o personagem?

De repente, como um furto no centro da cidade, sem qualquer aviso prévio, Sumério sonhou. Foi a primeira vez que ele havia sonhado em sua breve existência. O pobre rapaz tinha 24 anos e morava sozinho num apartamento pequeno de subúrbio. Conhecia pouquíssimo sobre a vida e as pessoas que lá viviam – nutrindo interesse apenas por uma igualmente jovem moça chamada Violeta, de quem ele não conseguia formar uma aparência concreta, o som da voz ou os trejeitos do olhar. Mas, de algum jeito, sentia sua presença a todo instante.

Ao contrário do que a humanidade está acostumada, com sonhos delirantes e sem uma aplicação prática – afirmação que gera discordância, reconheço –, para Sumério, o sonho foi apenas uma voz o fazendo uma revelação. “Nada que você toca, vê, ou sente é real, Sumério”, dizia a voz, “Você não é real, as pessoas com que você convive não são reais, acredito que sua alma não seja real e, em última instância, eu também não sou!”. Cada palavra proferida deixava tudo aquilo mais misterioso e extremamente confuso. Sumério não sabia o que fazer. Por isso ficou quieto, esperando, talvez, mais informações reveladoras da mística voz que o envolvia. “Bem, é isso...”, oscilou, pela primeira vez, a voz, “não sei se existe mais o que te dizer. Você é um personagem. E um bem raso, inclusive.” E depois de um angustiante silêncio de alguns bons minutos, a voz sentenciou: “Preciso ir”.

Sumério acordou cansado, vítima do sonho desgastante e revelador que tivera na última noite. De fato seria ele apenas um personagem? Sumério ainda tinha dificuldade em entender o que aquilo queria dizer e quais seriam as implicações disso. De qualquer jeito, precisou levantar e seguir seu rumo pro trabalho no escritório, onde ficaria digitando informações que ele não entendia até bater um sino que o legitimava a ir embora.

Todos os dias anteriores ao que estamos convencionando chamar de hoje, essas horas preso no escritório sempre foram exatamente iguais. Um bom dia pro conhecido aqui, um sorriso ali, e volta pro computador. Levanta da cadeira, bebe um gole d’água no bebedouro encostado na parede cinza, e volta pro computador. Sumério não pensava, e, na verdade, nem tinha no que pensar, era só continuar fazendo seu constante trabalho manual.

Entretanto, nesse dia específico, o primeiro depois do sonho que aparentemente mudaria a cabeça de Sumério pra sempre, ele pensou. Ficou o dia todo encarando seus colegas, buscando algum resquício de evidência que tudo aquilo seria uma gigante fraude, que nada seria real. E achou. Achou várias. Nada fazia sentido. Sumério se sentia encabulado de nunca ter percebido isso em sua vida, mas agora era esdrúxulo de tão evidente como aquilo tudo não era real. A primeira pessoa que o fez perceber a óbvia falsidade que vivia foi uma colega de trabalho, de quem ele não sabia o nome. Isso o fez pensar que não sabia o nome de ninguém por ali, ninguém mesmo, nem do patrão, nem da faxineira. Nem de seus pais. Aliás agora Sumério, pela primeira vez, percebeu que não lembrava da existência dos seus pais. Inclusive, por um breve instante, Sumério não conseguiu resgatar em sua memória como ele mesmo era chamado. O pânico durou quase um minuto e foi substituído por uma gigantesca sensação de alivio ao sentir o nome Sumério preencher sua cabeça.

“Ei, você, bebendo água!”, disse Sumério, “nunca tinha te visto por aqui! Qual o seu nome?”, Sumério já havia sim a visto várias vezes, e inclusive a cumprimentado em dado momento, mas achou melhor fingir que nunca tinha a percebido pra justificar o desconhecimento do nome da moça. Após uns quarenta segundos de total espanto da mulher, primeiro por uma outra pessoa vir dirigir a palavra, depois por de fato não ter qualquer memória de seu nome, ela disse, num misto de curiosidade e medo “Marconda!”. Os dois ficaram se olhando por alguns minutos sem saber o que dizer. A cabeça de Sumério voava, ele nunca tinha falado com ninguém diretamente e agora sabia o nome da moça loira que sentava do outro lado do escritório. “Bem, Marconda, você também demorou pra lembrar seu nome? Não acha isso estranho?”, Sumério já começa a demonstrar desespero, os olhos se agitavam e a encaravam de cima a baixo, o suor já mostrava suas garras e a boca ficava cada vez mais seca. Sumério estava a ponto de explodir e, para piorar tudo, Marconda não dizia nada. Ficava lá, embasbacada, olhando pra Sumério como quem olha pra luz branca no fim do túnel. “Mulher, diga alguma coisa! Está me apavorando!”, bradava Sumério, totalmente aflito. Marconda, sem dizer palavra, disparou em direção a saída do escritório. A primeira reação de Sumério foi querer ignorar aquilo tudo: a conversa, Marconda e a correria, pra então voltar a sentar em sua cadeira. Teve que fazer um esforço quase animalesco pra vencer essa vontade que obscuramente o dominava. Olhou pra todos a sua volta, que sem qualquer dúvida haviam visto a cena, os gritos e por fim a teatral correria, mas ninguém nada falava. Todos de olhos muito bem atentos em suas funções. Sumério correu para alcançar Marconda.

Depois de descer os quatro lances de escadas que deixavam o escritório acima do nível da calçada, chegou na rua e não via mais a moça loira do escritório. Várias pessoas andavam para várias direções, todas no mesmo ritmo e usando roupas em tons de cinza. Sumério olhou pra baixo e viu que também vestia um suéter e uma calça, tudo cinza. Aquilo o estava deixando totalmente angustiado. Depois de olhar para a esquerda, viu Marconda correndo em direção à direita. Foi atrás. Cada esquina que a mulher virava ele se via aproximando e depois de uns dez minutos numa perseguição cinematográfica, quando Sumério já podia quase a alcançar com as mãos, a moça parou. A parada foi tão repentina e não humana que fez com que Sumério não conseguisse parar a tempo antes de se chocar com a moça. Inevitavelmente, os dois caíram ao chão. Ambos levantaram e Sumério, no desespero, perguntou “Marconda! Por que correu? O que está acontecendo?”, e como resposta, obteve um longo suspiro, seguido de mais correria. A cena da perseguição ocorreu mais umas três vezes, todas exatamente iguais. Sumério já nem sabia mais o porquê de correr atrás dela, mas precisava de alguma resposta, qualquer uma. Quando se aproximava de Marconda pela quarta vez, avistou, no horizonte, longos cabelos roxos esvoaçando. Instantaneamente parou, e perdeu Marconda de vista.