? É alguma eleitora nova? Se for, vou mandar um santinho já... Adelaide, Adelaide, anote aí, minha filha – determina o prefeito, afoito, à assessora, desconversando em seguida, ao perceber a gafe.

_ Perpétua é a irmã de Tieta do Agreste – esclarece Adelaide. _ Não se lembra, prefeito? Teve até uma novela com ela e, se não me falhe a memória, sua intérprete era Joana Fomm.

_ Sim... claro! Claro! E quem não se lembra da Perpétua? Imagine! Teve lá em casa esses dias... quer dizer, o Jorge.

_ Quem? Jorge Amado esteve em sua casa? – desdenha o médico. _ Só se for em espírito, meu caro prefeito, porque o homem já bateu com as botas... E faz tempo! Acho que o senhor e o ilustríssimo vereador George Dumont deveriam mesmo procurar um centro, tomar um banho de sal grosso, porque a coisa está feia aqui.
.
Todos riem.

_ A gente não veio a essa reunião para falar dessa tal de Tieta...

_... Perpétua, prefeito! – corrige a assessora. _Tieta era a irmã dela.

_ Que seja! – mostra-se contrariado com a brincadeira do médico. _É tudo farinha do mesmo saco. O que a gente está fazendo aqui? Não é para discutir onde será o postinho? Então? Dê sugestões, meu povo! Hum! Cada coisa!- volta-se para a secretária-, Ô Adelaide, vê se faz alguma coisa de útil, enche o meu caneco com saquê6.

Tanaka encara George e dispara:

_É mesmo, o que é isso na sua testa? Até parece marca de um soco; por acaso apanhou da mulher, vereador?

_ É... fale, vereador, apanhou da mulher? – desafia Rubens, fitando-o com asco.

_ Cadê meu saquê, Adelaide? Ô mulher lenta, devia mandar a senhora embora! Nem para me servir uma bebida, presta! Ave! – A braveza de Tanaka desvia o foco da conversa.

_ O QUE ESTOU FAZENDO AQUI? – inquire Catharine, como se tivesse acordado de um sonho mágico, vendo-se atirada aos braços de Joaquim. _O que pensa estar fazendo comigo, cri-CRIADO?

Afasta-se dele, demonstrando incompreensão.

_ Quem você pensa que é para tocar em mim desse jeito? Sou uma mulher casada! Exijo respeito, entendeu?

_ Senhora... senhora... – hesita o empregado. _Eu... bem, nós....

_ Como pôde fazer isso comigo, Joaquim? Eu confiava em você! Como fui tola!

Ele a pega pelo braço e tenta se explicar.

_Largue-me, cretino! – grita. _Aproveitou-se de um momento de carência para me roubar um beijo. Isso não se faz com ninguém, aliás, o que esperar de pessoas como você?

_ SENHORA...- diz, soltando-a.

_ Esse título já pertence à Aurélia Camargo, a dama imponente de José de Alencar – o motorista não alcança a ironia. _Chamo-me Catharine Dumont! Entendeu? Sinto-me enojada com o seu hálito infecto - limpa os lábios em desespero.

O homem assiste à agressão sem retribuir uma só palavra.

_ A senhora deveria olhar para os lados, ouvir mais as pessoas, sair um pouco dessa casa, deixar os problemas de lado e viver a vida com a mesma intensidade da adolescência. Verá que há outros homens melhores, prontos para recebê-la nos braços... E quando isso ocorrer, perceberá que o que sente por George hoje não é amor, mas MEDO – batem-lhe à consciência as palavras de Ernestina, pronunciadas algumas horas antes. _Então era de você que ela falava? – constata Catharine. _Meu Deus! Como eu estava cega.

Mesmo assistindo-a com toda aquela ira, Joaquim não se aguenta e arrisca outro beijo, mil vezes mais caliente, o que faz as pernas da mulher trepidarem. Que amor era aquele que nutria pela herdeira dos Dumont, parecia até alçado de um romance shakesperiano para a vida real.

_ PAAAAAAAAAAAAAAARE!!!!!!!!!!!!! – ela o empurra e corre até sumir entre as sepulturas.

Completamente enfeitiçado pelos lábios da mulher, Joaquim não distingue o esmero do grotesco e acaba violando todos os mandamentos dos apaixonados. Quando cai em si, percebe o silêncio do lugar – vez ou outra quebrado pelo assoviar da ventania, olha para os lados e se defronta com a fotografia de Alana. Os olhos dela são de repreensão. Aturdido, solta o guarda-chuva, que voa para bem longe, inspira fundo e vai à procura dela.

Do lado de fora do cemitério há apenas o vigia. Incansável, Joaquim revista de novo todos os cantos, mas a busca é vã. A realidade, nesse momento, penetra sua alma e o faz refém do medo; gemidos são ouvidos.

Desorientado, abre a limusine e percorre alguns metros, quando a avista, sob os efeitos da insanidade, correndo dentro do matagal, à beira da estrada. Deixa o carro e adentra a seara, gritando o nome dela o mais alto que pode.

Catharine continua em surto, como se incorporada por um espírito ruim, com as roupas em frangalhos e respingadas por barro. Convulsiona em pranto, como se o mundo não mais existisse.

_ A senhora não vale nada! – Catharine ofende Franceline, ao conhecer sua traição.

_ Filha, não fale assim comigo... Eu apenas estou apaixonada! Sabe o que é isso? É como sentir o sopro da vida invadindo um corpo morto; o desejo em sua forma mais pura. Sinto-me assim! Por que me condena se o “meu crime” tem o nome de AMOR? Aliás, desde quando AMAR seria um CRIME?

_ Desde o momento em que as alianças foram trocadas de mãos ou se esqueceu de que a que está em sua mão esquerda leva o nome de meu pai?

_ Você nunca amou na vida, por isso diz isso. Quando o seu coração bater descompassado por alguém, perceberá que essa aliança é uma farsa e o seu valor insignificante.

_ VAGABUNDA! – desfere um tapa contra a face da própria mãe._ VOCÊ NÃO VALE NADA! NADA! AO MENOS RESPEITE O MEU PAI!

Franceline lamenta a agressividade da filha.

_ Um dia entenderá o que é o amor de verdade; quando isso ocorrer, o que lhe virá à mente, de súbito e sem qualquer receio, será esse tapa, que levarei comigo para o túmulo. Tens o meu perdão; não minha compreensão! Espero que o seu desejo nunca fuja do ninho do casamento; porque se fugir como o meu, sentirá na pele o que eu sinto e se verá no espelho como uma TRAIDORA, não como uma mulher que ousou se libertar de uma jaula para viver o mais nobre dos sentimentos...

_ Nããooooooooo!!!!!!!!!!- grita Catharine, sendo resgatada das lembranças pelas mãos de Joaquim.

_ PARE! PARE – implora o rapaz com a voz atropelada. _Por que faz isso? Por quê?

Ela cai a seus pés e chora, mas ele a levanta e diz:

_ Não tem do que se envergonhar! A senhora apenas recebeu o beijo de um homem apaixonado... Quem cometeu o crime fui eu, se é que amar seja um crime, não a senhora! Acalme-se! Se alguém deve ir à forca, que seja EU!

Ela geme de causar dó, atordoada pelas lembranças.

_ SOU UMA TRAIDORA! – confidencia-se, tentando suportar a dor do coração.

Um prato desaba da cristaleira da mansão, assustando Ernestina, que varria a cozinha.

_ O que será que está acontecendo, meu Deus? - indaga, atendo-se aos cacos. _Isso não é bom sinal!

Retira o terço do pescoço e reza. Os pressentimentos que costumam visitá-la não falham. Uma tragédia, assim como uma tempestade é anunciada pelos trovões, se aproxima. E isso a inquieta!

_ Onde está minha mulher, criada? – pergunta o vereador, chegando à mansão.
______________
5 Um dos maiores sucessos do cinema norte-americano, lançado no ano de 1952, com duas indicações ao Oscar

6 Bebida tradicional do Japão, fabricada a partir da fermentação do arroz. Sem ser diluído, chega à marca de 20% de teor alcoólico, um dos maiores entre os fermentados do mundo.


92873437_3473560679330170_3534897417642049536_o.jpg?_nc_cat=105&_nc_sid=110474&_nc_eui2=AeGe-hsRXX22T0OhCTaoW6HBhd0CeDjEDRGF3QJ4OMQNETjt_7a-26_jahvryusH0Q_KGsFiYm1QoJQK_-6HR2jg&_nc_oc=AQlo_XD5LJzGZwFqQiIilDWt4HurMOYQR0yP7PSRNTcOcw2_bSuo50EC4rvqhScFex0&_nc_ht=scontent-gru2-2.xx&_nc_tp=7&oh=81834cbdf7eea73a75d6761eae351d77&oe=5EBAB6B6
XIII
 
Ernestina se vira para responder e não vê o vereador. Curiosa, vai ao escritório, onde também não o encontra. Teria ouvido vozes? Assusta-se! Mas um ruído a atrai à saleta de música, nos fundos da mansão.

George está lá, com uma dose de uísque duplo nas mãos, bastante impaciente. Abre o álbum com as partituras dos gênios da música clássica, verifica obra por obra com desvelo, e ao vir “Ária na Corda Sol”, de Bach7, enche os pulmões, dá um sorriso tímido, fecha o álbum e se dirige ao piano. Fazia tempo que não tocava aquela canção, para falar a verdade, mais de anos.

As mãos delicadas de um príncipe caem sobre as teclas do piano; um gemido é ouvido à distância, como se o autor da ária se apossasse por instantes de seu corpo e presenteasse o mundo com suas notas - dádivas divinas. Sente dificuldades no início, mas aos poucos a mão corre o piano, está completamente entregue à emoção. Uma alegria brota em seu peito, é tão forte que espanta todas as tristezas, libertando-o das agruras da vida. Seus olhos estão mergulhados em lágrimas, a casa é invadida pela música, até a chuva se rende aos encantos daquela beleza - palavras verdadeiras de um coração perdido.

_ Quem tá tocano essa canção, dona Ernestina? – pergunta o jardineiro, entrando na casa, com a roupa molhada e o pé enlameado.

Ernestina não responde, está hipnotizada pela ária. Aliás, a única vez que a ouviu foi pelas mãos de Catharine, quando ela soube da doença de Alana.

A música é cessada quando o vereador alcança um retratinho da filha com dois anos de idade sobre uma mesa lateral. Ele se levanta, caminha a passos lentos -tem medo de sua reação, pega-o entre as mãos e observa a menina, enquanto as memórias lhe saltam aos olhos.

_ PA... PA... PAPÁ – ela abre os bracinhos para que ele a pegue.

_Pegue-a, George! Alana o quer... - pede Catharine, estranhando o comportamento do marido. _ O que há com você, parece ter medo de amar! Ela é sua filha e o ama, não vê?

Ele se retira, sem dar qualquer explicação.

Um abismo como aquele que separa o céu do inferno se abre dentro dele, porque, ao por a mão naquele retrato, percebe que Alana havia partido. E para sempre! Devolve-o à mesa, abaixa a cabeça por alguns minutos, respira fundo e retorna ao piano, de onde toca com a alma de um nobre. Quanto mais rápido as notas são
alçadas ao vento, mais as lembranças o machucam, como se o remorso lhe pusesse uma faca contra o pescoço.

_ Alguém ajude minha mãe... está morrendo!- implora George, ainda adolescente.

_ Ela tem um plano de saúde?

_ Mo-moça, a senhora não entende, minha mãe tem câncer, está morrendo, precisa de ajuda... Cadê os médicos desse hospital? Por que nos negam auxílio?

_ Só atendemos a quem tem um plano de saúde; são as normas do hospital.

_ Por favor... por favor!!! – implora o garoto à funcionária, que se limita a dizer “O próximo”.

Limpando as lágrimas nas mangas da camisa de chita, ele abraça a mãe pela cintura, enquanto ela vomita na sala de espera.

_ Vamos embora! Deve ter um outro hospital aqui perto – está desesperado, vendo-a definhando em vida. _Aqui ninguém nos ouve, até parece que somos invisíveis.

_ Todos os que não têm dinheiro são invisíveis, menino! – completa um senhor, ao seu lado, com um lenço à boca para conter a tosse.

Como a mulher não aguenta mais andar, ele a deita em seu colo, num banco de madeira, do lado de fora do hospital, em pleno sereno. Ela o acaricia com as mãos esquálidas e abre um sorriso que alumia aquela escuridão.

_ FIQUE COMIGO, MÃE! SÓ TENHO A SENHORA... - suplica, em pranto.

_ Oh, meu querido, minha hora está chegando! Vejo os campos, sinto o perfume das flores, os anjos cantam... E como cantam! É lindo, Jorginho! É lindo!

_ Ajudem o garoto, a mulher está morrendo! – grita um senhor, inconformado com o descaso.

As funcionárias os ignoram, estão acostumadas com a morte. Um a mais ou a menos, que diferença faria? Para elas, nenhuma; para ele, toda a diferença do mundo, porque a única pessoa que tinha em vida estava partindo, subindo no bonde do tempo, deixando sua marca na história.

Alguns pacientes se achegam, estão emocionados, mas nada podem fazer, a lei do descaso ainda não havia entrado em vigor. George tira a camisa e a pressiona contra a boca da mãe, que jorra muito sangue.

_ Deus está vindo me buscar!

_ Não me deixe mãe, o que será de mim? Estarei perdido...

_ Não, querido!Você é um garoto lindo, o presente de Deus! – engasga-se com o sangue. _Sempre estarei contigo, porque apenas o meu corpo morre; minha essência e meu amor viverão em você para SEMPRE!

Um dos pacientes arranha algumas notas de Bach numa gaita.

_ Um dia eu serei rico, mãe, tão rico que ninguém mais pisará em nós. Ninguém mais nos espezinhará. Ninguém! Eu prometo! – ao olhá-la de novo, percebe que ela havia partido, então grita, sendo consolado pelo homem da gaita.

_ Posso ajudá-lo, vereador? – pergunta Ernestina, com o âmago tocado pela emoção, ao entrar na saleta. _O que há?

O edil para de tocar, entra em letargia por alguns instantes, depois levanta e se dirige à empregada com serenidade:

_ Ninguém pode me ajudar!

Deixa a sala e sobe aos aposentos.

_ Como toca bunito o patrão, né, Ernestina? – um sorriso desdentado se abre na boca do jardineiro.

_ O que está fazendo aqui, Moacir? – dando-se conta da presença do homem. _Está sujando todo o chão.

A empregada interrompe a conversa ao avistar o vereador descendo a escadaria com um terno preto.

_ Aonde o senhor irá? – questiona._ Está chovendo!

_ Não importa! Irei ao cemitério, visitar o túmulo de Alana.

_ É onde está sua mulher! – diz Ernestina, não acreditando que Deus havia ouvido suas preces, porque aquele homem estava se humanizando, senão como justificar que a conversa de ambos não havia se declinado à agressão verbal, como sempre acontecia? O coração dele estava amolecendo, ela sentia, e os olhos dele, contornados de lágrimas, denunciavam isso.

_ Seu George tá chique, né, Ernestina? – diz Moacir, feliz da vida.

_ E quando ele não esteve, Moacir? Quando? Só lhe falta amor!

George caminha para o hall de entrada, ao abrir a porta, defronta-se com Catharine desfalecida nos braços de Joaquim.

_ O que é isso, MATUTO? – cobra o patrão, resgatando de dentro de si o orgulho e a ira de outrora.
______________
7 Johann Sebastian Bach foi um organista e compositor alemuão do período barroco. Mestre na arte da fuga, do contraponto e da música coral, ele é um dos mais prolíficos compositores da história da música ocidental.

XIV

O carro entra nas dependências do casarão, freando bruscamente ao encontrar Ernestina.

_ Doutor Rubens, que bom que atendeu ao meu telefonema! Eu tinha certeza, quando aquele prato caiu, alguma desgraça se aproximava – fala a mulher, gesticulando muito, em meio à chuva.

_ Do que você está falando, criatura? Desgraça? Que desgraça? – empalidece o médico, saltando do carro.

_ CORRA... CORRA, ELES VÃO SE MATAR!

Ao chegarem à porta do hall de entrada, eles gemem de medo. Joaquim estava a um passo da morte, engravatado pelo vereador, cujos olhos cintilavam uma ira descomunal. Já Catharine permanecia inconsciente, atirada a um canto, sob a vigilância cerrada do jardineiro.

_ O pau tá cumendo, né Ernestina? – sorri Moacir, como se aquilo fosse algo natural.

Os sofás estavam revirados, algumas poltronas de ponta-cabeça, a mesa redonda de vidro estilhaçada, os vasos rachados, com ramos da folhagem espalhados pelo lugar. A violência de ambos é letal.

Rubens prende-se ao braço de George e o pressiona para que deixe o motorista; em vão! O vereador, cuja gana é matar aquele infeliz, retorce a face, range os dentes, enquanto a saliva lhe salta da boca sem rumo.

O vento iracundo entra na casa, balança o lustre, três lâmpadas se queimam. Um trovão de abrir o chão é ouvido. Vila dos Princípios fica novamente sem luz. Casas são destelhadas na periferia, famílias desabrigadas se alojam embaixo de pontes. O céu está reticente, não poupa ninguém.

O rio que corta a cidade transborda, engole um casebre, leva o berço com um bebê de nove meses; desesperada, a mãe pede socorro, pois a correnteza a impede de chegar ao filho. Ele se afogaria, não fosse uma idosa, com sua bengala, puxar o móvel para o alto. Abraçada à criança VIVA, a mãe chora, retribuindo a coragem da anciã com um beijo humilde, contornado por lágrimas de felicidade.

_ SOLTE-O, GEORGE! SOLTE-O! – berra o médico, enquanto Ernestina destorce os dedos dele para que Joaquim respire. _ CHAME A POLÍCIA, ERNESTINA!

A ventania é tão forte que a corrente que segura o lustre se parte, alçando-o a metros contra a parede. O estouro, por milagre, devolve a lucidez ao edil, que solta o chofer.

Joaquim já não respira, exigindo de Rubens todos os procedimentos emergenciais.

George se levanta, a roupa está em farrapos, maculada por um misto de saliva com sangue.

A empregada enfrenta o patrão e o estapeia, atiçada por um desejo súbito de vingança pela suposta morte do amigo. Com um simples golpe, ele a atira longe.

_Ainda bem que num fartei nu sirviço hoji, o negócio tá bão aqui, sô! – continua dizendo o abobalhado jardineiro. _Inté parece com aquelas luta dos firme.

A sirene de uma ambulância é ouvida à distância, um dos morros adjacentes desaba, levando consigo a história de dezenas de famílias principienses.

Com a empáfia de sempre, o honrado vereador corre os olhos embriagados de raiva por Catharine e Joaquim, exprime um leve sorriso e desaparece pelos cômodos da mansão. Joaquim reavê o sopro da vida contrariando as previsões.

_ Levante-se... – pede o médico, estafado. _Com cuidado! E você, Ernestina, como está? – volta-se para a empregada.

_ Vou sobreviver! – responde, limpando o suor do rosto com o avental.

_ O que deu em George para fazer isso? Está louco? Precisamos denunciá-lo já à polícia – olha à destruição do local. Não se conforma. _ O que o fez agir assim? Parecia um bicho mordido... – o médico é acometido por uma recente lembrança. _Isso, por acaso, é ciúmes de Catharine? É o que estou imaginando?

A empregada não responde. Comparando o barro da roupa do serviçal com o que se encontra nos trajes de Catharine, Rubens chega a uma conclusão. George havia percebido o interesse do motorista pela mulher e o revide foi brutal, ao ponto de quase acabar em morte.

_ Eu vou chamar a polícia – diz, levantando-se.

_ Você não vai a lugar algum, doutor Rubens – ordena o vereador, retornando ao hall. _Quer me destruir a qualquer custo, não é? Pois verá do que sou capaz.

_ Você não está bem, vereador! Por favor, se acalme! – pede, vendo-o com os punhos se fechando. _ Veja o que fez... está tudo destruído! E por quê?

_ Se isso cair na boca da imprensa, minha candidatura ao cargo de prefeito estará perdida.

_ Certamente! – concorda o médico. _Precisamos de ajuda, ainda que isso possa custar dores ainda maiores. Catharine continua desmaiada, Joaquim machucado, Ernestina assustada e o senhor... bem, bastante confuso, eu diria.

_ Está me chamando de LOUCO, doutor?

_ Não! Você apenas foi acometido por uma crise emocional e deve se tratar.

George se dirige à mulher, esmiúça-a uma vez mais, não entende o porquê daquele vestido estar sujo de lama e todo rasgado. As possibilidades mais absurdas lhe voam à mente, cada uma mais libertina que a outra; abaixa-se e a toma nos braços.

_ Você não chamará a polícia; se o fizer, talvez não a veja mais viva!

_ ISSO É UMA AMEAÇA? – pergunta o médico, segurando-se.

_ Quero esse canalha – dirige-se ao chofer - fora de minha propriedade; se encontrá-lo de novo, talvez ele não tenha tanta sorte.

Vira-se de costas e segue para a alcova.

_ Quando as coisas estiverem aparentemente perdidas, lembre-se, Ernestina, dentro desse envelope há a solução para todos os problemas – relembra a empregada, acuada a um canto, vendo o médico cabisbaixo. _Eu não tenho coragem de desenterrar o passado! Ele pode ser pior que o presente! Desculpe-me, Dona Franceline – sussurra consigo mesma.

_ Como está, Joaquim? – pergunta o médico.

_ Melhor, senhor... Bem melhor!

_Faça o que ele disse Joaquim, pegue já suas coisas e dê o fora daqui! Vamos evitar mais problemas – suplica a empregada.

_ Eu não fiz nada, Ernestina! Acredite em mim, por favor! – ficar longe de Catharine é pior que receber uma apunhalada no coração.

_ É... Ernestina, querdita nele, sô! – repete Moacir.

Com o celular em mãos, Rubens digita o número da polícia, mesmo advertido pelo vereador.

_ Não faça isso, doutor Rubens – implora a empregada. _O senhor já o conhece e, nervoso como está, é bem capaz de matar dona Catharine. Vamos deixar a poeira abaixar! E pensar que hoje tive pena desse infeliz...

_ Como assim, Ernestina? – pergunta Rubens, desfazendo-se da ligação.

_Ele estava estranho, tocou um tempão a mesma música ao piano, depois subiu à alcova e desceu com o terno preto que o senhor mesmo viu, dizendo que visitaria o túmulo de Alana. Parecia mudado, até me enganou... Mas quando viu dona Catharine atirada ao colo de Joaquim, endoideceu.

_ Ele disse que visitaria o túmulo de Alana? – estranha. _ E nessa chuva?

_ Sim! Nessa chuva. E, olhe, ele nunca ligou para a menina, o senhor sabe, de repente, sabe-se lá o porquê, parecia consternado, como se ela lhe fizesse falta.

_...Alguma coisa está me apertando o coração! – o doutor recorda as palavras de George Dumont durante a reunião na prefeitura._ Será que ele está mudando?- pergunta-se.

_ Eu falhei, mãe! Vim para essas terras para conseguir um bom emprego e buscar a senhora... Eu prometi! – lamenta-se o motorista, com a fotografia dela em mãos.

_ Eu irei para São Paulo, mãe, não quero mais passar fome nessa vida. Me entenda, por favor! Quero ir para além dessas terras, conseguir alguma coisa para a gente – os olhos vislumbram o futuro. _Vou pegar uma carona com o seu Dedé, do Armazém; logo voltarei para buscá-la! Tenha certeza disso! A senhora ainda sentirá orgulho de mim, mãe... – promete o franzino rapaz à mulher, uma senhora consumida pelo tempo.

_ Você tem certeza que qué dexá sua famía para se aventurá por esse mundão de Deus? – pergunta, numa cadeira de balanço escorada à parede de barro do casebre.

_ Vou tentar a sorte, mãe! Aqui não há emprego, não há água, não há o que comer, enfim, não há vida. Não aguento mais esse deserto. A senhora me permite fazer tal loucura?

_ É loucura memo, fio, o que cê tá fazenu! Esse mundão de Deus guarda coisas pior que a fome.

_ E o que seria pior do que ouvir todos os dias o estômago roncando, pedindo um prato de comida?

_ O AMOR! Cuidado cum esse bicho, porque ele nasce du nada e, como uma erva daninha, vai se ajeitando; quando a gente percebe, já tá todo roído por ele. Parece aqueles urubu, Deus me livre e guarde, rondando a carniça, só esperanu o momento certu para dar o bote – olha para a imensidão, perdendo-se na aridez do sertão.

_ Ela tentou me avisar! A minha mãezinha tentou me avisar – diz o motorista, deixando para trás as memórias, enquanto arruma a mala.

_ MISERÁVEL! – vozeia o vereador, vendo-o da janela de seu aposento. _Esse infeliz quer meu lugar, minha mulher e, acima de tudo, o meu PODER! Aquela cara de coitado é só verniz, debaixo daquela máscara há um jogador astuto, daqueles que não perdem uma partida. Será que ele imaginou que eu fosse um tonto, que daria espaço para ele jogar e ainda assistiria ao seu xeque-mate? Se cheguei até aqui é porque sou competente no que faço, algo que lhe falta, MATUTO! Hum! Essa eu ganhei!

_ Joaquim... ó, Joaquim, eu também o amo! – delira Catharine, para a surpresa do marido, que explode de cólera.

_ VOU ACABAR COM ESSA HISTÓRIA AGORA... – sentencia.

Desce a escadaria e se refugia no escritório. Ao perceberem que ele havia deixado o quarto, Rubens e Ernestina vão até Catharine. Ao reencontrá-la suja, estirada à cama como um defunto, Ernestina desaba a chorar.

_ Acalme-se, logo essa tempestade passará... - pacifica o médico._ Agora, deixe-me examiná-la!

Manchas arroxeadas  na perna da herdeira dos Dumont chamam-no a atenção, entretanto, ele não faz qualquer comentário.

_ SEUS MINUTOS ESTÃO CONTADOS, MATUTO! – decreta o alucinado vereador, com uma pistola em mãos, retirada há pouco de um cofre da mansão.


Joaquim separa uma peça de roupa para vestir, e depois de arrumado, respira fundo, senta-se na cama, se despede daquela casa, dos deliciosos beijos da mulher que mais amou na vida. Ao retornar ao sertão, levará consigo aquele hálito ardente, aquela boca... Meu Deus! Os desejos permanecem vivos dentro dele!

_ Pensando em minha MULHER, Matuto? Pois você conhecerá a mãe dela agora...

A arma dispara.


**Continue lendo - capítulos 15 a 17:
https://www.recantodasletras.com.br/novelas/6888668