A CASA AMARELA - 3º Capítulo

O Testamento

Logo que amanheceu, eu desci do quarto e fui tomar café no restaurante do Hotel, que estava desde que cheguei de Londres. Não chovia, apenas aquela garoa refrescante e gostosa. Valdir como sempre prestativo e muito eficiente foi me buscar. Tinha uma sensação de que Valdir tinha sido meu pai em outras vidas. Sentia-me bem ao seu lado. Era uma pessoa bondosa, calma, serena, que transmitia uma paz. Era muito bom reencontrá-lo depois de tanto tempo. Certo que nossas conversas através de telefonemas e e-mails eram feito semanalmente, mas está junto, perto dele era prazerosa. Quando chegamos a casa, Valdir pediu-me que entrasse pelos fundos da casa, e assim poder saber os planos maquiavélicos que meus adorados irmãos ainda tinham para a minha chegada. E ouvi com certa perfeição e notei que Ester estava com os nervos à flor da pele. O advogado viria hoje abrir o testamento de papai. E pra completar ouvi quando ela disse para todos ali na mesa do café.

- Aquela infeliz vai dar o ar de sua graça. Tudo desmoronando sobre nossa cabeça.

- Deixa de ser dramática, Ester. Eu já te falei qual é o plano. Confie em mim. Aquela lá não vai ver nem a cor do nosso dinheiro. – Juliano estava ciente de que eu não colocaria as mãos na herança.

– Eu não sei se devo confiar em você. – Incrédula era a palavra certa que designava Gustavo naquela manhã. – E ainda continuou: - Se este for mais de um dos seus planos frustrados, pode desistir. Eu não estou a fim de dar vexame na frente do advogado.

Juliano dizia ser experiente no assunto. Só que eu estava exausta e precisava descansar da viagem. Minha presença só era necessária somente após a leitura, pra ter o prazer de me despachá-la pra bem longe. Da onde eu nunca deveria ter saído. – Era a palavra de ordem.

Se o papai de fato deixou alguma coisa para o meu filho, era o que eles mais temiam. Porque sabiam que eu ia me instalar de vez na velha mansão amarela.

- Eu acho pouco provável. – Juliano duvidava - Quando ela souber que papai deixou uns caraminguás para o neto, se e que esta criança ainda existe, né? Ela vai dar meia volta e vai embora.

E não é que Ester acertou um ponto a meu favor!

- Aquela ali não dá ponto sem nó. É muito bom tomar cuidado com ela. Qualquer instante ela dá o bote na gente e tira tudo.

Felizmente não fui criado por vocês, quem sabe hoje andava com um chocalho de víbora no pescoço ao invés de uma gargantilha.

Gustavo tinha um defeito: achava que só eles tinham o direito na partilha dos bens, sempre exaltado que era o homem da casa. Gabava-se que formavam uma bela família. Eu não significava nada. Logo meu filho eles haviam deixado num orfanato, dias antes de meu pai falecer. Sabiam exatamente que o velho iria bater as botas, e colocar os planos em prática, e menos um fora da parada era tudo que queriam.

Mas eu iria chegar e desfazer os planos sórdidos da corja de abutres.

Foram pegos de surpresa, eu acho. Pois fizeram uma cara de horror, quer dizer, eu já imaginava a reação deles, mas me surpreendi ao vê-los daquele jeito. Eu disse apenas:

- Olá?

Ester que abriu a porta resmungou:

- Então você veio realmente? O que quer?

E fui á medida deles.

- Se não sabe, eu tenho um filho que mora aqui.

Muito irônica, e toda dona de si, disse:

– Então errou de endereço. A única criança que existe aqui, a mãe dele já morreu há muitos e muitos anos.

Eu não me curvei às ironias dela. E quis logo saber:

- Cadê ele, Ester? Cadê meu filho?

- Que interesse é esse no menino? – Perguntou Gustavo. Nunca deu importância pra ela. Agora esse interesse?

Mas eu sabia onde ela queria chegar.

- Eu não vim discutir com você sobre isso. E não pense você que eu vim por causa desse tal testamento. Eu vim pelo meu filho.

Ester como sempre irônica:

- Você acha que eu vou acreditar nesta tua historia? Eu sei muito bem qual é o teu jogo garota. Mas vai cair do cavalo quando o testamento for aberto.

- Não estou nem um pouco interessada nisso. Se eu quisesse mixaria eu ia pra debaixo de um viaduto pedir esmolas.

No fundo eu estava interessado, sim, pela herança, mas era a parte que meu havia deixado para meu filho. E para me intimidar, continuaram com a mesma ladainha de sempre:

- Você acabou com a nossa família. Você nos desmoralizou. Agora depois de tudo que fez vem com a maior cara de pau como se nada tivesse acontecido. Descarada.

Juliano que até então não tinha se pronunciado, ironizou mais ainda:

- Que eu saiba não existe filho nenhum seu aqui.

Como já esgotada de tanto mau-caratismo, gritei aos quatro cantos da casa:

– Já chega. Deixem de ironia. Eu quero meu filho.

E toda dona de si, Ester quis avançar contra mim, porém, Marina vendo aquele circo armado, tentou acalmá-los.

- Deixe jeito não chegaremos lugar nenhum. Joana tem todo o direito quanto nós, Ester.

- Não venha se fazer de santinha, Marina. Sei que você também tá louca pra saber o que o papai deixou para você. – reclamou Ester.

- Claro que estou. E nem por isso, estou fazendo escândalo.

Gustavo se aproximou de mim, e com ódio no olhar, replicou:

- Baixa a tua bola, viu! Aonde você pensa que tá? Você não tem o direito de chegar aqui e querer saber de nada. Não devemos satisfações a você. – E como se achando a cima de tudo, me obrigou a sair da casa. Eu não era bem-vinda ali.

Mas não dei trela pra histeria dele.

- Eu vou perguntar pela ultima vez: cadê meu filho?

Foi à vez de Juliano se encher, mostrou sua outra face. Pegou forte no meu braço.

- Você não ouviu garota? Você não é bem vinda aqui. Ou será preciso desenhar pra você entender?

Desvencilhei-me dele, e falei com toda a razão que tinha.

- Eu não sou idiota assim. Eu tenho os meus direitos.

Ester riu ironizando a minha última frase.

- Que direitos? Vê se te enxerga! Você não passa de uma miserável. Pensa que nós iríamos te receber de braços abertos, depois de tudo que aprontou com a nossa família? – E numa expressão de como fosse chorar, disse mais: - você destruiu o nosso pai. A nossa família. Ele morreu de desgosto por ter uma filha tão vagabunda.

Eu sabia que aquelas lágrimas eram de crocodilo, não passava de uma farsa. Era um erro de ela pensar que eu cairia nessa armadilha. E fiz o mesmo jogo dela. E chorei, ou apenas fingi.

– O papai havia me perdoado. Eu não fiz por mal. Ele aceitou ficar com meu filho, como forma de perdão.

Mas Juliano não se comoveu com minhas lágrimas.

- Você não nos comove com essa historinha pra boi dormir. Papai tinha horror de você. Nem seu nome ele pronunciava. Você arruinou nossa família. – E crítica, Juliano sabia fazer como ninguém - Você não percebe o erro que cometeu? Você acha que pra nós é fácil ter que suportar os comentários das pessoas, os fuxicos, o povo rindo da nossa cara ou até mesmo nos discriminando por um erro seu?

- Nunca eu vou te perdoar. Papai morreu por tua causa. Você vai pagar caro pelo que nos fez sofrer.

De Ester eu realmente não esperava nada mesmo. Mas continuei com o meu teatrinho pra ver até onde chegaria.

- Eu estou arrependida. Eu só quero ver meu filho. Ele precisa saber que eu existo.

Eu me descabelei, gritei, fiz o máximo que pude, mas confesso que não comovi a plateia que ali me assistia.

- Nunca! Ela nunca soube da tua existência. E vai continuar sem saber de você. – Juliano sabia bem como dizer palavras de desanimo. Nenhum juiz vai lhe dar direitos sobre o garoto, depois que souber do belo exemplo de mãe que você foi. Desista.

E falei com todas as letras que não sairia dali sem antes ver meu filho. Ester já tinha sacado aquele papel que eu fazia.

- Você não engana mais ninguém. Sua mascara já caiu há muito tempo.

Eu estava tentando me redimir. Consertar meus erros. Será que é tão difícil assim? Tentar uma nova vida. Todo mundo tem esse direito. Porque eu não? E quem sabe recuperar o tempo perdido que estive longe do meu garoto.

- Vá recuperar seu tempo bem longe daqui. – Resmungou Gustavo.

Eu já tinha tentado de tudo. Até que quase implorando, pedi:

- Me dê pelo menos uma única oportunidade de demostrar meu arrependimento.

Mas nenhum deu o braço a torcer. Juliano, foi direto:

- De maneira alguma. Se te aceitarmos aqui estaremos traindo a honra de nosso pai.

Eu sonhava em ver meu filho. Passei noites em claro, pensando de como seria nosso encontro. Depois de oito anos eu ia ver meu filho. Que emoção!

Gustavo foi mais severo:

- Esqueceu que o abandonou pra se aventurar na vida? Deixa de ser cínica.

Ester continuou:

- Esta daí não dá ponto sem nó. Teve uma vida desregrada. Nunca deu um vintém sequer e nem muito menos se preocupou em saber como estava o filho. Se depender de mim, você nunca verá o garoto.

Marina me defendia veementemente.

- Vocês não tem esse direito. Ela precisa ver o filho. Abraçar, beijá-lo. Tenham compaixão, Gustavo, Juliano e Ester!

O delírio já tinha se apoderado de mim. Mas as súplicas de Marina não convenceram. Juliano com toda sua arrogância e falta de compaixão, me pegou pelo braço, na tentativa de me jogar pra fora de casa.

- Vocês não têm esse direito. – Foi o que eu apenas disse.

- Saia já desta casa. Você não tem nada aqui. O nosso advogado chega já, e não quero que ele lhe veja aqui. Logo porque a herança que papai nos deixou não lhe diz respeito. – Disse Juliano.

Marina mais uma vez foi em minha defesa.

- Pois ela não vai sair. Como filha, terá o direito de estar presente na hora que for abrir o testamento.

- Quanta petulância, Marina. Porque defende esta pilantra? Perguntou Juliano.

Foi nessa hora que a campainha tocou, e pela porta entrou um homem gordo e todo jeitosinho no seu terno de tweed, traje esse que eu nem imaginava existir. Ele, dali por diante o que dissesse estaria colocando meu futuro e de meu filho em jogo. Era Dr. Quelônio Buarque, advogado e testamenteiro de meu pai há mais de 40 anos. Com sua chegada o clima de descontentamento de meus irmãos tomou conta da casa. A megera era muito fingida:

- Doutor Quelônio, mas que prazer. Aceita um café, um chá ou um suco?

Doutor Quelônio apenas sentou. E disse que queria ser rápido. Olhou pra mim com uma expressão estranha.

- E você, quem é?

E me apressei em dizer.

- Eu sou a filha mais nova do Dr. Benedito.

Doutor Quelônio sorriu satisfatório e notou a expressão não muito boa na cara de meus irmãos.

- Ah, sim. Joana, o seu nome, não é? Eu me lembro de muito bem quando seu pai falava a seu respeito.

Menos mal, senti um alívio! Mas Ester era uma perfeição em cortar clima agradável.

- Mas como o senhor sabe doutor Quelônio, ela é uma filha bastarda de meu adorável pai.

Doutor Quelônio disse que mesmo assim, eu tinha o direito de permanecer. Até mesmo Valdir, o mordomo. E o descontentamento de Ester ficou estampado na cara. Valdir ali compareceu e ficou em pé, feito um cão de guarda. Eu ao seu lado pedi quase em pensamento sua proteção. Ele olhou pra mim e sorriu.

Ester foi crítica.

- Doutor Quelônio, por que o nosso empregado tem que estar presente?

Dr. Quelônio que já conhecia a natureza desagradável de Ester, não emitiu nenhuma palavra.

Juliano mais ainda.

- Mas o senhor há de convir que ela não merece a igualdade nos bens.

- Tanto quanto vocês. – Reafirmou o advogado. - Estou apenas como advogado.

Dr. Quelônio não quis se aprofundar na questão da partilha, estaria ali apenas para exercer sua função como testamenteiro. Ele sentou-se, depositando seus mais de 130 quilos. Estava ofegante, e sempre com um inalador na boca. Abriu a maleta cor de vinho. Retirou os documentos, visto pelos olhos esbugalhados de meus irmãos. A sensação que tive era que ambos estavam sendo conduzidos para a forca, tamanha era o nervosismo deles.

- Pois bem, senhores... Ele começou a dizer. Porém o que ele soltou ali, não teve diferença da mesma bomba que os americanos jogaram sobre Nagasaki. - Antes de fazer qualquer especulação em respeito da partilha dos bens, gostariam de comunicar a todos que o pai de vocês, Dr. Benedito não deixou testamento algum.

A reação de espanto deles demorou um milésimo de segundos, quando Ester com toda sua histeria, exclamou de alto e bom som:

- O quê?

- Que brincadeira é essa, Dr. Quelônio? Juliano ficou feito um cachorro quando cai de um caminhão de mudança. E para complementar o tamanho pavor que ambos sentiram, ele repetiu:

- É isso mesmo, meu rapaz. Dr. Benedito não deixou testamento.

Dr. Quelônio afirmou que meu pai, ao invés do testamento, deixou uma carta por escrito nomeando seus herdeiros.

- Porque uma carta? – Estranhou Gustavo.

Uma carta talvez desse no mesmo, eu imaginava. Afinal, o que é um papel escrito com palavras de ordem e leis?

- É um documento simples, datado do dia 20 deste mês.

Depois de especular todas as vontades e os desejos mais comuns que meu pai tinha decretado para o advogado e testamenteiro, ele começou a ler as palavras escritas a próprio punho.

A carta dizia:

“Eu, Benedito Sabatini, viúvo, residente nesta cidade, e pela lei que nos rege... Deixo em nome de meu neto, Mateus, 100% das ações da empresa B.S, no valor de 123 milhões de reais... E como ainda é menor de idade nomeia a mãe deste, como tutora legal dos bens até que complete sua maioridade. Dito isto, atesto e comprovo em cartório tudo que aqui foi nomeado. Benedito Sabatini. Em 20 dias do mês de março de 2019.”

As exclamações foram as piores possíveis ao referir-se ao meu pai pela partilha dos bens nomeado por ele para seus herdeiros. A justiça, no meu ver, foi feito. Apesar deu não ter herdado nada dele. Meu filho, Mateus é o herdeiro legítimo dos bens de meu pai..

O pior de tudo para Ester foi saber que eu fui nomeada tutora legal de meu próprio filho. Ela se sentiu acuada, impotente diante daquela situação degradante.

Continua...