A CHEIA DO RIO BAETA

O carro da defesa civil passou avisando que a população devia procurar locais mais seguros porque havia grande possibilidade de enchente nas áreas perto do rio.

A meteorologia avisou que a combinação da frente fria vinda do Sul com o calor e a umidade vinda do Norte, mais os ventos soprando do mar na direção do interior, iria provocar um verdadeiro diluvio.

Por instrução do prefeito, os feirantes mais que depressa, trataram logo de guardar as mercadorias no mercado público que ia ficar fechado e a chave na mão do Cabo Asfora que está sempre no comissariado.

Ele não tem família na cidade e por ser unha de fome como seus parentes libaneses, em vez de alugar um quarto na pensão, mora no quartinho dos fundos daquele prédio velho e fedorento.

Por causa da confusão e do falatório daquele mundão de gente pelas ruas, a freguesia fiel do bilhar de Tota Medrado ainda não tinha chegado e talvez nem viesse, porque as notícias que eram passadas nos repórteres da boca a boca, eram cada vez mais desastrosas.

Quedas de pontes, morte de famílias inteiras nos carros arrastados pela correnteza, queda de raios e de árvores, um verdadeiro pandemônio.

Marculino estava fechando uma das portas quando avistou seu Olegário fazendo gestos para ele esperar. Virou-se para dentro do bilhar e disse:

- Seu Tota, hoje a gente vai ouvir mentira da grossa por causa dessa chuva. Seu Olegário está vindo aí com seu Rufino dos bois...

- Olhe Marculino, se você der corda para ele se soltar ou comentar qualquer coisa das mentiras dele, eu vou dá-lhe um pisa de virola.

- Ôxe seu Tota. Isso lá é coisa que se diga...

- Eu tô lhe avisando seu cabra, abra do olho.

Tota Medrado veio para a porta para receber os clientes ilustres.

- O senhor ainda por aqui seu Olegário. Se a cheia chegar como está sendo avisado, não vai dar para o senhor ir para a sua fazenda.

- Não se preocupe comigo não, meu filho. A Toyota é nova e cheia nenhuma me mete medo não.

- O senhor já viu muitas cheias bem maior do que essa, não foi não seu Olegário? (Tota Medrado rosnou entre dentes)

– Marculino...

- O que é seu Tota? (respondeu Marculino com a cara mais cínica do mundo)

- O que foi que o bichinho fez Tota?

- Eu já disse a ele seu Olegário, que no serviço de garçom, o cabra não deve se meter nas conversas dos clientes, mas é mesmo que nada...

- Deixe ele homem, você sabe que comigo não tem problema. Eu vejo Marculino como um neto. Gosto muito dele. É um rapaz bem-comportado, educado, que trata todo mundo muito bem.

- Tá vendo seu Tota, só o senhor que não reconhece...

- Olhe menino, eu mais seu Rufino aqui, já passamos por um bocado de perrengues, não foi não, seu Rufino.

- Ô se foi. Uma vez mesmo só não perdemos uns bois, graças à mão firme de seu Olegário. Foi na cheia de 65. Lembra disso seu Olegário?

Marculino trouxe a bandeja com dois copinhos, a garrafa de conhaque de alcatrão, dois copos americanos e uma cerveja véu de noiva.

Serviu as doses de conhaque, abriu a garrafa da cerveja e encheu o primeiro copo sem colarinho (seu Olegário falou com a voz embargada pelo queimor do conhaque)

- O meu é com colarinho grande.

- Eu sei seu Olegário. Esse daqui é para seu Rufino que só gosta de cerveja assim.

- Tá vendo Tota, como esse menino me trata bem? Por isso que eu gosto dele, é que nem que fosse um parente meu.

- Mas ele é muito saliente seu Olegário. Gosta muito de dar pitaco nas conversas dos clientes. Por isso que de vez em quando eu tenho que chamar a atenção dele.

- Ô seu Olegário, como é que foi o caso dos bois de seu Rufino?

- Marculino mais tarde a gente vai ter uma conversinha, viu? Acho que hoje você vai precisar dormir aqui. Tá me entendendo, né?

- Ôxe seu Tota...

- Tá avisado, né?

Seu Olegário, com o braço apoiado na mesa, segurando o copo na altura dos olhos, fez aquela cara de quem abre uma janela para comtemplar o passado através do amarelo pálido da cerveja e começou a narrativa com a voz pausada dos verdadeiros contadores de histórias.

- Eu me lembro como se fosse hoje... parece que estou vendo tudo de novo...

Era boquinha da noite. Os dez bois que eu tinha comprado a seu Rufino estavam na carroceria, na boleia, eu mais seu Rufino indo para a fazenda, para comer a buchada que Maria tinha prometido a ele no dia do batizado da neta de comadre Cotinha.

O rio Baeta estava cheio pela boca.

A força da água era tão grande que já tinha feito um estrago da peste.

A rampa de subida para a ponte de quem vem do lado da pista ainda estava resistindo, mas a do outro lado a água já tinha levado junto com os pedaços da madeira do meio.

O que me valeu foi porque eu tinha trabalhado na maior parte da construção da ponte e sabia muito bem a largura do Baeta naquele ponto.

Parei aprumado para a rampa quando faltavam uns 50 metros.

Danei o pé no acelerador com o bichão desengrenado, quando o motor pegou o máximo de rotação, gritei no meio da zoada, se segure que é agora, engrenei uma terceira e o caminhão danou-se na carreira, subiu a rampa, quando estava no finzinho, toquei de leve no freio.

Com o soluço, ele pulou por cima do rio e na velocidade que a gente vinha as rodas de trás nem bateram n’água quando a gente caiu do outro lado.

Engrenei uma quarta e saímos dali na maior carreira.

Os bois nem deram fé da manobra... lembra disso seu Rufino?

ADVERTÊNCIA

Este texto foi produzido tentando reproduzir a maneira Pernambucana de falar. Nem sempre erudita, mas lindamente melodiosa.

(Continua em RAIO DE RETARDO)