O PICADEIRO DAS CINZAS: UM ROMANCE HISTÓRICO (capítulo 3)

(Continuação do capítulo O ensaio)

Sentado em uma das poltronas, Lauro não disfarça o queixo caído frente à plasticidade lúdica incomum. Absorvido e estupefato, deslumbra-se com a perfeição da articulação corpórea excessivamente dinâmica. Quer coisa mais bela e humana que isso? Abaixo o teatro parece estar de vazio. É só mais um treino. No palco, o homem bem mais velho e experiente é Ribamar Oliveira, o outro bonito e torneado é Marcílio Curumim; o primeiro completou mais de meio século de carreira como professor do curso de artes cênicas; o outro é aluno jovem e bem disposto, um quase adolescente. São eles os responsáveis pelo vai e vem de braços e pernas idênticos que entorpece o jornalista Lauro — e por pouco ele não esquece da hora combinada. Infelizmente o entrevistador é obrigado a interromper as manobras gestuais necessárias às bases de formação de atrizes e atores no aguardo de qualquer trabalho dramático que apareça de súbito.

— Professor Ribamar Oliveira! A nossa entrevista, lembra? Estou esperando.

— Desculpe meu caro. Exagerei no treino hoje. Vida de artista é assim, estejamos sempre preparados, pois pode surgir um papel de hora pra outra.

E de fato, diante desse empenho típico dos atores, Lauro Ventura pôde agorinha comprovar a eficácia do treinamento. Ribamar no auge da sua terceira idade dá um salto que poucos adolescentes ousariam. Uma acrobacia das mais plásticas que o jornalista presenciou. E isso sem intenção nenhuma de ostentar a excelente forma física. Saltou naturalmente, simples, como se tivesse nascido para atirar a si mesmo no mundo, jogou o torso girando dos três metros que separavam o pavimento superior do estabelecimento das poltronas lá embaixo. Incrível. Ribamar afirma que o ator deve manter-se tonificado: “fazer do corpo instrumento de trabalho aliado, e nunca ser encarado como entrave de carne e osso, ou um fardo qualquer. Cada corpo é uma escultura talhada por algum deus misterioso”, emendou. Seja um tipo de papel secundário ou mesmo representação de protagonista, não importa para o professor Ribamar, se é artista brasileiro, ele não mede dificuldades, sempre pronto à interpretação e aos seus maiores esforços. E por isso a valorização do físico importa tanto ao profissional das artes teatrais, isso se o trabalho for mesmo levado a sério, claro!

O recalque de Ventura

Palhaçada é:

Lembrar tão colorido

O não vivido.

(Haikai de (des)Ventura)

A ideia de entrevistar pessoas que sobreviveram ao incêndio do Gran Circus Norte-americano partiu de uma cisma pessoal. Uma ideia que aporrinha Lauro já vai lá um bom tempo e, indiscutivelmente, segue fustigando o pensamento. Sim, algo que acompanhou a juventude do jornalista Ventura até a vida adulta, impertinência, talvez. Embora ainda nem bem esteja com seus 36 anos completos, ele guarda lembranças inoportunas da infância, coisas de menino mesmo que quer algo e não tem. Quando era moleque manifestou paixão por qualquer assunto relacionado a circos. Sim, lonas coloridas, animais amestrados, malabaristas, palhaços e tudo mais. Sabe-se que em sua meninice nunca assistiu a espetáculos de leões, girafas, trapezistas, mas seus olhinhos brilhavam tanto quando anunciavam no autofalante sobre as atrações... olhinhos que reluziam tal qual as bolinhas de gude coloridas que costumava colecionar. Ah! Que vontade de ir! A criança nutria desejos absurdos de conhecer o picadeiro. As lonas e as armações por dentro impressionavam até nos filmes que assistia. O pequeno Lauro mostrava-se embasbacado com as histórias narradas e aumentadas pelos garotos que já frequentaram atrações circenses, mas elezinho não, Tadinho, nunca viu um picadeiro de perto!

— Mãe, por que não podemos ir ao circo no dia meu aniversário? Vovó me deu dinheiro, eu pago!

— Qualquer outro dia te explicarei, agora você é novinho demais pra entender.

Obviamente, Ventura por aquela época (ainda o Laurinho) não entendeu de fato a recusa de dona Francinete, senhora sua mãe, teimosa, calada e amarela, fazendo sinal de não com a cabeça. Dizem que carregava um trauma com ela, além de uma anemia crônica a enfraquecer as pernas inchadas e roliças, surgiram-lhe dois calombos grossos de reumatismo nas costas. E o sobrenome herdado do falecido esposo era por demais sugestivo, Francinete Ventura, com sucesso no nome e desventura no espinhaço dolorido. As vizinhas faziam piadinhas com o os aspecto de caracol que o envergar do corpo por causa da coluna assumiu durante o caminhar. Uma ida na esquina revelava motivo de implicância. Contudo, sabe-se que de fato isso nunca incomodou Francinete, havia algo mais perturbante que zoação de vizinhas: um trauma de quando a senhora Ventura era moça ainda, solteira e graciosa — e isso dava tremedeiras nas mãos vez ou outra. Porém, necessário enfatizar que somente confidenciou ao filho sobre isso quando ele terminou a faculdade de jornalismo com muita preguiça. Dizem que Laurinho quase jubilou o curso universitário devido a tanta maconha que consumia junto aos amigos do centro acadêmico. Certa vez, ainda criança, voltando de um exame de fundo de olho realizado no antigo hospital do IASERJ de Niterói, por causa da futura cirurgia de estrabismo que o obrigaram a sofrer, “elezinho” insistiu outra vez com a mãe no assunto de ir circo.

— Vamos mãe, olha que coisa linda. Tem elefante.

— Não insista, senão não tem lanche na Solmar não hein!

(Continua...)

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Erick Bernardes
Enviado por Erick Bernardes em 05/04/2019
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