A gigante e o profeta

A gigante e o profeta

Cinzas sem pé

nem cabeça: em fé que

a gigante vem.

(Haikai da Salvação)

No capítulo anterior o leitor soube como os amigos Babá e Francinete escaparam no incêndio do Gran Circus Norte-Americano. Foi terrível, você acompanhou, eles fugiram por um rasgo feito pelo moleque na lona quase derretida. O que pouca gente soube, e ainda ignora, é que a elefanta Semba foi referida na mídia da época como sendo assassina de alguns e como salvadora de outros. Isto tudo pelo fato dela ter pisoteado muita gente devido ao pavor que a coitada também sofreu. Claro! Bicho também tem medo, ora! Porém, ao mesmo tempo, o desespero da elefanta amestrada fez com que sua gigantesca força rasgasse parte da lona e abrisse passagem, não só para o seu imenso corpo passar, mas permitisse a fuga de algumas dúzias de pessoas pela abertura repentina. Pois é, cena horrorosa: Semba pisoteou pessoas aos montes, em contrapartida criou rota de saída para outros tantos sobreviventes. O que aconteceu depois que a elefanta “desembestou” assustada pelo buraco da lona do circo? Para onde foi aquela pobre paquiderme apavorada? Bem, isso as rádios não explicaram, tampouco os jornais trouxeram a público o paradeiro do animal. E é por isso que convido você leitor a saber o que aconteceu depois, a conhecer mais um pouco da nossa história fluminense em via de esquecimento.

A elefanta Semba correu porque viu a enorme fogueira multicolorida arder em chamas e acabar com o tão esperado espetáculo do Gran Circus Norte-Americano, foi o que relatou Ribamar Fonseca, sobrevivente do espetáculo circense mais triste que já existiu. De acordo com os jornais, deveria durar mais de duas horas o conjunto das apresentações mambembes, mas os olhos daquela paquiderme indiana notariam de imediato as labaredas que, em menos de dez minutos, resultaram na maior tragédia circense do mundo. Décadas depois, o professor de Artes Cênicas da Universidade Federal Fluminense, o teatrólogo Ribamar, outrora o menino Babá das fotos de jornais, nos contaria essa história. Mas, desta vez, com olhos de adulto; de modo muito mais consciente acerca da importância de retomar a narrativa do caso, pois, na opinião do professor, “teve sim, e ainda tem, muito caroço nesse angu”.

Tempos depois, o empresário do ramo de transportes José Datrino, acabado de chegar a Niterói para uma ajuda humanitária, deparava-se com aquela exótica e terrível cena, na qual a gigantesca Semba havia pisoteado pessoas, e o fogo infelizmente carbonizado a maioria delas. Se fôssemos nós a assistir tamanha tragédia, decerto seríamos tocados pela crueza da visão dos destroços queimados e espalhados pelo solo. Bem, com o dono da transportadora fixada no bairro de Guadalupe, na Zona Norte do Rio de Janeiro, não foi diferente: José Datrino prostrou chocado frente à imagem de um palhaço em crise de choro segurando nas mãos uma mamadeira queimada — e o silêncio significou mais do que qualquer explicação. Andando choroso e chocado, o empresário mirando ao redor visualizou uma boneca enegrecida pelas cinzas e jogada ao canto, indicando falecimento de algum serzinho inocente. Sim, boneca queimada no acidente é sinal de quê? Cruel, duro, tristíssimo, impossível não tocar no fundo da alma de qualquer cidadão. Se fôssemos nós leitores a nos deparar com a medonha paisagem, provável que pensaríamos como o dono da transportadora, ou melhor não pensaríamos, ficaríamos assombrados, esvaziados de sentido, sem palavras mesmo. Do mesmo modo que o senhor José Datrino ficou e ajudou muito com as doações, sua gentileza iria além de uma oferta em dinheiro — e a sua fama de pessoa gentil marcaria para sempre o imaginário desse nosso país carente de gentilezas. Acaso mirássemos o semblante daquele outro palhaço argentino, de olhos ensombrecidos por causa da maquiagem borrada de lágrimas, a contemplar os restos do fogo maldito, caminhando e arrasado sobre as cinzas trágicas da morte grudadas no rosto, diríamos sem dúvida que foi o fim, ponto final de muitas histórias — um corte nas linhas daquelas vidas de personagens reais, sem nada mais pra contar ao mundo. Porém, não foi bem assim, histórias não morrem; dores e traumas se perpetuam; espaços topográficos se tornam lugares de memória; enfim, continuam —assim como as histórias de Ribamar Fonseca, Francinete Ventura e José Datrino continuaram, modificaram-se e construíram novas histórias.

(Abramos parênteses agora para registrar que, nessa época, o Hospital Escola Antônio Pedro estava em greve. Por causa das péssimas condições, os estudantes cruzaram os braços. Contudo, a emergência teve que reabrir às pressas suas portas, a fim de atender as vítimas do incêndio que matou e feriu centenas de pessoas no Gran Circus Norte-Americano).

Enquanto as vítimas do incêndio eram atendidas no Hospital Antônio Pedro, na rádio divulgavam o horror do acontecido. O locutor não fingia o sentimento de tristeza absurda com o anúncio terrificante, era o seu coração que falava, gaguejava sem perceber; e uma ou duas vezes engasgou falando. Foi uma ferida que se abria na alma, não só da cidade de Arariboia mas do Brasil e do mundo. Ao clamar pela ajuda do povo, o radialista mobilizava a quem pudesse contribuir urgente com suprimentos de primeiros socorros. “Qualquer coisa nos serve, a cena é apavorante meus ouvintes”, diria o funcionário da rádio. Pedia sim, o máximo que houvesse de ajuda seria válido para as vítimas queimadas pela dantesca tocha que deixou cicatrizes no espírito dos brasileiros.

E assim, com nó na garganta ao imaginar o fato, Lauro Ventura redigiu a primeira parte do seu primeiro livro jornalístico. Mal sabia ele que pararia por aí, seria só uma página de redação e fim da linha, um ponto final na vida e na enunciação traumática.

Fonte: https://diariodapoesia.com.br/2019/04/a-gigante-e-o-profeta/