Mar Morto - uma distopia (uma novela experimental)

Este texto é uma das minhas experiências em ficção mais recentes e permanece numa fase muito inicial do seu desenvolvimento.

Agradeço as leituras e opiniões que, sem dúvida, enriquecerão este experimento.

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Da janela do apartamento 25 da torre 3A, Yiama via o leito seco do rio Boma serpenteando a paisagem vinte metros abaixo.

A névoa amarela estava menos espessa naquele dia e ela enxergava os primeiros Térmicos indo para as estações de energia localizadas a um quilômetro dali. Mineiros também já desciam ao leito seco do Boma carregando nas costas roupas de Nomex para a dureza dos trabalhos subterrâneos. Yiama não conseguia identificar ninguém. Todos usavam as máscaras e óculos de proteção. Àquela hora da manhã o cheiro do enxofre estava particularmente forte, parecendo até que a vedação das janelas do seu apartamento não estava funcionando direito.

Kama-Te ainda não havia acordado. Dormiu mal e teve febre a noite toda, mesmo com o remédio que sua mãe tinha trocado pelas botas novas que ela tinha comprado na semana anterior, assim que recebera o pagamento em pílulas alimentícias.

“Yiama...”, chamou Kama-Te.

“Filho, bom dia. Dorme mais um pouco. Yiama vai ficar hoje aqui para você ficar bom”, respondeu.

“Yiama, você trouxe uma maçã para mim ontem?”

“Sim, Kama-Te. Você quer?”

“Sim. Tenho fome.”

Yiama foi até o armário, abriu a porta e colocou o braço até o fundo, de onde tirou a maçã vermelha e lustrosa que sua patroa lhe dera às escondidas no dia anterior. Ela deu a fruta ao filho e pegou duas pílulas, uma azul de proteína e uma amarela de carboidratos. Colocou-as na boca e engoliu. A fome que ela sentia iria passar em dois minutos e duraria dezesseis horas até que ela sentisse necessidade de comer novamente.

Kama-Te comia a maçã lentamente, como a mãe havia lhe ensinado, para que aproveitasse a raridade daqueles momentos especiais com a “comida do passado”. Ele era uma criança brilhante e Yiama havia conseguido para ele um teste no Hall dos Matemáticos, no Edifício das Nobres Cátedras na cidade vizinha de Kun-La-Yian, graças à Zor-Tan, companheiro da sua patroa e professor de Matemática Aeroespacial. Zor-Tan havia notado nos olhos de Kama-Te que o menino era um dos afortunados pela genética que carregavam dentro de si o domínio das ciências exatas e, portanto, portador de uma raríssima chance de ascender na sociedade.

O painel do apartamento de Yiama e Kama-Te acendeu e o rosto de Fei-Tan apareceu.

“Yiama, como está nosso Kama-Te?”, perguntou carinhosamente Fei-Tan.

“Patroa, desculpe a bagunça”, respondeu Yiama arrumando os cabelos pretos para trás das orelhas, “Ele está bem, patroa. Pediu a maçã.”

“Fale baixo, Yiama, sua tola. Os Estrato-agricultores me matam se souberem que eu dei uma maçã para um Servente. Agora me diga, quando podemos levar o Kama-Te para Kun-La-Yian?”

“Kama-Te, a senhora Fei-Tan precisa saber se você está bem para viajar para o teste.”

“Bom dia, senhora Fei-Tan”, disse Kama-Te levantando-se da cama e abaixando a cabeça em reverência à alguém de uma casta muito superior. “Eu estou bem melhor hoje de manhã, senhora. Poderia ir agora, se a senhora quisesse.”

“Que ótima notícia, Kama-Te. Vou falar com o senhor Zor-Tan, mas pode ir se preparando porque amanhã certamente iremos para lá. Alimente-se bem, tome suas pílulas alimentícias e não saia de casa para não pegar outra infecção.”

“Patroa, posso subir para fazer meu serviço. Kama-Te fica bem em casa, não fica, filho?”, perguntou Yiama.

“Nada disso, Yiama”, interrompeu Fei-Tan. “Cuide do nosso futuro Mestre Aeroespacial muito bem no dia de hoje. Se ele passar no teste amanhã, não sabemos quando você poderá vê-lo novamente.”

Assim que o painel se apagou, Yiama pegou o filho nos braços e o manteve ali por um tempo enquanto segurava o choro para não assustar e nem desestimular Kama-Te. Ficar sem seu filho após sete anos parecia um fardo impossível de se carregar, mas ela tinha consciência da sorte que ele tinha. Zor-Tan era conhecido por levar garotos como Kama-Te para o Hall dos Matemáticos e dificilmente ele se enganava. Caçador de talentos era apenas um dos seus trabalhos junto às Grandes Castas.

Às sete horas da manhã do dia seguinte, Yiama conduziu Kama-Te ao elevador que o levaria ao topo da torre 3A e que se abriu somente quando o menino olhou diretamente para o leitor de íris do pequeno painel adjacente às portas. Uma voz feminina levemente metalizada instruiu o embarque.

“Passageiro autorizado para a estação do Estrato-Trem: Kama-Te, sete anos de idade. Casta dos Serventes. Embarque individual imediato.”

Yiama deu um beijo e um abraço em Kama-Te e, assim que ele entrou no elevador, antes das portas se fecharem, a voz do elevador soou mais uma vez.

“Peso e altura do passageiro compatíveis. Qualquer tentativa de fraude deste embarque será punida com prisão, rebaixamento imediato de casta ou morte.”

As portas fecharam-se a seguir e Yiama permaneceu alguns segundos no mesmo lugar olhando para as pesadas porta de aço escovado que refletiam seu corpo esguio. Seus olhos começavam a marejar e ela imediatamente os secou com a manga da túnica branca dos Serventes. Dali ela foi até o elevador que a levaria do septuagésimo andar de volta ao segundo e ao apartamento 25 que, agora, era exclusivamente seu. Era domingo e a chuva ácida caía do lado de fora.

Kama-Te nunca tinha visto um lugar tão maravilhoso em sua vida. A casa de Fei-Tan e Zor-Tan era agradável e aconchegante, mas ao desembarcar no andar 550 da torre 3A, todos os seus sentidos foram arrebatados. Plantas, vidros e chão impecavelmente limpos, móveis que Kama-Te nem sonhava que existiam e pessoas com roupas das mais variadas cores e tecidos aguardavam o Estrato-Trem para Kun-La-Yiam que deveria chegar em dois minutos e meio. O céu parecia muito mais claro ali e ele pôde ver até mesmo uns traços de azul ao lado de nuvens ainda espessas que derramavam a chuva na cobertura transparente da estação e sobre todo o vale do Boma.

Fei-Tan apareceu e tirou Kama-Te daquele estado quase catatônico em que se encontrava. Precisavam se apressar.

“Olá, Kama-Te. Vou levar você à sua área de embarque. Zor-Tan falará com você quando chegarmos lá.”

“Olá, senhora Fei-Tan”, respondeu o menino fazendo a reverência. “Obrigado, senhora. Muito obrigado”.

Com as mãos às costas de Kama-Te, Fei-Tan o conduziu até uma área da estação onde se reuniam outros garotos vestidos com túnicas brancas. Eles vinham de outras torres, observou Kama-Te, pois levavam diferentes números na manga direita das roupas. 1A, 5C e até 10A, uma torre ao sul do rio Boma construída apenas há dois anos.

Um soldado da casta dos Fortes abriu o portão e permitiu que Kama-Te entrasse. Fei-Tan disse a ele que se seguisse todas as instruções sem demora não haveria problema e desejou boa viagem. Após isto, Fei-Tan juntou-se ao seu marido na área de embarque dos Superiores. O Estrato-Trem havia acabado de encostar e a cor de um vermelho vivo e brilhante significava que aquele era o trem que os levaria a Kun-La-Yiam.

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O Cronista Inútil
Enviado por O Cronista Inútil em 18/02/2020
Reeditado em 18/02/2020
Código do texto: T6868790
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