parte 2 - O Homem da plateia

Estou de volta à cidade de minha revelação quanto a música. O sentimento é maravilhoso. Lembro de ter feito alguns shows logo depois do primeiro, na catedral. Mas hoje eu me sinto diferente. Pois novas experiências tenho na bagagem e álbum novo. A cidade está mais agitada e as redes sociais me lotam o tempo. Realmente estou anciosa.

É o fim de uma turnê, passamos por quinze cidades da Noruega, e todos com casa lotada. Ainda não me acostumei com essa mistura de nervosismo e prazer, mas essa é a coisa na qual eu nasci para fazer, então vamos nessa.

A noite é perfeitamente iluminada e, eu tenho uma produção maravilhosa. Chegamos no club de Bergen e logo de cara uma porção gigantesca de pessoas nos esperam do lado de fora. Chegamos cedo, bem cedo para o início. O número de fãs lá fora me assusta, para ser sincera. Tudo corre bem. A passagem de som, o teste dos plug-ins, iluminação e efeitos visuais. É hora do show. É sempre indescritível tocar para uma platéia lotada, e levando em conta a multidão do lado de fora, posso imaginar o que estar por vir. Antigamente minhas músicas eram mais reflexivas e menos agitadas, hoje em dia temos coreografias e faço de tudo para que o show seja uma experiência. Adoro ver a reação das pessoas, é como uma troca, pois faço tudo com o amor e poder ver o amor de cada que me espera entrar no palco é revigorante.

A noite, como de costume, é para mais ou menos 400 pessoas. Então sempre espero por 400 abraços, 400 obrigados na saída para casa, quase sempre conseguimos atender a todos no fim. Fico um pouco mal por deixar alguns sem autógrafos, ou apenas o singelo abraço, a tão esperada foto ou uma simples troca de palavras. Sei que isso é muito importante para as pessoas. Como artista não consigo mensurar até onde minha música vai e o resultado que ela me traz. Às vezes fico impressionada com as histórias de milhares e cartas que recebo sobre transformar e salvar a vida de alguém em algum lugar. Poder retribuir isso nas saídas de show é o mínimo que posso fazer.

Afinal quem faz a "fama" do artista são os fãs.

Então depois da pré produção vou para o camarim me aprontar. A pista deverá ser liberada para as pessoas em uma ou duas horas, então o pessoal tem tempo para relaxar um pouco. A organização do show da o sinal então enfim nos preparamos para o momento. Faço os aquecimentos vocais que antecedem a abertura. Sou interferida por Silja, que vem caminhando assustada pelo corredor.

-- Aurora, tem uma coisa estranha acontecendo.

-- como assim uma coisa estranha? É algo com o som, instrumento? A iluminação falhou? Ou o telão?

-- Não amiga, não é nada disso. Está tudo preparado e funcionando. O problema é que não tem ninguém na plateia.

-- como assim ninguém? -- pergunto e Silja da de ombros.

Corro até Andrew, Silja vem logo atrás de mim. Nosso produtor também está com o mesmo semblante da minha amiga. Como não tem ninguém? vi com meus próprios olhos a multidão lá fora...

-- Eles continuam lá fora. Eu falei com o dono do clube uma hora atrás e ele disse que todos os ingressos estavam vendidos. Tipo, sucesso de vendas e há pelo menos uma semana. Ele até já fez a nossa transferência.

-- Isso não faz sentido. -- falei, toda a banda estava ali no nosso semi círculo. Então os ingressos já haviam saído esgotados?

-- Eu sei, eu sei, mas tem que ter uma explicação.

Olho no relógio e está no horário. Eu não consigo entender nada e não sabia o que fazer. De repente, ouvimos a microfonia de alguém pegando o microfone na frente do retorno. O som diminui e dois toques são dados para teste de volume e logo uma voz masculina e rouca começa a me anunciar:

-- Boa noite, é uma alegria poder estar aqui essa noite trazendo como atração uma das revelações mais importantes de 2015 de volta a sua casa.

Me assusto no mesmo momento e todos corremos para o palco, talvez fosse um engano e agora todos estivessem lá, talvez o portão fosse aberto somente no momento exato do show. As cortinas ainda estão fechadas, os rapazes se dirigem aos instrumentos e se preparam para Runaway, a primeira música a ser tocada. É o fim do discurso da voz masculina:

-- então eu apresento ... Aurora!

Olho para Silja, que ainda está desconfiada, mas no seu lugar. Fumaça é liberada e começo a introdução da música. Alguns segundos se passam e as cortinas se abrem, a fumaça começa a baixar e vejo somente uma pessoa em toda a pista do clube. No fim da primeira estrofe da música engasgo e paro de cantar.

Isso não pode estar acontecendo! Na real nem sei o que está acontecendo. Olho para trás e lá está Andrew, o produtor com a maior cara de espanto, mas a banda não parou de tocar, Silja cantava suas partes, o tecladista estava se divertindo e o baterista ria como um bebê. Realmente aquela situação era hilária. Tudo o que consigo fazer é terminar o último refrão da música e fazer algo para tentar entender.

Olho novamente para a platéia de uma pessoa e digo calmamente:

-- Boa noite. Não sei bem o que está acontecendo esta noite. Eu esperava a platéia cheia, como de costume. Mas acho que alguém está me pregando alguma peça. Isso só pode ser uma pegadinha.

A "platéia" era um homem, alto, de cabelos pretos e barba rala. Usava camisa de mangas compridas branca, uma gravata azul escura arregaçada, mas não amarrotada e uma calça preta socialmente combinando com a sapatilha com um detalhe em prata.

Era Hick.

-- Eu precisei.

-- Ainda não entendo nada. Estou perplexa.

-- Olha me desculpe, mas não vi como fazer isso de outra forma.

Estávamos sentados na pista onde deveriam estar as pessoas que estão do lado de fora.

-- Talvez uma ligação, sei lá. Uma carta. Não precisava comprar todos os ingressos de um show.

-- Olha, eu tentei. Te segui desde Sandnes, Larvik, Oslo, Moss todas as quinze cidades onde você esteve.

Atrás da grade de proteção, Silja estava encostada na borda do palco nos observando enquanto Andrew conversava com a banda.

-- você só pode estar brincando.

-- Eu não brincaria com uma coisa tão séria. Não sabia como fazer para chamar sua atenção.

-- Bom, você conseguiu. Tem minha atenção. E espero que seja uma coisa realmente séria.

Ele me olhava nos olhos, com a boca levemente aberta.

-- volte para o palco. Você tem um show a fazer.

-- Para uma única pessoa na plateia?

Hick enfim se levanta.

-- para as pessoas que estão lá fora. Vou liberar a pista. Mas você precisa meu ouvir depois.

E assim foi feito. O show aconteceu, mesmo depois daquele estranho evento. Enfim recebi os 400 abraços no fim, e os agradecimentos por ter "oferecido o show de graça" para os fãs. Apadrinhada por Hick.

Ok. Show concluído, turnê concluída. Marcamos de nos encontrar em Moss, no dia seguinte.

-- O que você acha? -- Pergunto enquanto dirijo na noite nublada em Bergen

-- Eu não sei. Você o conhece melhor que eu. -- Responde Silja, no carona bloqueando a tela do celular.

-- Pior que não. Ele é primo do Magnus. É um cara legal.

-- Ele é um gato, sabia?

-- É sim.

Um silêncio e depois uma gargalhada.

-- Ele é maluco.

-- Um gato maluco.

-- Um gato, maluco que parou um show pra falar com você.

-- Achou que foi egoísta da parte dele? -- Pergunto esperando receber uma resposta boa o suficiente para acreditar que não. Silja desliga o ar condicionado e abre a janela para recostar na porta. Eu reduzo a velocidade. Estamos próximas da casa dela.

-- Para ser sincera, achei lindo. Ele quis fazer algo grande para chamar sua atenção.

-- E conseguiu.

-- Nem imagino o que ele te disse, mas eu vi cantar diferente hoje mocinha. E bem, ele liberou a pista para os fãs... As pessoas assistiram ao show sem pagar nada. Isso é meio generoso não é? --

Ri para mim mesma. Ela gesticulava para dentro do carro enquanto encarava o nada pela janela -- Eu fiquei observando enquanto vocês conversam. Ele parecia sincero, meio assustado, mas queria muito fazer aquilo. Eu iria gostar se alguém fizesse isso por mim.

-- Ele fez isso porque ficou envergonhado por ter exagerado. -- digo na defensiva, com meio sorriso no rosto.

-- Creio que não. Ele fez isso porque é o que você ama fazer. -- ela se ajeita no banco e olha para mim -- Tipo, ele fez para chamar sua atenção, mas não foi egoísta o suficiente para ficar com você só pra ele. Ele esperou o show acabar. Ele não cobrou pelas entradas que ele comprou, e foi tipo, 400 entradas.

Olhei para seu lado e Silja fez um gesto inclinando a cabeça em tom de quem quer me convencer.

-- Aqui estamos -- Paro em frente a casa de dois pisos e entrada em alpendre de madeira branca. Costumávamos brincar ali. -- Obrigada por conversar comigo.

-- Obrigada por ser quem você é Aurorie

-- Manda um abraço para Moly e Drake.

-- E você para o gato maluco e rico! -- Disse Silja andando para traz e acenando.

É mais ou menos cinco da tarde quando adentro as ruas de Moss, uma cidade bem perto de Oslo. Estivemos aqui há alguns dias, mas era uma noite agitada. Na ocasião não tive tempo de contemplar a calmaria desta cidade pequena e aconchegante. Dirijo alguns quilômetros antes de conferir o GPS. Não pude deixar de lembrar da noite anterior, desde Hick até o papo com Silja. Cinco e vinte, estou no lugar marcado. Estaciono o carro na entrada de carros e desço para tocar a campainha. Mesmo que não tenha chovido hoje, o gramado e calçada estão molhados. Vejo o rosto dele, o motivo daquela confusão na minha cabeça me olha pelo vidro da porta e dou um leve sorriso. Sou a pessoa mais confusa e encantada do mundo.

-- Por que você sumiu?

Ele olha para a mesinha de centro e demora para responder. Estamos na sala de visitas do interior da casa de Hick, a casa onde cresceu, a cidade onde Magnus nasceu. Usava uma camisa preta e uma calça de moletom escuro. Estava descalço, parecia fazer parte da decoração daquele lugar.

-- Aquela era a noite da minha morte.

Deixei que falasse, parecia realmente precisar fazer aquilo. Então somente escutei.

No fim entendi que eu tinha salvo sua vida, pelos motivos mais românticos e sublimes possiveis. Eu entendi toda a sua história, uma bela história. Falamos sobre seus pais, a decadência total e interna, o revólver e a catedral. Sinceramente fiquei comovida, eu o admirava bastante pela sinceridade e a energia que me passava na cor de seus olhos. Este homem me encanta. E me encantam também seus dons. O fato de não ter medido esforços para me ver, me encontrar...

-- E agora estou aqui. Virei seu fã assim que entoou a primeira nota de Life on Mars há dois anos atrás naquela catedral em Bergen. Desde então te sigo em todos os lugares, faço versões das suas músicas, vou onde você vai, compro 393 ingressos de um show para chamar de volta a sua atenção.

Silja estava certa. Não é qualquer homem que faz isso. Nunca me senti assim diante homem algum. Não somente pela beleza, mas pelo seu talento e o modo anônimo que levava e leva a vida, ele transbordava algo que em mim tbm começava a fluir, ele é um mistério, como todos somos, mas a diferença é que este é o mistério que naquele momento resolvi resolver.

Ficamos ali parados, por minutos que passavam sem a menor preocupação. E como se ele me atraísse ou coisa indescritível ele veio ao sofá onde eu estava. Eu estava desprotegida, com a guarda baixa, esperando ser atacada por ele. Mas ele não o fez. Simplesmente me olhou no fundo dos olhos.

-- Eu te amo.

Engasguei. Nada pude dizer. Sentia meu corpo ser tomado por um calor no qual não podia fazer nada. Que perfeição em um único ser. Sem pressa, nem incômodos eu o beijei. Não por ser a coisa certa a fazer, mas porque eu necessitava aquilo. Necessitava me conectar com esse homem. Minha pele se eriçava enquanto seu corpo tomava o meu ali mesmo no sofá. Era o que eu queria, e que se foda o resto das coisas, queria ser dele. Então, intorpecida por cheiros, toques e sabores deixei que me pegasse no colo e subimos para seu quarto. Fizemos amor até dormirmos abraçados enquanto a madrugada chovia rua a fora.

Hick me acompanhou de longe nos shows seguintes. Ainda não estava preparado para levar adiante a profissão. Éramos um casal, anônimos e gostávamos disso. Dizem que quanto menos pessoas sabem, mais chances algo tem de dar certo. Ele ficava entre os fãs, e daí em diante se por alguma razão se me sentisse solitária em algum show, agora eu teria alguém na plateia para chamar de meu. O meu homem da plateia.