'MORGANA - MAGIA'

MAGIA

Estou de volta à banheira de nossa casa, como no dia em que nos conhecemos. No dia em que ele cuidara de mim e dos ferimentos causados pelo padre, definitivamente morto. Estou imersa numa efusão de sais, pétalas de rosas e óleo de lavanda. A luzes das velas tremeluzentes, logo atrás dele e espalhadas pelo cantos do banheiro, emprestam ao cômodo um ar de mistério e magia. Eu me encanto com o calor que elas transmitem. Com o acolhimento, a paz de sua companhia. Enfim, estou salva e em nosso lar. Seu olhar amoroso se fixa aos meus olhos tímidos enquanto ele me banha com suas mãos delicadas porque sabe o quão envergonhada estou. Não por estar nua, mas por ele ler em minha mente e em meu coração a dor que me corrói, a culpa que carrego por manter em meu corpo as impressões da imundície a que fui exposta, conscientemente, durante sua ausência. Ouço o ruído engraçado de sua mão contra a água e sinto o frescor dos pingos em meu rosto. Ele, divertidamente, torce a toalha sobre as minhas faces fazendo-me abrir um sorriso triste. Ele está aqui, sentado em um banquetinha de maneira, levemente inclinado sobre mim, fazendo marolas na água com a mão, ora encostando-a em meus pés ora encostando-a em minha barriga que se encolhe ao seu toque. Por Deus!Temo o toque de meu próprio esposo. O homem da minha vida! Ele ri e em seu sorriso enxergo a compreensão. Dessa vez, não me irrito porque estou extremamente relaxada inalando um vapor com aroma de essências exóticas que ele mesmo preparara em sua estufa, ainda em boas condições, graças aos seus cuidados. Sim. Ele cuidou de tudo antes de minha chegada. Ele sempre soube que retornaria ao ponto de partida. Ele me conta que, de onde estivera, orou por mim e, através dos poderes de sua mente elevada, acompanhara cada passo que eu dera. Até mesmo os mais hediondos. Sobre esses, nada quis comentar tampouco acusar-me de nada.

"Eu a deixei sozinha, amor. Vc lutou com as armas que dispunha. Eu a deixei sozinha.", desculpava-se ele enquanto me despia lentamente, observando cada parte de meu corpo, minha pele, examinando-me com a seriedade de um médico; com o amor de um homem sem igual que enxuga minhas lágrimas de arrependimento. Como ele pode me perdoar pelo que fiz?, penso, fitando-o com minha cabeça recostada à beira da louça, pernas preguiçosamente esticadas ao longo da banheira, os braços repousados em sua borda fria. Há uma toalha de rosto enrolada sob minha nuca deixando-me completamente acomodada. Tão sossegada que chego a sentir meus olhos pesados de sono. Enfim, um sono sem medo, repleto de esperanças palpáveis, reais. Ele está aqui. Seu rosto junto ao meu. Seu hálito doce e quente toca minha bochecha molhada enquanto ele sussurra uma canção de ninar. Se não estivesse com tanto sono, ralharia com ele. Canções de ninar são para crianças.

- E vc? O que é?

- Vc não se cansa de ler o que penso? - Resmungo de olhos cerrados. Elevo a perna e a deixo cair, displicentemente sobre a água morna. Pingos se elevam como um chafariz indo de encontro às suas costas nuas e curvadas sobre mim. Ele se encolhe e enruga o nariz e eu rio dele. Meu riso é lento como o meu raciocínio. - Deve haver uma lei contra invasão de priva...priva...

- Privacidade. - Ele complementa e parece gostar do fato de eu estar sonolenta, pois sorri de uma forma enigmática quando afaga meu rosto com a mão em minha nuca e os dedos polegar e indicador apertam, levemente, minha orelha. Este é o nosso toque. O nosso segredo. A maneira que eu o reconheceria se, acaso estivesse cega, em meio a uma multidão e o procurasse num desespero. Esta é a forma que combinamos de nos encontrarmos e nos reconhecermos nesta ou em outra vida, no entanto, pretendo viver mais cem anos antes de partir para outra. AI DA MORTE, BURRA, CEGA, SURDA E MUDA SE ACASO VIER ME BUSCAR JUSTO AGORA! - Vc é especial, Morgana! - Ele gargalha e eu não me dou ao trabalho de perguntar se ouvira o que pensei a respeito da morte, pois sei que ouviu. - Vc tem magia, amor...

- Vc me disse isso quando nos casamos, lembra? - O vento frio que invade, de chofre, a fresta da janela faz com as velas se apaguem todas de um só vez. Sinto um medo que nasce do fundo de minha alma. Meu coração acelera e ele percebe a mudança em minhas feições porque estou chorando, encolhida no canto da louça branca. Não quero me lembrar dos dias em que aquele monstro me usou. Não quero que Giovanni saiba o que Ga'al fez a mim.

Ele se ergue sem antes beijar o topo de minha cabeça umedecida. Com um leve toque nos pavios, faz surgir o fogo em cada vela. Magia! Bem diante dos meus olhos eu vejo seu poder adquirido e alimentado através de anos de estudos e dedicação.

- Como faz isso? Ensina-me! - Ele se volta para mim, assentindo com a cabeça. Senta-se de volta ao banquinho e recomeça a cantarolar canções místicas que me lembram de Giordana.

- Não chore. - Sussurra ao meu ouvido. - Ela está bem. - Ele afirma com tanta convicção que acredito sem nada perguntar. Ainda assim, ele me diz o que quero ouvir. - Há uma linha tênue que nos separa, Morgana. Que separa o mundo dos vivos e dos mortos. Basta que pense nela e ela vai sentir o seu amor. E, um dia, estaremos todos juntos novamente. - Baixando a cabeça, deixo as lágrimas se misturarem à água que cobre meus seios e o restante de meu corpo fraco, esquálido. Sequer passo as mãos em minha cabeça. Não sei como ele ainda me trata tão bem se pareço um menino fracote vendedor de jornais. Não que eu não goste dos meninos que lutam por ajudar seus pais, vendendo jornais, aos berros, nas ruas, mas, eu já fui uma mulher exuberante com meus longos cabelos que o encantavam e, agora, eu o noto constrangido ao observá-los, embora ele nada fale enquanto ensaboa meus fios espetados. Que vergonha...- Bobagem sua. - Ele diz enquanto despeja a água da jarra de porcelana, retirando o shampoo do que restou dos meus fios. Sinto um frescor revigorante e quase posso sorrir e acreditar que eles voltarão a crescer. - Não! Não vão não...- Ele revira os olhos impacientes. - Seus cabelos nunca mais voltarão a crescer, Morgana. É "A maldição do menino jornaleiro". - Eu me pego rindo como uma criança. - Sabe de uma coisa?

- Não! - Ergo meus olhos ardidos.

- Por onde passei, as mulheres modernas adotaram seu corte. - Ele ergue o queixo apontando para minha cabeça. Passo as mãos em meus olhos, piscando repetidas vezes até que a espuma saia por completo. Eu o encaro com perplexidade. A boca semiaberta, um olhar esperançoso. - Sim. - Ele responde à pergunta que não cheguei a fazer. - Vc está extremamente à frente de seu tempo como as mulheres fortes, destemidas que lutam por seus direitos em meio às praças públicas, conquistando a multidão. - Arquejo aliviada. Já não me sinto tão desprezível assim. Embora um lampejo de ciúmes passe por meus olhos raivosos. Levo as mãos ao peito quando ele me diz, bem próximo a mim. Tão próximo que salpico água em seu rosto somente para vê-lo enrugar o nariz e me eletrizar mesmo debaixo d´água. - Não se dê ao trabalho de sentir ciúmes. Não houve outra depois de vc e nunca haverá. - Levo as mãos à boca, contendo uma risada de satisfação. - Vc está mais linda ainda. - Reviro meus olhos incrédulos. - Mais moleca, mais sapeca. - Sinto minhas bochechas arderem e meu sorriso cristalize-se em minhas faces. - Mais sensual, exótica, erótica...- Pouso meu indicador em sua boca que se aproxima da minha.

- Estou doente, amor. - Aviso-o num murmúrio, cerrando os olhos ainda mais pesados. - Não posso deixar que vc adoeça também. Não posso... - Ele tenta falar algo, mas eu logo cubro o meu rosto com a toalha que retiro de sua mão e evito que ele me veja chorar. Ele não merece uma mulher problemática, doente, surtando a todo instante. Merece ser feliz. PO.RÉM, feliz comigo porque ainda estou longe de ser altruísta a ponto de deixá-lo ir ao encontro de alguém melhor do que eu. Espero que ele me aceite do jeito que estou. Mesmo que doa não poder tocar em seu corpo, beijar sua boca. Permanecer ao seu lado, estar com ele, ouvir suas sábias palavras, suas piadas sem graça ou as canções em gaélico me basta. Respirar o mesmo ar que ele respira, me basta. Cozinhar para ele, arrumar sua cama, cuidar de suas roupas, cheirar suas roupas, sem poder tocá-lo...me basta. Eu minto. Minto. Não basta. Não basta. - Não basta...- Suspiro, inquieta enquanto ele pousa a mão quente em minha testa. Não quero dormir. Quero olhar para ele já que não posso tocá-lo. Mas estou com tanto sono.

- Me faça um favor. - Diz ele uma oitava acima, verdadeiramente impaciente, erguendo-se à procura de algo. De costas para mim, num tom soturno, prossegue. - Pare de tentar nos separar agora que nos reencontramos! Pare de se sentir culpada e aceite que vc errou assim como eu errei e ponto. - Ele me olha sobre os ombros e, erguendo uma das sobrancelhas, fala como se eu fosse uma criança mimada. - Cala a boca e descansa. - Retorço a boca, resmungo contra a toalha e apenas peço, com a voz baixa que mal consigo ouvi-la.

- Não deixe que eu me afogue...

Seus olhos negros e brilhantes estão de volta, fitando-me vigorosamente. Seus olhos incisivos e negros com os quais tanto sonhei, agora estão mais claros. CÉUS! Isso é loucura ou sono? As velas ao meu redor junto a um forte odor de plantas, raízes, ervas e metais, inebriam-me. Meus olhos pesados já não se mantêm abertos e um súbito receio me tomou por inteiro. - Não me... - Seguro sua mão com medo de que algo sombrio aconteça. Ele a toma entre as suas e, beijando os nós dos meus dedos, fala num tom extremamente calmo como um monge do Tibet, sem desviar seus olhos dos meus.

- Não confia em mim? - Assinto com a cabeça enquanto sorrio como uma drogada. - Descansa, amor. Descansa...

Reviro os olhos e gosto do som relaxante da água se movendo como ondas quando me ajeito na banheira. Penso que ele tem nojo de mim e, por isso, ainda não me tocou. Isso dói, mas vai passar. Eu vou me acostumar a ficar ao seu lado e aceitar o fato de que só poderemos viver como irmãos que se amam. Irmãos que se amam...

NUNCA!

A última coisa que vejo antes de adormecer são suas mãos espalmadas sobre mim de onde jatos de luzes douradas são irradiadas como os raios de sol por entre as frestas das janelas. Acho eu que são as velas, mas não tenho tempo de ter certeza.

- O que é...?

- Magia, Morgana. Magia.

***

Ele se desvencilha das correntes com a ajuda do rapaz franzino. Está de costas para mim. Não consigo ver seu rosto conquanto já faça um ideia de quem seja. O rapaz o cobre com um manto preto com capuz, roubado do armário de um dos padres pedófilos que satisfazia seus desejos imundos em seu corpo maculado, vergastado pelo cilício. Ambos correm até a saída do monastério até um vasto salão onde há uma imensa mesa em madeira retangular com vestígio de comida e taças de vinhos pela metade. Há ratos no chão que se alimentam das migalhas que sobraram dos pratos cheios do clero que negava comida ao povo faminto, desperdiçando-a, jogando os restos aos cães selvagens que, agora, avistaram os dois homens em fuga. Um deles olha para os lados à procura de uma porta, uma saída. Seus olhos estão devastados, assustados. Em seu rosto, hematomas, ferimentos e queimaduras expostas me fazem desistir de continuar, no entanto, não posso. Não é assim que funciona. Choro enquanto deixo que as imagens me inundem como uma grande onda num mar bravio.

O homem com hematomas é impetuoso e, apesar de fraco fisicamente, inspira profundamente, cerrando os olhos. Parece estar ouvindo alguém que não faz parte deste mundo. A abana a cabeça e solta o ar pela boca. Puxando a mão do rapaz atordoado, arrisca-se a sair pela porta principal. Uma grande portal em arco, de madeira e ferro nas trancas que vedam, horizontalmente, a saída. Ambos tentam retirar a tranca em ferro maciço. Os músculos do mais velho se retesam a ponto de eu chegar a ver suas veias saltando de seu pescoço onde há marcas de corda. Quero acordar. Abrir os olhos porque o reconheço. O mais novo leva as mãos aflitas ao rosto. Desespera-se, chocando-se contra a porta pesada repetidas vezes. Surtando, gritando, chamando a atenção dos que dormiam. Deus, ele não suporta mais um dia sequer nas mãos do Mal. O homem mais velho o detém, abraçando-o, acalmando-o com murmúrios cujo idioma desconheço. O rapaz custa a se acalmar, pois deseja ardentemente se livrar do suplício a que fora entregue por seus próprios pais. Deixaram-no entre os padres imaginando que purificaria a alma, orando, jejuando e sendo violado, noite após noite, por um grupo de homens...feras cujas batinas apenas escondiam o fogo que ardia em suas entranhas podres e fétidas.

- Vamos conseguir! - Afirma o mais velho, sem camisa, calça rota, por debaixo do manto . Sua barba crescida, corpo esquálido e os olhos estupidamente negros e incisivos. Toma nas suas mãos ainda firmes, as do rapaz, olhando em seus olhos, infundindo-lhe esperança e fé. A Fé que o rapaz deveria ter conquistado entre os que pregavam em nome do Criador, em vão.

Está escuro como o breu. Os archotes estão apagados e o cães presos à correntes começam a latir ruidosamente o que apressa os passos do homem mais velho que, mesmo exausto, puxa pela mão o rapaz entregue à desesperança. Percorrem, por instinto, os corredores sombrios onde as celas imundas ainda estão ocupadas por seres humanos que um dia tiveram sonhos de liberdade. Agora, a Morte apenas os assiste a definharem, lenta e dolorosamente. O homem com hematomas estaca e seu coração imenso pensa em ajudá-los, mas não há tempo a perder. Os capatazes já estão em seu encalço. O rapaz toma coragem e acelera os passos vacilantes. Um homem de feições brutas os impede de continuar. Seus olhos maldosos colidem com os do homem de olhos incisivos. Por frações de segundos, as feições brutais do carcereiro se amenizam. Ele deixa as lágrimas correrem abundantemente após o toque suave e preciso do indicador do homem com hematomas bem no meio de sua testa, entre as sobrancelhas. O mais novo ouve sussurros e, surpreendido, percebe a súbita mudança. O carcereiro está entregue aos seus pensamentos, alheio à fuga que continua. O rapaz deseja perguntar o que acabou de presenciar, mas a urgência em sair dali o faz desistir. Ele sente que está na companhia de alguém especial. Alguém que conquistara sua lealdade quando ele o visitava em sua cela e ouvia suas histórias sobre Magia, Alquimia e sobre a urgência em sair dali a fim de salvar a mulher que amava e sofria nas mãos de um espírito das trevas.

Nesse ponto, emito um gemido de dor. Imploro que parem de jogar sobre mim as imagens. Não quero. Não aguento mais vê-lo sofrer, mas esse é meu dom e assim deve ser porque nasci assim. Esse é o meu dom, minha maldição. Um dom que me enfraquece a cada segundo em que os vejo, os sinto, sem nada poder fazer.

De súbito, o homem mais velho estaca. O mais jovem abafa um grito de horror. O carcereiro está com sua mão pesada sobre o ombro esquerdo de seu amigo. Pensa ser o fim e prefere a morte a retornar ao quarto escuro onde o insuportável acontece. Ele implora que o liberte. Que liberte o homem que deveria resgatar sua esposa. Ele se oferece para tomar o lugar do homem que o ensinara a ser forte, embora esteja chorando como uma criança perdida.

- Venham comigo! - Ruge o carcereiro, acenando com a mão para que o sigam. Os três percorrem novos corredores imundos cujas paredes úmidas exalam um cheiro insuportável de excrementos humanos misturados ao ferruginoso odor de sangue. Os archotes clareiam o chão por onde andam. O mais novo contem, a custo, a ânsia de vômito. Há corpos em putrefação misturados aos ossos dos que, um dia, tentaram escapar do inferno daquela prisão...e não conseguiram. O mais novo quer rezar por suas almas. - Não seja tolo! - Troveja o capataz que os faz descer por escadarias que parecem não ter fim até alcançarem o ponto mais profundo daquele edificação dantescas onde sombras os circundam, implorando, suplicando por salvação. O mais velho se apieda e, num ligeiro gesto, ergue a mão direita em direção ao imenso vale de Trevas abaixo dos degraus estreitos por onde caminham, céleres. Da palma de sua mão, luzes da cor do ouro se espalham por todo o espaço. O carcereiro para. O mais novo o imita. Ambos estão boquiabertos e paralisados. Logo abaixo, um espetáculo macabro de corpos amontoados, sem vida. Ratos e insetos sobre os corpos jogados ali, como lixo. O homem com a mão iluminada profere palavras em gaélico e a luz se apaga.

- Vamos! - O homem com hematoma segue adiante. Os outros dois, ainda atordoados, o seguem. Enfim, uma porta. Pequena com uma pequena tranca. Um cadeado aberto. Um abraço apertado no pobre carcereiro que, sem forças, olhos perdidos, recosta-se à parede úmida e deixa seu corpo tombar, inerte, no chão. Não se opõe à fuga dos estranhos que cruzaram seu caminho. Do homem mais velho que, ao tocá-lo, fizera-o lembrar-se de sua mãe que o acariciava quando criança e que, agora, está diante dele, sorrindo, dizendo-se orgulhosa por sua boa ação.

***

Lá se foram os dois homens montanha abaixo após escaparem da escuridão do mosteiro que se via à distância. Não se deixaram vencer pelo cansaço, embora o mais novo, mostrava claros sinais de fraqueza orgânica quando diminuía, por instantes, o ritmo frenético da fuga. Deitaram a correr caindo uma, duas, três vezes, rasgando os tecidos finos das calças e outra vez tombaram para frente machucando as mãos nas pedras e nos arbustos quebrados. Sorriam, vislumbrando a liberdade quase à beira do rio que os levaria para bem longe do inferno e para perto da mulher que não saía da cabeça e do coração do homem mais velho que, por muitas vezes, sustentava o mais novo, sussurrando-lhe palavras de incentivo. O mais novo sorrira, enfim aliviado. Nunca mais sentiria as mãos sujas ou os membros enrijecidos e fétidos bem em frente aos seus olhos enquanto ajoelhado, humilhado, desesperançado era acariciado no topo de sua cabeça, ouvindo a voz rouca do velho devasso que o obrigava a se autoflagelar após ter despejado em sua boca o fruto doentio de sua volúpia. O mais velho ouvira seus pensamentos e se alegrara em poder ajudá-lo a escapar de um inferno ainda mais terrível do que o dele. O mais velho enxergara no rapazinho o filho que perdera em tenra idade para a Peste e prometera que, assim que reencontrasse seu grande amor e salvá-la das mãos de um ser cruel e enlouquecido, seguiriam, todos juntos a um lugar onde dias de paz os esperava.

Ouvira-se ao longe, cães que ladravam raivosos, ansiosos. Ouvira-se gritos guturais e passos que se espalhavam, enlouquecidos, na escuridão da floresta. O mais velho apurara a visão e enxergara, por entre as folhagens, archotes que se apagavam com o vento e depois renasciam como flores. Tentara, a todo custo manter a calma e raciocinar. O mais novo imobilizara-se tomado pelo horror. Um tiro de mosquete. O cheiro de pólvora que o vento espalhava pelo ar frio e pesado acima de suas cabeças. O homem com hematomas estava a poucos metros do riacho, girando de um lado para o outro, ele retesara seus punhos certo de que não desistiria da fuga. Novamente fora obrigado a puxar com violência o braço do mais novo que, enfim, despertara do torpor. Um outro disparo. A explosão ecoou por toda a mata, provocando neles um súbito pânico e depois uma ansiedade surda, latejante. O barulho dos passos mais intensos. Os capatazes estavam mais próximos do que imaginavam, pois nada enxergavam na noite escura sem luar. Um terceiro disparo, seguido de um grito lancinante de dor. Um corpo que cai. O jovem ajoelhara-se ao lado do corpo, olhando para o mais velho, desesperadamente, imóvel, profundamente entristecido. Tomara-lhe as mãos e rogara ao Pai ajuda e, em resposta, ouvira um gemido alto e desesperado. Ele precisava olhar para o ferimento. Precisava parar o sangue que se espalhava com rapidez pela terra molhada, mas não possuía coragem. Seus olhos foram de um lado a outro, como se ele não entendesse o que estava à sua frente. O mais velho, atingido, ainda reunira forças para orientá-lo enquanto os cães os farejavam. Estavam bem próximos e o cheiro forte de sangue os excitava.

- Precisa ser forte por nós dois. - Dissera num fio de voz o homem que deixava a mancha de sangue escuro marcando o avanço dele pela grama molhada pela chuva fina que começara a cair. O jovem tentara desviar os olhos do joelho esquerdo transformado em uma massa de sangue enquanto, tomado pela coragem, puxava o homem ferido até a beira do riacho. Seu tornozelo estava destruído. Ossos misturados ao líquido escuro o deixaram tonto. O mais velho estreitara seus olhos para ele. A chuva molhava seu rosto contraído pela dor intensa, no entanto, seus olhos estavam serenos quando ele ordenara, quase sem vida.

- Salve-se! Pule no rio!

A chuva espalhava-se pelo rosto do homem mais velho. Sorrira ao sentir a água fria lavando seus ferimentos e uma força descomunal empurrando-o correnteza abaixo. Sua mão estava agarrada à mão do mais novo que o seguia, célere, esbarrando nas pedras, empurrado pela força d'água. - "Estou livre. Obrigado, Senhor", pensara o mais novo antes de ser alvejado na cabeça.

Um estampido seco e um grito abafado foram os últimos sons ouvidos pelo mais velho antes de cerrar os olhos.

Tentara em vão segurar-se na mão do mais novo que se desprendera dele, suavemente e...para sempre.

***

Ergo meu tronco, emitindo um grito de pavor. Lanço meus olhos marejados à luz tremeluzente da vela ao meu lado, no criado-mudo. Recosto-me à cabeceira da cama e abraço minhas pernas flexionadas, enfiando meu rosto entre os joelhos. Estou chorando tanto que mal reparo que ele está ao meu lado, acariciando meus cabelos, beijando minha bochecha, sussurrando palavras que, aos poucos, trazem-me de volta à realidade.

- Como se curou? Como conseguiu chegar até aqui sozinho!? - Giro meu pescoço em sua direção e sufoco um soluço. De súbito, retiro a coberta que cobre o seu corpo esticado sobre o colchão e apalpo seu joelho esquerdo que guarda as cicatrizes do ferimento à bala. - Quem te curou? - Pergunto, ofegante, sem desviar meus olhos estupefatos das cicatrizes. Meus olhos seguem até seus pés e retornam, assombrados, até se encontrarem com os seus olhos risonhos, plácidos, negros. - Foi vc! - Eu presumo. Ele assente com a cabeça, esboçando um sorriso quase triste. - O rapaz...

- Castiel. - Ele se apressa em responder a pergunta que não cheguei a completar. - Foi bravo até o fim. - Levo minhas mãos ao rosto e deixo que as lágrimas corram livremente, lavando minhas faces, escorrendo até o primeiro botão de minha camisola branca. - Eu não consegui...- Ele lamenta, arfando, cerrando os olhos umedecidos. - Eu tentei e não consegui.

- Ele sabe disso e é grato. - Eu salto sobre ele e meus joelhos estão ao lado de suas pernas esticadas. Eu sento em suas pernas e o encaro, beijando seus olhos úmidos, seu queixo, sua boca, suas bochechas iluminadas pela chama bruxuleante da vela ao lado de sua cabeceira. - Eu o vi! - Exclamo, exultante. Ele sorri, erguendo uma sobrancelha. - Ele me trouxe até aqui! Juro! - Ele abana a cabeça com aquela expressão que se reserva aos loucos e às crianças com imaginação fértil. - Não ouse duvidar de mim! - Minhas mãos se perdem em seus cabelos e eu puxo seus fios até que ele emita um gemido de dor. - Diga que acredita em mim! - Murmuro contra sua boca. - Diga.

- Acredito. - Ele me puxa pela cintura até que nossos corpos se encontrem. Nossas bocas se unem como peças de um perfeito quebra-cabeças. Meu corpo se incendeia ao sentir sua língua que vasculha meu interior com ansiedade, quase desespero. Seus gemidos me deixam louca. Suas mãos que deslizam por minhas costas cobertas pelo fino tecido da camisola me deixam louca. Eu grito de prazer quando ele, usando de uma mão, junta os fios de meus cabelos e os puxa com força e delicadeza e minha cabeça se inclina para trás enquanto ele lambe meu pescoço.

MINHA NOSSA!

Puxo o ar pela boca. Prendo a minha respiração. Meus olhos se abrem desmesuradamente. Meu coração bate aceleradamente e, embora suas carícias me agradem, estou em pânico.

QUE DIABOS ACONTECEU!? MEUS CABELOS ESTÃO COMPRIDOS!

- Demorou para notar. - Comenta ele como se estivéssemos conversando sobre a colheita das batatas ou das árvores que plantamos nos anos anteriores. - Por que me olha assim!?

- GIOVANNI! O QUE FEZ COMIGO!? - Como uma gata arisca, salto da cama e procuro por um espelho, abrindo a porta de nosso guarda-roupas estranhamente bem conservado após tantos anos sob a ação do tempo. Estreito meus olhos e me afasto de meu reflexo. Cubro minha boca com as mãos, embora isso não me impeça de gritar e gritar e gritar. Eu me viro em sua direção e se meus olhos flamejantes pudessem ferir alguém, agora ele estaria ardendo em chamas. - O que é isso? - Movo minha boca, embora eu não emita som algum. Estou muda, perplexa, à beira de um ataque de nervos. Ele cruza as mãos atrás da nuca, cruzando, também, os tornozelos, enquanto me fita com um ar de extrema satisfação. Cerro os olhos e tento controlar minha respiração. O que não consigo. Abro os olhos estarrecidos e me aproximo, receosa, da imagem que vejo refletida no espelho. Passo as mãos por entre os fios negros, grossos, macios e longos. Puxo-os até sentir dor para me certificar que estão, de fato, presos ao meu couro cabeludo. Examino meu rosto, meus lábios. Retiro, num arroubo de curiosidade, a camisola pela cabeça, lançando-a em seu rosto. Ele a pega e aspira seu cheiro com os olhos brilhantes, insinuantes. - NÃO ME OLHE ASSIM, SEU CRÁPULA! O QUE FEZ COMIGO! - Eu o fito, furiosa, destrambelhada, maravilhada, entusiasmada, enlouquecida, agradecida por ter meu corpo sadio de volta. Escondo-me dele atrás do espelho e verifico se minhas partes íntimas ainda apresentam feridas. Dou pulinhos de euforia quando minhas mãos encontram uma pele lisa, sem máculas, dor ou ardência. Ouço seu riso e, imediatamente, caminho em sua direção com os punhos cerrados. Paro em frente a ele e percebo seu olhar lascivo percorrendo meu corpo nu. Não sinto mais vergonha. Não sinto mais tristeza. Sorrio, engolindo-o em seguida. Com a voz esganiçada, afrontando-o, pergunto. - Que diabos fez comigo!?

Ele ergue seu tronco e, afagando minha bochecha, rouba-me um beijo rápido o suficiente para me entorpecer. Sorrateiramente, ele me puxa de encontro ao seu corpo e eu caio sobre ele, rolando, parando ao seu lado. Subitamente, ele rola seu corpo que, agora, pressiona o meu. Seu torso está suspenso por seus braços ao lado de minha cabeça. Sinto seu membro ereto entre as minhas pernas e diante de seu sorriso, esqueço de qualquer outro homem que tenha tocado em mim no passado. Esqueço-me do que fui somente para ser dele, para sempre, como nunca deveria ter deixado de ser. Ele enterra a cabeça no espaço entre o meu pescoço e ombro e me faz rir enquanto ronrona como uma pantera prestes a atacar. ATAQUE-ME! DESTRUA-ME!

Passei anos de sofrimento para chegar aqui e mal posso crer que estou em nossa cama. Estou curada e com os meus longos cabelos de volta. Não me importo se usou de Alquimia, Magia Branca, Negra, Azul ou Rosa-Choque. Eu tenho tudo o que amo de volta. Estou prestes a crer que a Morte não é burra ou cega ou surda ou muda. Estou prestes a crer que o Criador me fez passar por tudo a fim de que eu chegasse até aqui onde meu coração habita. Estou...

- Morgana! - Ele ergue seu tronco e me fita com o cenho carregado. - Faça-me um favor!? - Eu assinto com a cabeça e os olhos enternecidos, abobalhados. - Para de pensar e cala a boca! - Exalo um suspiro de espanto, surpresa e indignação e antes de protestar ou cuspir em sua face, ele veda minha boca com o beijo mais quente, devastador, avassalador, invasivo e pornograficamente asfixiante que já recebera. Eu o empurro a fim de voltar a respirar e, quase sem fôlego, agarrando-me aos seus cabelos, mordendo seus braços, eu ouço sua voz rouca a me dizer. - Sou o homem mais feliz do mundo. - Eu repouso minha mão em seu peito nu. Sinto seu coração. Nossos corações batem em uníssono. Nossos olhos se encontram e eu me vejo neles. Sou feliz novamente. EXUBERANTEMENTE FELIZ!

- Agora é para sempre, amor...- Balbucio, ruborizada, pois seus olhos prometem mais do que beijos ardentes.

- Para sempre. - Ele beija meu pescoço e, roçando a barba por fazer em minha pele, diz baixinho. - Podemos continuar?

Minha gargalhada sonora ecoa pelo quarto, pela sala e se espalha por entre as árvores da floresta densa onde os elementais, fadas, duendes, gnomos, faunos e sátiros vibram por nossa felicidade.

Aaah! Estou sonhando! E se for um sonho, não me deixe acordar...

'Não deixo'.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 31/01/2020
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