Parte 1 - O Pianista

Digo-lhe que o que ei de contar é a história de meu renascimento. Sim pois a vida que eu levava estava prestes a chegar ao fim. Fim este que eu mesmo iria por logo que acabassem tais acontecimentos. Meu coração já havia aceitado o fim mas não contava com o mais belo momento da toda a minha vida.

Eu era um pianista falido. Não por falta de dinheiro, mas por falta daquilo que me faria viver, o amor, a música propriamente. Já havia tocado em vários lugares, com vários artistas, mas aquilo havia reunido muitos supérfluos, e sempre um show acabava em uma bebedeira ou num simples puteiro. Era um inferno.

Eu nasci no meio de músicos, meu pai era um grande maestro na minha cidade e minha mãe uma soprano excepcional, mas minhas facetas foram com os instrumentos. Meu pai, meu esculpiu da melhor maneira que pôde, e quando percebeu minha facilidade em reconhecer melodias e harmonias me tirou a infância. Eu comia música, literalmente. Enfim, nunca passamos por necessidades. Pelo contrário, a herança que meus pais me deixaram me proporcionou a vida que eu quis. No fim das contas eu era o principal pianista da cidade. Já havia gravado com bandas de renome, composto arranjos para músicas que hoje ainda estão nas paradas de sucesso. Dinheiro nunca faltou.

Mas os últimos anos vieram para me sepultar. Eu não tinha mais sentido de acordar, não precisava me esforçar pra nada, haviam dias que não queria nem chegar perto de algo que fizesse um som, comprei uma casa afastada onde somente o silêncio e natureza pudessem me seguir. Os finais de semana eram regados somente a cerveja e clássico por do sol. Qualquer um desejaria a vida que tinha, estabilidade, tranquilidade, talento e tudo mais. Mas para mim algo faltava.

Era madrugada, eu tinha levantado para um rápido copo d'água. Um pensamento macabro me rodeava cortei para a sala e abri a gaveta da escrivaninha. Lá estava o algoz, um revólver calibre 38 com todas as balas no tambor. Pensei ser aquilo o remédio para a dor que me assolava mas, na cozinha o celular tocou. Caminhei de volta com o copo na mão. Um número estranho brilhava na tela e meu rosto amassado mal conseguia abrir um olho para ler. Eu não me importei. Joguei o celular na mesa e continuei o que estava a fazer. Mas ele não parou, tocou duas vezes até que eu decidisse atender. Quem poderia ser a essa hora?

-- A-Alô

-- Oi, por favor, desculpa incomodar essa hora da madrugada, mas eu preciso urgentemente falar com o produtor musical Hick.

-- bom, é ele quem está falando.

-- cara, perdão por isso. Mas preciso muito da sua ajuda. -- a voz metálica não me era estranha, mesmo assim questionei por contado horário.

-- por quê que uma pessoa que nem conheço estaria precisando da minha ajuda, no meio da noite?

-- Meu nome é Magnus, também sou produto musical e estou precisando urgen..

Desliguei. Já falei que não ouvir nada relacionado a música. Volto pra cama. Deitado não pude deixar se lembrar do nome, Magnus. Definitivamente não me era estranho. Enfim, por incrível que pareça peguei no sono.

A semana passou como deveria passar, eu lia muito, como de costume. Pegava o carro só para espairecer, ia até a praia e sentava num banco de madeira gasto e sujo. Observava as crianças correndo na areia, gastando o tempo que eu não tive. Voltava pra casa, sentava ao velho piano de carvalho de meu pai, outra herança após a morte dos dois naquele horroroso acidente de carro que calou minha mãe e inquietou milhares e fãs de todos os lugares. O piano agora era apenas um enfeite, uma lembrança. Junto dele as fotografias sobre a tampa da calda, os rostos alegres do pai segurando seu filho único no colo enquanto creio que minha mãe tirando a foto. Em outra mamãe com seu vestido azul saindo de show comigo de mãos dadas, e eu olhando pra cima, admirando sua beleza enquanto várias pessoas em corredor aplaudiam-na. Não me evito o choro. Minhas refeições haviam diminuído, já que não sentia prazer em nada que não fosse um gole de vinho. Encho novamente o copo americano até às últimas gotas da garrafa e reclino no sofá. Dormi ali mesmo.

Haviam se passado oito dias desde a ligação de Magnus e nada demais ocorrera. Estava deprimido demais para falar de música, ou para fazer qualquer outra coisa. Não recebia visitas, não visitava, quando saia era para comer e não me importava gastar 100 ou 200 dólares num simples café que acabava numa garrafa de vinho caro. Meu rosto estava irreconhecível ao espelho e a solidão era sólida como o banco de madeira velha que eu sentava às 5:30 da manhã. Domingo sem nuvens, brisa leve e o canto das gaivotas primeiras. Eu estava péssimo. Digo, visualmente. Mas aquela cena estava mais uma vez se repetindo, só que dessa vez algo utópico acontece. De repente sinto que alguém também está setado no mesmo banco que o meu.

-- Bela paisagem, não?

-- é bem legal. -- digo sem me importar em estar acompanhando. Afinal quando foi a última vez que conversei com alguém? Talvez eu já tivesse perdido a prática.

-- desligar na cara de pessoas desesperadas não é muito legal. -- disse ele colocando as mãos para apoiar a cabeça esticando os pés.

-- quem diria, o grande Magnus, e o Hick deprimido num banco de praia. Não tenho notícias suas a décadas. A que devo a honra da "visita"?

-- Te peço desculpas pelo sumiço. Todo mundo ficou chocado quando tudo aconteceu. Meus pais e eu viajamos para outro país. Nunca esqueci dos nossos velhos tempos. Bom, por isso estou aqui e preciso da sua ajuda.

-- eu também -- digo indiferente -- também nunca esqueci de nada. Aliás, eu lembro todos os dias como se tivesse acontecido agora pouco. É bom te ver de novo. -- viro para Magnus, que permanece na mesma posição de olhos fechados.

-- Preciso de um pianista amanhã, e ninguém melhor que o criador do arranjo da canção para toca-la. Life on Mars meu amigo, seria um pecado. Lembro que tia cantou no aniversário da minha mãe e você tocava. Acha que pode repetir o feito?

-- Para Aurora?

-- É. É estreia dela na cidade. Sei que você não a conhece, mas pela nossa amizade e pelos velhos tempos eu te peço. Sei que as coisas não estão boas para você depois da morte dos meus tio, foi difícil pra mim também. Mas a vida segue Hick, não adianta agarrar-se ao passado. As coisas tinham que acontecer e tudo tem o seu propósito. Prefiro acreditar nisso, mesmo que isso não fique claro de imediato.

Eu suspiro e dou um sorriso.

-- o cachê é bom. -- Magnus fala me olhando com olhar divertido. -- sabe onde me encontrar.

Nós levantamos e com um abraço apertado deixo-o no banco e volto para casa.

No celular uma chuva de mensagens de Magnus me agradecendo, uma lista com as coordenadas do local, horário e pedindo para não me preocupar, porque a intérprete da canção cantaria na tonalidade original. O fim da mensagem era um simples "conto com você". Parecia que Magnus estava prevendo algo. Eu estava acostumado com essas tais loucuras de chegar para tocar com alguém com quem nem havia trocado um oi, nem ensaiado. Era o tal do profissionalismo e confiança. Acredite, isso é bem difícil de encontrar.

Eu fiquei horas pensando se realmente iria. Por um lado, já tinha decidido parar com a música, por outro seria hipocrisia tirar o sonho de uma moça por conta dos meus problemas. Sento novamente ao piano, relembrando memórias que nem por um milhão de anos sairiam da minha cabeça. As horas passam numa cadência assustadora. Quando vejo está bem na hora do show. Mas minha participação seria somente no final. Tinha tempo para me arrumar, agradeço por ser homem. Já de banho tomado, tento arrumar a confusão no meu rosto. Passo a máquina no 1 apenas para aparar a barba e vestindo a beca típica me olho no espelho, estou um pouco melhor que cedo, percebo que não pus um alimento na boca o dia todo. Volto à sala de estar, pego as chaves na parede mas esqueço o celular na escrivaninha. Solto um suspiro e me reclamo de ter comprado uma casa tão grade. Pego o celular e percebo a gaveta semiaberta. O brilho do revólver me encandeia e o retiro para observa-lo, não seria hoje. Talvez amanhã. Ponho o algoz na gaveta da escrivaninha. No celular milhões de mensagens de Magnus, não tenho tempo de ve-las mas creio que são pelo meu atraso. Abro a conversa a procura das coordenadas enquanto dirijo. A noite está clara e o céu limpíssimo assim como o trânsito.

Chego no lugar. Uma catedral. As ruas haviam sido fechadas então tenho que procurar um lugar para estacionar e seguir a pé por um corredor de carros na esquerda e direita. Na entrada de longe Magnus me viu e veio correndo deixando cair sua prancheta.

-- que bom que veio.

-- seus olhos de águia não falham. -- respondi.

-- Vem, estava prestes a cancelar a próxima música, mas é a sua deixa. -- falava Magnus caminhando apressado na frente, e eu guardando o celular no bolso da lapela.

Eu sabia o que fazer. Aliás, tinha feito aquilo milhões e milhões de vezes. O arranjo era meu, mas a voz era de minha mãe. Isso martelava minha cabeça a cada passo dado em direção ao murmurinho atrás de uma porta. Atravesso um lugar que suponho ser um escritório, que agora servia de depósito improvisado. O murmúrio alimenta e logo me vejo rodeado de pessoas que suponho ser a produção. Um rapaz com fones e cabos me reconhece e faz um sinal com a cabeça.

-- ok, está tudo pronto. Você chego bem na hora. Desde já agradeço por tornar esse sonho real. Ela é muito fã da nossa família, e foi pedido dela que estivesse aqui. Dê o seu melhor como se fosse a última coisa que fosse fazer na vida.

-- Parabéns meu primo, isto eu já tinha decidido.

-- que bom, Hick.

Mal sabia Magnus que era verdade.

Era um piano madeira de carvalho, negro. Não tão bonito quanto o que tenho na sala de casa, mas a qualidade da madeira era impecável. Ao meu lado direito, uma bateria prata com adereços eletrônicos, a minha frente um órgão antigo e típic o de catedrais do século passado. A fumaça provinda de uma máquina de fumaça elétrica deixava o ambiente aromatizado, o cheiro me levou aos meus tempos áureos.

Todos haviam saído de seus instrumentos e de repente eu estava só, de costas para a platéia. Eu não os via, e eles também não me viam. Uns riam maravilhados, outros choravam simplesmente extasiados. O arranjo da canção era simples. Tratava-se de um dueto voz e piano. Mas estava completamente cheio. Coloco o fone de retorno e ouço o pulsar do metrônomo, ignoro-o para deixar que tudo aconteça naturalmente. Magnus estava há alguns metros no escuro, mas pude ver o sinal indicando e Inicio a pequena introdução na melódica enquanto ouço uma voz feminina falar:

-- Life on Mars é uma música muito muito bonita e não é minha. -- começou Aurora. Tinha uma voz levemente anasalada e calma. -- mesmo que eu desejasse muito que fosse minha. Talvez até seja um pouco.

A platéia silenciou, todos estavam maravilhados e ansiosos para mais uma música. Eu pude sentir desde o momento que subi no palco que essa noite era diferente. Término a introdução e com o acorde dominante dou a deixa para a entrada do canto.

Não sei como posso explicar os fatos a seguir, mas vou tentar da melhor maneira. Você já ouviu a voz de um anjo? A nota inicial da canção era grave e gradualmente iria aumentar a tonalidade. Eu estava de costas para a interpretação angelical então o que eu podia fazer era corresponder a altura fazendo o que sabia de melhor. E não foi tão difícil, sua voz doce era como um carinho nos meus ouvidos. Naquele momento compreendi o porquê de haverem pessoas chorando na plateia. O Êxtase tomou conta de mim. Meus dedos já não correspondiam ao que eu estavam tocando, haviam ganhado vida própria. O toque do piano havia entrelaçado com aquela sublime voz que me rodeava e tomava todo o espaço ao meu redor. Mas eu não parecia estar a altura daquela interpretação. Todos os anos de prática, as horas e vastas horas compondo, a vida inteira em prol da música, tudo isso havia me levado aquele momento. Lembrei do que Magnus havia dito hoje de manha. Aurora acompanhava a harmonia como um ser divino, como se conhece cada inspiração minha ao compor o arranjo, como se tivesses feito isso milhões de vezes. Eu apenas a ouvia, olhos fechados para me conectar mais ainda aquele momento. Isso me bastou naqueles quatro ou cinco minutos de euforia que pareciam ter traduzido as imagens que passaram na minha cabeça. Tudo fez sentido novamente. O horror da morte dos meus pais deu lugar ao orgulho e a gratidão. A raiva pelo simples fato de tocar foi retraída. A ideia da morte era perdia sentido e em troca sentia no peito total conforto. Tudo naquele pequeno momento que quase recusei.

Chegamos ao então ápice da canção, depois das frases com efeitos duros e terminações tristes e conclusões sonoras, o Dueto voz e piano entrava nós últimos compassos. Era a mais perfeita combinação já ouvida. Como seres de um mesmo corpo ralentamos até às últimas notas e silêncios de life on Mars.

Não podia esperar outra coisa. Logo que terminamos a platéia inteira então entrou em colapso. Continuei na minha posição até que enfim relaxei os ombros como quem volta de um transe. Estava ansioso, queria virar e ver a face do anjo que havia derramado vida outra vez em mim. Me contive, recompus a crise existencial e sai tomando cuidado para não ser visto. Caminhei por trás do piano com cuidado para não tropeçar nos cabos, girei o corpo e desci os dois degraus. Fui de encontro a Magnus, olhos de águia, em frente a alguns funcionários da igreja e de seus ajudantes. Matinha um braço cruzado enquanto o outro ia ao encontro da boca onde reinava um belo sorriso.

-- Obrigado meu amigo, meu irmão.

-- não há de quê. Pode acreditar.

-- te falei que não iria se arrepender.

-- É... Parece que outra vez você acertou em cheio.

Lembro da frase "como se fosse a última coisa que fosse fazer na vida."

Olho para trás e uma cortina azul do tamanho de uma fachada de loja cobre todo o palco. Não podemos mais enxergar a platéia.

-- vem, preciso te apresentar uma pessoa.

Magnus saiu na frente e de longe pude enxergar aquela silhueta. Fiquei ali mesmo parado enquanto a observava. Ela usava uma calça folgada e blusa curta azul marinho que deixavam sua cintura em evidencia, sem marcas de costura. Seu cabelo era um channel loiro, quase branco. Seus olhos eram tão azuis quanto sua roupa, mas acho que era o contraste da meia luz que nos rodeava. Sua pele era clara, como se nunca tivesse visto sol e brilhava num dourado que enfatizava seus dentes. Seu rosto era fino e nariz levemente arredondado. Estava descalça, e cumprimentava toda a equipe pelo belo trabalho de hoje. Sentir seu olhar cair no meu de longe mas eu desviei. Pois já pude imaginar o que viria.

-- Aurora, venha, quero lhe apresentar uma pessoa. O cara que salvou a noite, o pianista, filho de meus tios. -- dizia Magnus alegre, mas eu não estava mais lá.

Caminhei sem pressa para o carro, alguns minutos depois lá estava eu no fatídico banco na praia. Não contive as lágrimas mas não me preocupei com isso, era noite e a luz havia diminuído enquanto a madrugada se espalhava. Dessa vez ninguém estava na areia brincando, dessa vez não tive companhia, era somente eu e lembrança daquela noite. O revólver estava nas minhas mãos, mas logo estaria no fundo do mar.

Fim

-- Está é Aurora Aksnes. Norueguesa, está aqui a pouco tempo. Aurora, esse é Henrique, é da família.

Foi a vez de meus olhos entrarem em êxtase. E cara, não é difícil acontecer estando na frente desta mulher.

-- Oi

-- O-oi. O prazer foi meu. -- falei e me arrependi. -- digo, foi um prazer tocar está noite com você.

-- Imagina, o prazer foi meu. -- Disse ela sem dar importância ao meu deslize.