LIBERTATEM - capítulo 10
Nem bem tirei os olhos dos mochileiros fujões, vi se aproximar um casal, que assistia a tudo. Examinavam os policiais atordoados e me olhavam, intrigados.
- Isso é coisa sua?
- Posso dizer que sim.
- Como conseguiu esse efeito neles?
- Não posso nem sei explicar.
- Para quem você trabalha? Alguma agência secreta?
- Tá me achando com cara de espião?
- Não, mas pode ser pelego de alguma elite poderosa.
- E um pelego, como diz, tentaria salvar dois tontos da agressão policial?
- É um dos meios das elites para cooptar e escravizar simpatizantes.
- E quais são essas elites?
- Todos os que têm dinheiro, poder.
- Sem exceções?
- Sem exceções.
- Então, se o sujeito ganhar na loteria, passa a ser da elite e mau?
- Claro!
- Vocês não acham isso meio infantil e sem fundamento?
- Informe-se cara! Estude e veja como as informações sempre foram manipuladas. Quem tem acesso a dinheiro sempre acaba se unindo às elites e se aburguesando. Não há burguês bom. Todos devem ser mortos, para o povo assumir seu próprio destino.
- E se todos os burgueses, ricos ou abonados forem mortos, as coisas se ajeitarão?
- Claro! É o único jeito.
- E vocês liderariam o povo? Vão se contentar com pouco dinheiro e nenhuma regalia? Sei de muitos “idealistas” políticos, acadêmicos, militares, funcionários graduados, que ganham bem, têm muita mordomia e sempre querem mais, alegando direitos adquiridos.
- Se têm direitos, podem usufruir deles.
- Mas não é preciso que todo cidadão tenha acesso aos mesmos direitos?
- A massa tem de ser dirigida, controlada, até poder se conduzir por conta própria.
- E quem decide isso?
- Os líderes naturais, que se valem dos princípios sociais justos.
- Os mesmos princípios que os tornam ricos e deixam a massa pobre?
- Isso é temporário. É preciso.
A conversa se estendeu, e me informaram que a liberdade viria aos poucos para o povo, porque como receberam informações e princípios errados, nocivos, retrógrados, teriam de ser doutrinados para entender a nova realidade. Perguntei se a nova realidade seria abrangente, com entendimento completo sobre a natureza, o mundo, os povos, o universo. Nem terminei de falar e já disseram que nem perdesse tempo com tanta prosa, porque só interessava entender a cadeia de comando, como contribuir com os interesses do Estado, participar de todas as atividades exigidas e agir de acordo com as exigências legais da nova ordem.
- E a liberdade? O idealismo? Novas fronteiras de conhecimento?
- Teriam de se adequar aos interesses do Estado.
- E se entrássemos em contato com civilizações extraterrestres?
- Teriam de se aliar ao nosso governo ou seriam consideradas inimigas.
Desisti. Deixei-os falando sozinhos e segui, sentindo-me vazio.
Dividimo-nos em ideologias, tendências, partidos, projetos sociais, mas a estrutura que cultivamos é sempre a mesma: mandantes e mandados, não importando os rótulos. Não há um só caminho para que se atinja o autogoverno, porque todas as iniciativas sempre focam a perpetuação do poder, caso o alcancem. A ideia é ceder liberdades, ajeitar algumas melhorias, investir um pouco nos mais pobres e agradar os mais ricos, apenas para ocupar todos os escaninhos do poder e manter tudo do jeito que sempre foi, só parecendo novidade.
Minha cabeça pesava, pois nunca havia filosofado tanto, nem lamentado a realidade.
Quanto mais observava, menos consistência percebia.