A ÚLTIMA RECONCILIAÇÃO
CAPÍTULO 04
Segunda-feira preguiçosa, enjoativa, Marli não se sentia bem. Preferia não ter ido trabalhar. Mas foi. Agora é esperar o dia passar. Esfregava o pano quase úmido na cerâmica como quem quisesse desenterrar de baixo da poeira o rosto de alguém. De alguém que se chamava José Roberto.
— Por que não veio? Perguntava para si mesma e tentava responder.
— Não foi por querer. É como Celina falou: Mais cedo ou mais tarde eu vou saber.
Chegou a hora de ir embora. Não tinha porque ficar ali. Já cumpria sua tarefa. Já garantira para aquele dia o pão de cada dia. Apressou o passo para chegar bem rápido em casa. Queria mesmo era tomar um bom banho e dar uma boa esticada no corpo. Seus ossos doíam como se tivessem sidos torturados. Caminhava a passos largos e tão presa a seus próprios pensamentos que nem pressentiu a aproximação da bicicleta de Carlinhos.
Carlinhos fez questão de tirar fininho na moça. Claro, era só para chamar atenção. Não estava treinando para alguma disputa de bicicross e nem estava usando-a como baliza. Era só para chamar mesmo a atenção e chamou. Ela se assustou, mas não entendeu o que Carlinhos queria. Não resistiu o rosto dele virado para ela e sorrindo. Sorriram juntos e foi só.
Chegou a sua casa. Tomou banho para se livrar do suor misturado com poeira e desencanto. Descansou um pouco.
Quarta-feira. Marli estava confusa. Agora era José Roberto e era Carlinhos em sua cabeça. Tentou se esquecer do segundo, mas não conseguiu. Se for só para chamar a atenção que Carlinhos tirou aquele fininho de bicicleta nela, chamou. Se tivesse sido só para dizer para ela que ele existia, disse e as palavras expressas naquele olhar agora ecoavam na sua mente. Se tivesse sido só para plantar uma sementinha para ver se germinaria, plantou e ela começava a germinar. Se tivesse sido para deixar registrado alguma lembrança, conseguiu. A imagem daquele sorriso ficou gravada no pensamento de Marli. Tentou ser justa com os dois. Era a única coisa que podia fazer. Dividiu o tempo democraticamente como se divide esse tal de horário político. Resquícios da maldita ditadura militar. José Roberto tinha direito de ter mais tempo. Tinha a seu favor dois momentos como representação, ao passo que Carlinhos tinha apenas o fininho de bicicleta e aquele sorriso sob o olhar penetrante.
Contou para a irmã. Agora tinha dentro de casa alguém com quem compartilhar os sentimentos. Não precisava mais esperar por Celina. A irmã estava ali. Três anos mais velha, experiente, namorava sério em casa. Já tinha passado por tudo isso que Marli estava passando agora.
— O que vou fazer? — perguntou Marli depois de expor a situação para a irmã.
— Se eu fosse você, daria uma chance para Carlinhos. Ele me parece ser um cara legal.
— E o José Roberto?
— Olha. Você não é culpada se ele não pode vir domingo. E depois, vocês só tiveram uma paquera. A gente só precisa ser fiel quando a coisa se torna séria. Coisa de compromisso. Uma paquera apenas não é digna de fidelidade.
— E como vou me encontrar com Carlinhos?
— Sei lá. Bola um jeito.
— Não tenho nenhuma ideia. Só se eu encontrá-lo lá na pracinha.
— Que tal na casa dele. É só fazer amizade com a Carol.
— E aqui em casa? — indagou Marli revirando-se sobre a cama apoiando seus seios na maciez do travesseiro.
— Só se for um dia que nem papai e nem mamãe estiver presente e se ele topar. — arrematou a experiente irmã que paquerou todos os rapazes da vizinhança e agora parecia querer ensinar a irmã os macetes e truques para torna-la uma garota desejada. Riram simultaneamente e Maria repetiu o riso batendo levemente nas costas da outra.
— Juízo, Garota. — e saiu.
Marli abraçou apertadamente o travesseiro e pensou em Carlinhos. Ouviu dizer que era excitante acariciar um peito peludo e Carlinhos o tinha. Aquele rosto moreno forte, aqueles cabelos e olhos castanhos. Aqueles lábios carnudos ela os queria para si neste momento.
Deu asas à imaginação. Fantasiou um encontro numa cachoeira que ela conhecia. Imaginou-se beijando os lábios salientes de Carlinhos. Acariciando os pelos que José Roberto, loiro, não tinha. Arrependeu de ter colocado José Roberto na cena. Forçou um pouco e o tirou do script. Voltou a ficar a sós com Carlinhos na tarde ensolarada.
Decidiu parar com a imaginação. Saiu para a rua e deu de cara com Carol. Não hesitou. Disse um oi simpático com a moça que correspondeu com um olá acompanhado de um sorriso.
— Bem. Já é o começo. — pensou consigo.
Voltou para dentro, sentou-se no sofá e começou a assistir novela.
Quinta-feira. Marli estava decidida. Na primeira oportunidade daria uma chance a Carlinhos e uma chance a si mesma. Achou engraçado o modo como pensava e falava de si. Até parece que já havia paquerado várias vezes. Não, sabia que não. As vezes esquecia. Mas no fundo sabia persistia a certeza que aquele sábado na roça com seu primo fora a primeira e única vez até aqui. Celina, um ano mais velha, já havia paquerado muito e com vários rapazes. Ela, porém, só aquela vez e agora buscaria uma segunda oportunidade.
Chegou à janela e deixou ficar-se um pouco. Daí a alguns instantes passou Carlinhos que a olhou e deixou florescer um sorriso nos seus lábios. Marli correspondeu. Carlinhos não pensou duas vezes. Manobrou a bicicleta e aproximou-se da janela.
— Oi.
— Oi.
Olharam mutuamente nos olhos um do outro e Marli até esqueceu que havia um pedaço de parede entre eles.
— Aquele dia você se assustou? — perguntou o rapaz para que o diálogo não ficasse só no oi.
— Segunda-feira? Não.
— Depois fiquei pensando se não foi vacilo eu ter feito aquilo.
— Ah! Então você se arrependeu.
— Se tiver te assustado, eu me arrependo e te peço desculpas.
— Bem. Assustar. Até que assustou, só que o teu sorriso me acalmou.
— Nunca pensei que meu sorriso pudesse substituir um calmante. Disse humorizando o diálogo. — Marli que tinha falta de jeito para isso encontrou motivação agora, sabe se lá onde.
— Sabia que os calmantes viciam? Quanto mais você toma, mais dependente você fica.
— Sabia. — respondeu o rapaz.
— O teu sorriso também é assim. Achou que já estou viciada só com aquela dose.
— Pode deixar. Pode ficar tranquila. Se depender de mim, sorrisos não vão te faltar.
— ...
— Bem. Preciso ir embora. — falou, mas não se movimentou. Só percebeu a aproximação do rosto redondo de Marli com os olhos cerrados. Beijaram-se. Repetiram o beijo e ele se foi.
Do outro lado da rua, uma mulher fechou a janela com força só para dizer que foi testemunha do ocorrido. Mas Marli pouco se importou. Estava feliz.
Assim que teve oportunidade, contou à irmã. Esta também se alegrou.
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