Destinos divergentes

DESTINOS DIVERGENTES

(início da saga "A odisséia da Fênix")

Miguel Carqueija


“O silêncio desses espaços infinitos me aterroriza”
(Pascal)


INTRODUÇÃO

REBELIÃO NO COSMOS


No distante século XXXV do Padrão Terrestre, a Humanidade havia estendido um imenso império pela Via Láctea, anexando muitos planetas habitados por outras raças e disputando a hegemonia galática com outros impérios. Inconformados com as arbitrariedades da Dinastia Imperial dos Rolandos, um grupo de insurrectos, sob o comando inicial do General Cosmos Pinacoide, iniciou uma vasta rebelião democrática através do Quadrante Oito, que logo ameaçou difundir-se por outras incomensuráveis regiões da Galáxia. O Império reagiu com energia e violência e, beneficiando-se de um poderio muito superior ao dos Rebeldes, atacou em várias frentes. Nesse primeiro período destacou-se um grupo lendário de lideres, como o próprio Pinacoide, Vassili Máximo, Fritz Meudon, o célebre Von Trump (o almirante do braço cibernético), a Fênix (assim apelidada por ter sobrevivido a uma descarga, normalmente mortal, de energan), o Dr. Orcel, Angelity Valdez, Luerg Rampón, André Cassiopéia e Walt Groening. Porém, apesar de seu heroísmo, todos eles foram sendo abatidos nas grandes batalhas que ocorreram em rápida sucessão; tombaram um a um. Mas só a Fênix resistiu. A bordo do cruzador espacial Sibelius, e acompanhada por um punhado de sobreviventes, Lina Wells, a Fênix, luta pela vida e tenta escapar à perseguição que lhe move a força-tarefa do Império Terrestre, comandada pela Capitã Valquíria Mistral. Pelo sistema Galaxnet já vários ultimatos chegaram à Sibelius, exigindo a rendição incondicional. A Fênix, porém, jurou que não se renderá. Respondendo à sua inimiga ela declarou: “Lutarei pela liberdade enquanto correr sangue nas minhas veias. Por mais poderoso que seja o Imperador, ele passará, como passam todos os tiranos. Nós podemos ser mortos. Entretanto, o nosso ideal de liberdade renascerá um dia das cinzas — como a Fênix.”


CAPÍTULO 1

RELAÇÕES FAMILIARES


Lina Wells fitou, pela janela direta, o Cosmos que se redesenhava diante de si, após a passagem estratégica em buraco de verme. Lá estava a grande nuvem cósmica do Suricate, um ótimo biombo para se ocultarem temporariamente da força-tarefa. Lina, diante do mistério do universo, cultivava um sentimento religioso. Às vezes postava-se de pé, hierática, observando aqueles espaços sem fim, negros e pontilhados de luzes. Um espaço sem fim que era, ele próprio, um recado da Divindade.
“O silêncio desses espaços infinitos me aterroriza”, dissera Pascal. E ele não viajara pelo espaço, não experimentara de perto a sensação de um cosmos esmagador.
Ela usava um traje negro com lantejoulas esparsas pelas mangas, pelas pernas das calças, pelos ombros, alem de um gorro elegante próprio de uma capitã, com uma cinta azul e uma estrela de oito pontas de flamas. Suas sobrancelhas eram grossas e seu nariz pequeno e gracioso; os lábios abriam-se pouco, evitando o sorriso; os olhos azuis iam do devaneio à frieza, sem permitirem porém o extravasamento descontrolado de emoções. Embora magra e quase baixa, Lina possuía um porte altivo, mantendo uma atitude constante de autodomínio e fleuma. Para quem apreciasse mulheres misteriosas, possuía “sex-appeal” e charme; mas muitos homens, sem dúvida, a veriam como a mulher anti-erótica por excelência.
“Isso continua sempre e sempre...”, monologava Lina.
Alguém postou-se ao seu lado direito.
— Parece que escapamos por hora, Fênix.
Ela fitou a mulher de ares professorais, mais alta e magra, ao seu lado:
— Espero que sim, Isabel. Nós vamos reorganizar a nossa estratégia e para isso necessitamos de um pouco de tranquilidade.
— Que chance teremos, Lina... se só nós restamos?
— Ainda somos dezoito — Lina sorriu tristemente. — E por toda a Galáxia existem seres que desejam nos apoiar.
— Não temos como contactá-los, e nem recursos para levantar de novo a rebelião. Mas — e aqui Isabel encarou Lina nos olhos — estou pronta a dar a minha vida por você e pela causa da liberdade.
— Sei disso — Lina afagou o ombro da amiga. — Mas a chama da rebelião está acesa pelo Quadrante Oito. Só temos que ligar os pontos. Veja, Isabel, como o universo é terrivelmente belo. Ele representa algo... muito acima das mesquinharias humanas.
— É, eu sei. Eu também gosto de contemplá-lo.
— Você tem idéia... da situação do Império nesta zona?
— Existem algumas colônias terrestres nos parsecs ao redor. Todo o cuidado é pouco, Fênix.
— E planetas terrestriformes, desabitados?
— Nenhum que eu saiba. Há um, habitado por humanos primitivos, a uns quinze anos-luz a boreste.
— Não há representação do imperador por lá?
— Não que eu saiba. Você vai se arriscar, Lina? Nós somos auto-suficientes.
Lina olhou firme para Isabel:
— Entenda, amiga. Apesar da reciclagem integral que efetuamos... de vez em quando precisamos de um pouco de ar livre. É uma nostalgia à qual somos vulneráveis.
— Eu concordo. Também aprecio o verde, o mar, o canto dos pássaros.
— Nós temos de pensar num meio de prosseguir com a rebelião. Onde está minha filha?
— Eu não a vi após a nossa passagem pelo buraco...
— Deve estar nos meus aposentos. Qualquer coisa me diz que é melhor que eu vá falar com ela. Isabel, dê a ordem para nos aproximarmos desse planeta, com as devidas cautelas, e me apronte um relatório sobre ele. Daqui a meia hora estarei na ponte de comando.


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Lina dirigiu-se ao ascensor mais próximo, que se abriu à sua entrada, saltou no corredor longitudinal dos dormitórios, cruzou com dois dos membros da tripulação e parou em frente à porta 7. Esta se abriu às suas ondas cerebrais e Lina, entrando (com a porta fechando-se atrás dela), encarou a garota deitada indolentemente num sofá estofado.
Ginger tinha dezesseis anos, cabelos bem louros e um corpo escultural, que não desdenhava mostrar. Naquele momento trajava um elegante biquíni, mas as duas peças eram até volumosas, recatadas. Ginger lia uma revista de quadrinhos e olhou displicentemente para a mãe.
— Por que você não sai um pouco? — indagou Lina.
— Mãe... eu não quero sair.
— Não com essa roupa, é claro.
— Claro que não. Troco por um maiô ou um shortinho.
Lina veio sentar-se na beirada do sofá.
— Às vezes eu procuro imaginar o que fiz de errado em relação a você.
Ginger fechou a revista e sentou-se, sem tirar os pés de cima do sofá:
— Você não erra, mamãe. Você é a Fênix, lembra? Você é segura de si, é uma heroína e sabe sempre o que faz e o que diz.
— Cale-se. Eu não vou aceitar que a minha própria filha mangue de mim. Há alguma coisa errada com você, e eu quero saber o que é. Sou sua mãe e quero ajudá-la.
As duas se fitaram longamente, Ginger sustentando o olhar penetrante da mãe.
— Você está se tornando uma menina revoltada com alguma coisa. Mas Ginger, eu amo você. Não comece a por barreiras entre nós duas.
— Sim, mãe... o que você quer de mim?
— Não a quero na ociosidade.
— Está brincando, Fênix. Os seus queridos amigos não me deixam fazer nada. Para adular a capitã, tomam a frente de qualquer coisa que eu queira fazer. Estamos a milhões de anos-luz de qualquer região civilizada e, como eu não vou me casar com ninguém a bordo, também não quero vê-los com freqüência.
Lina crispou os dedos, angustiada.
— Minha filha... o que eu posso fazer por você? Todos estamos cerceados nesta nave, mas temos uma missão a cumprir.
— Mãe, derrubar o império vai demorar 500 anos, se é que vai ser possível! E nós podemos morrer a qualquer momento! Ou então, eu vou definhar aqui a bordo! Agora, não me obrigue a circular aí fora! Se os seus amigos gostam de mim, por que eles não vêm aqui me visitar?
— Talvez porque você não os convida — respondeu secamente a Fênix.
— Esta suíte é sua e não minha! Eu não tenho nenhuma!
— Nós vamos descer num planeta, Ginger.
Os olhos da pequena se iluminaram.
— Mesmo? Vamos sair um pouco desse poço sem fundo? Quando?
— O mais breve possível. Em poucas horas.
— Está bem. Vou fazer questão de descer. Mamãe, eu te amo também. Mas que posso fazer? Sou muito revoltada, e não sou hipócrita para fingir que não sou. Eu puxei a você, lembra?
A comparação pareceu não agradar à Fênix, que se ergueu e se encaminhou para a copa, desejosa de tomar um chá de trink. Colocou a pastilha na chazeira e sentou-se, aguardando que a poção ficasse pronta; tirou uns biscoitos da gaveta e pôs-se a distrair o estômago.
Ginger apareceu na entrada, com a mão no portal.
— Eu te admiro, mãe. Eu não sou uma pessoa agradável e nem quero ser, mas te admiro pelo que você é. Sei que eu nunca serei igual.
Lina não respondeu e evitou olhar a filha.


CAPÍTULO 2

A TERRA MÍTICA


Para Lina, Ginger constantemente representava um estenderete a bordo da Sibelius, e isso a incomodava bastante. Numa coisa porém Ginger acertara: puxara a mãe na forte personalidade. Sob outros aspectos, é claro, eram muito diferentes: o estilo sombrio, quase sinistro, de Lina, chocava-se com o caráter aberto e buliçoso da garota.
Quando mais tarde se viu na ponte, Lina, tentando concentrar o pensamento nas manobras, percebeu com desgosto que continuava preocupada com a sua adolescente.
O planeta, conhecido nos catálogos galáticos como RBM40126, já se encontrava visível na tela panorâmica. Era marrom-avermelhado, com oceanos ilhados, a superfície terrestre é que formava um único continente. Os rios não eram muitos, dava para notar a grande aridez. O sol era uma anã amarela e até aí tudo bem para a vida humana.
Izgur e Fujimori lá estavam a postos, assim como Isabel e, enfim, toda a tripulação humana e até alguns robôs. Faltava porém alguém, e isso incomodava a Fênix.
“O que estará ela fazendo... ainda enfurnada na suíte?”


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Ginger não estava na suíte.
Tendo posto um shortinho e um corpete, saíra pelos corredores até chegar à entrada do Virtuon. Digitou algumas instruções no painel luminescente de acesso e a porta corrediça deu-lhe passagem. Ginger, com a expressão séria, penetrou no Virtuon — e a porta tornou a fechar.
Seus pés descalços sentiram a umidade da terra e da grama. Havia árvores tropicais, gramíneas, pedras limosas, lagartos pelas rochas. Ginger caminhou por veredas de pedras entremeadas de matinho e relva, atravessou pontes pitorescas e chegou finalmente a uma aldeia, onde algumas crianças correram a seu encontro para beijá-la.
Ginger abraçou e beijou meninas e meninos, sorridente e alegre. Estava completamente diferente, diante daquela festa toda:
— Ginger, você custou a aparecer! Estávamos com saudade!
— É mesmo, Gaspar? E o que vocês fizeram na minha ausência?
— Tudo o que sempre fazemos — disse Thora, a negrinha de tranças. — Estudamos, jogamos pingue-pongue e futebol, brincamos de índio...
— Tem certeza de que vocês fazem essas coisas entre cada visita minha?
— Ué, claro! — falou Corn. — O que mais iríamos fazer?
Enquanto brincava de roda com as crianças, sob o olhar complacente de alguns adultos, Ginger não podia deixar de pensar:
“Mas que estranho! Como poderiam fazer coisas entre as minhas visitas se eles só existem quando eu os visito? Afinal são seres virtuais, só estão aqui quando eu ativo a programação que eu própria criei. Ou faz parte da ilusão... uma memória do que não ocorreu?”
Ainda estava devaneando sobre esse problema quando uma voz masculina jovem chamou por ela. A pequena se voltou e exclamou com alegria:
— Robin!
— Continue dançando, depois eu falo com você!
Mas as próprias crianças insistiram para que Ginger fosse cumprimentar o recém-chegado. Ele sempre visitava a aldeia quando a garota aparecia. “O que faria nos intervalos?” Robin, com sua roupa verde tão charmosa, não era um humano: era um elfo com orelhas pontudas. Ginger adorava elfos. Claro, no mundo real eles não existiam. Mas entre os hologramas...
Ela beijou e abraçou o rapaz elfo e quis saber das “novidades”.
— Eu estou preocupado — disse ele, franzindo a testa. — O Mal está avançando pela Floresta Negra, e eu não sei por quanto tempo as aldeias — tanto as élficas como as humanas — poderão se manter a salvo.
Olhando para aquele lindo rosto masculino, Ginger quase não o escutava — apesar da gravidade do assunto. Robin prosseguiu:
— Qualquer coisa me diz que você vai ter alguma participação nesse drama que está se avizinhando. Você é poderosa e tem o coração puro, e vem não se sabe de onde... uma enviada misteriosa como você, deve ter uma grande missão a cumprir.
Ela sentiu-se perturbada. Aquele mundo virtual podia parecer amplo, mas estava rigorosamente delimitado pelas paredes metálicas da espaçonave da qual só ocupava, de resto, uma pequena fração. Como poderia o Mal estar avançando naquele lugar?
Tinham caminhado para o bosque, de mãos dadas, Ginger com o coração batendo forte. Olhou em volta, não havia ninguém por perto.
— Eu gostaria de ajudá-los — disse enfim Ginger.
— Se você puder nos ajudar, eu sei que a sua ajuda será preciosa — murmurou Robin, tomando as mãos da garota e fitando-a com seus olhos verdes.
Ginger beijou-o nos lábios.
Imaginava que a iniciativa deveria ser dele. Pelo menos, as convenções sociais diziam isso. Mas Ginger era rebelde por natureza — filha de uma líder rebelde, afinal — e não ligava para convenções. E também não sabia como é que os elfos resolviam aquelas coisas. Mas ela o fizera, e estava feito.
Ele correspondeu ao beijo.
— Eu queria fazer isso — disse ele.
Abraçaram-se. Agora Ginger sentia-se arrebatada de amor. De repente pensou: “Ele é um holograma!”
Ora, como podia um holograma amar — ou provocar o amor?
Ou haveria naquilo tudo alguma coisa que escapava à sua compreensão?
Seria imoral namorar um ser holográfico?
Ginger já não queria saber de nada. Queria prosseguir no amplexo, mas o rapaz-elfo afastou-a:
— Ginger, isto é muito bom... mas nós temos que conversar.
— Está bem — disse ela, meio decepcionada.
— Procure compreender — explicou Robin, começando a caminhar — que nós não dispomos de muito tempo. Já tem chegado refugiados, fugitivos, nas periferias de Lucen. O Mal que se aproxima é poderoso e nós não estamos preparados para enfrentá-lo. Você, que vem de um portal, certamente conhece outros meios...
— Do que você está falando?
— Eu estou falando claro, Ginger.
O pensamento dos problemas da nave assaltou-a. Deveria voltar!
— O que é esse mal afinal? Quem são estes seres? São humanos?
— A grande feiticeira, um dia expulsa desta terra, Sdruza, está certamente envolvida. Sabemos que existem ogros, gigantes e trolls sendo congregados para um gigantesco ataque. O objetivo final, é claro, será atacar a Torre de Cristal e derrubar a Princesa da Luz, entregando o nosso mundo ao poder das trevas...
— Quem disse a você que eu venho de um portal?
— Não há outro lugar de onde você possa ter vindo. Aliás, o portal é apenas uma passagem dimensional, como sabe.
Ela estava embasbacada, mas conseguiu balbuciar:
— Robin... meu querido... por enquanto eu devo ir, mas voltarei. Eu queria estar perto de você, mas preciso pensar. Em tudo isso!
— Não demore a voltar, por favor. Você é uma guerreira e precisa nos ajudar.
“Eu, uma guerreira? Guerreira, eu?” Ginger, atônita, pensava em tudo aquilo, naqueles elementos de fantasia heróica, coisa típica de velhos alfarrábios, de utopias milenares, esquecidas pelas últimas gerações, e que ela recriara no Virtuon...
Mas ao retornar ao seu quarto teve um grande choque.
As plantas dos seus pés estavam sujas de terra.
A terra virtual e imaginária do programa holográfico que ela criara para o Virtuon.



CAPÍTULO 3

DESCIDA


Lina foi encontrar Ginger no banheiro, lavando os pés.
— Você já não tinha tomado banho?
— Só os pés estavam sujos... — respondeu Ginger, dando um sorriso amarelo.
— Também, você só gosta de andar descalça...
Ginger terminou de enxugar os pés com sua toalha de banho e fitou a mãe:
— Alguma novidade?
Era preciso falar de outra coisa, desviar o assunto. As implicações de tudo aquilo apavoravam a garota.
— Nós vamos descer no planeta. Você vai junto, não vai?
— Dá para respirar?
— É claro. É como o ar da montanha, na velha Terra.
— A Terra! E eu que nunca a vi!
— Você é uma espacial — lembrou Lina.
Uma lágrima furtiva brilhou no olho esquerdo da adolescente.
— O que você tem, Ginger?
— Nada de mais — e Ginger enxugou a lágrima. — Tenho nostalgia de um mundo que nunca vi.
— Os nossos livros falam tanto na Terra... eu mesma a vi poucas vezes.
— Quando a gente desce, mãe?
— Daqui a cinco horas-padrão.
— Eu vou dormir um pouco. Me acorda quando chegar a hora? Aí eu me arrumo.
— Dormir? Você falou dormir?
— Sim, mamãe. Eu vou dormir, na falta de coisa melhor para fazer.
Ginger foi para o seu quarto sem mais olhar para Lina. Não estava com sono, mas com medo de se trair. Além disso sentia que precisava refletir, e ao se deitar, tendo apagado a luz, seu cérebro começou a fervilhar:
“Aquele mundo é real! Ele existe mesmo! Robin não é um holograma! Mas, em que parte do universo existem elfos? Ele tem razão, de alguma forma eu abri um portal dimensional! E quando coloco aquele programa, no Virtuon, abro uma passagem para aquele mundo!”
“Meu Deus, o que faço agora?”
De imediato pareceu-lhe que a melhor coisa a fazer era guardar segredo, pelo menos enquanto não soubesse mais e refletisse maduramente naquele assunto. Além do mais, como é que Lina reagiria se soubesse a verdade?
E o que fazer com o seu amor por Robin? Como poderia agora viver sem ele?
Não podia trazer Robin para o seu próprio mundo. Ele não se adaptaria, não seria justo. Aliás, ele nem seria aceito. Poderia Ginger permanecer indefinidamente deslocando-se entre dois mundos?
Apavorada, a pobre menina compreendeu que não conhecia uma única pessoa em todo o universo, a quem pudesse confidenciar a sua triste situação. De resto, a quem mais ela conhecia, afora os 17 companheiros da aventura cósmica?
Ginger cobriu-se com uma leve colcha, embora não estivesse com frio, e chorou silenciosamente.


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Na sala de controle, Lina fingia estar tranqüila; mas a inquietação formigava dentro dela. Daria uma fortuna, se a tivesse, para recuperar sua afinidade com a própria filha.
— O salto hiperespacial estará pronto dentro de 132 minutos — observou o Dr. Stine, depois de consultar os instrumentos que apareciam e desapareciam na tela-painel, conforme fossem solicitados. — Portanto, estejamos atentos.
— Você calcula a que distancia emergiremos...
— Não o faremos demasiado perto, Fênix, porque há uma espessa nuvem de asteróides por perto. Talvez precisemos navegar alguns dias no espaço normal.
— Droga!
— O que? — indagou Naoko, admirada pela reação da comandante.
— Prometi a Ginger que desceríamos em cinco horas e já se passaram duas. Mas se nós iremos emergir do super-espaço tão longe do objetivo... nada disso, refaçam os cálculos e vamos sair perto da atmosfera do planeta. Vocês estão esquecidos que o espaço é imenso.
— Lina, algum risco existe — observou Stine.
— Corremos o risco de ser pegos a qualquer momento pela frota imperial — respondeu Lina, secamente. — Nosso computador é bom o suficiente para nos programar um estuário seguro. Faremos isso, porque eu não vou arriscar a saúde da minha filha.
Lina Wells afastou-se sem mais palavras, e visivelmente mal-humorada.
Columba deixou escapar um palavrão em norueguês, que ninguém mais falava a bordo, já que o idioma oficial era o anglo cósmico.
— Nós podemos acabar sendo mortos por causa dessa menina mimada!
— Vá dizer isso à Fênix — respondeu Naoko, com um gesto de desdém. — Ultimamente Lina está com a idéia fixa na filha inútil que ela tem.
— É a filha dela — lembrou Isabel. — Portanto, vamos fazer a vontade da nossa capitã. Em três horas pousaremos no planeta. Agora vamos nos preparar para a dobra.
Enquanto isso, Ginger acordava de um pesadelo que a deixara suando. Ela e Robin eram caçados por Lina, que portava uma arma de choque. Corriam ambos por capinzais imensos, entre rochas escarpadas...
Ginger sentou-se na cama, tentando refletir.
“Ela teria coragem... ela mataria Robin?”
A menina levou então um grande susto. O quarto não estava totalmente escuro, havia uma pequena luminária a um canto. E lá, sentada...
A luz maior se acendeu. Lina ergueu-se da poltrona.
— O que foi, mãe? Já está na hora?
— Fiquei preocupada, o seu sono estava muito agitado.
— O que? Você vai ficar me espionando enquanto eu durmo?
— Está bem, não se exalte.
— Que coisa desagradável, mãe!
— Minha filha...
— Por favor, não faça mais isso! A não ser que você queira piorar ainda mais o nosso relacionamento!
Ginger pensou em se levantar, mas desistiu e pôs-se a chorar cobrindo o rosto com as mãos. Lina sentou-se ao seu lado e abraçou-a com ternura.
— Você sabe que eu te amo, Ginger. Não precisa levar a mal todos os meus gestos! Não seja tão revoltada!
— Sei que não sou estimada em sua nave, mãe. Todos te respeitam e por isso fingem me respeitar. Mas que futuro eu vou ter aqui? Você tem que começar a pensar nisso, foi você quem não me deu escolha na vida!
“Estará ela pensando em se suicidar?”
Este foi o horrível pensamento que cruzou a mente de Lina, amplificando as suas angústias.


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O albedo desse mundo é muito baixo — observou Gillian, junto a Ginger.
Ginger fitou o rapaz; ultimamente não se sentia com paciência para dialogar com a tripulação. Por jovem que fosse, Gillian tinha o dobro dos anos da garota.
— Albedo... — murmurou ela.
— Você sabe, é claro. É a relação entre a luz que o planeta reflete e a que ele recebe de seu sol. Aliás esse mundo pertence a um sol isolado, o que é uma raridade no universo.
— Todas as nossas colônias são assim...
— É verdade — disse a Fênix. — É melhor para a humanidade, buscar somente os sistemas isolados. É complicado morar num sistema binário, ou triplo, ou sêxtuplo.
Caminhavam em meio a um deserto estilhaçado, como se alguém se divertisse marretando as rochas. Vez por outra, pequenas criaturas semelhantes a lagartos se esgueiravam pelas gretas.
— E as tribos? — perguntou afinal Ginger.
— Achamos bom não nos aproximar delas. Não podemos confiar nos seus costumes, são muito primitivas.
Ginger estacou, decepcionada:
— Vocês me trouxeram aqui para ver pedras? Vou continuar sem poder ver um rosto humano novo?
O constrangimento foi geral, no grupo. Ninguém sabia o que dizer; somente Lina tentou:
— Ginger... eu sou responsável pela segurança de todos, e os povos daqui são do pré-espaço, não poderão nos ser de utilidade...
— Você só está pensando nisso, não é mesmo? — e havia raiva nas feições da garota. — Nada importa, a não ser a sua guerra santa!
— Ora, chega! — exclamou a neojaponesa, Naoko. — Já estou cheia de escutar você maltratando a sua mãe...
— Naoko... — balbuciou Lina.
— É isso mesmo! Desculpe, Lina, mas você mimou demais essa garota e agora ela ficou mal acostumada. Ginger, você é filha de uma heroína, uma lenda viva em toda a Galáxia, caso não saiba disso!
— Isso está sempre na minha frente, Naoko. E pode crer, é um fardo e tanto.
Ginger deu as costas ao grupo e caminhou na direção da espaçonave, pousada na planície.
— Deixa ela ir — disse Naoko. — É melhor.
Vieram lágrimas aos olhos de Lina.
— E esta era a chance dela relaxar um pouco... reduzir a tensão... oh, Deus!
Isabel abraçou-a.
— Se quiser, Fênix, eu vou fazer companhia a ela.
Lina não respondeu de imediato. Ao decidir pousar em região desabitada, pesara as opiniões dos companheiros; mas nada perguntara a Ginger.
Por que fizera isso?
Poderia alegar várias coisas à sua consciência. A garota era menor de idade; ela própria se isolava, e não participava das reuniões. Sabia, porém, que nada disso era justificativa.
Uma capitã não deve se permitir momentos de hesitação.
— Não, Isabel, eu é que tenho que fazer isso. Vocês continuem a exploração.
— Mas e você, Fênix? — indagou Gillian.
— Eu voltarei para a Sibelius, para ficar com a minha filha. Ela precisa de mim — e Lina foi seca.
Depois que ela se afastou, Naoko observou preocupada:
— Estamos bem arranjados. O poder de iniciativa da capitã está prejudicado por causa dessa menina rebelde.




CAPÍTULO 4

O VIRTUON


Pouca gente havia ficado na Sibelius. Lina aproximou-se lepidamente daquela estrutura acobreada, esparramada na planície, como um trapézio monstruoso, e não deixou de reparar que alguns pássaros estranhos, na maior à-vontade, haviam pousado nos pára-radiações e estavam lá, tagarelando entre si na maior algaravia. Em outras circunstâncias ela até filmaria a cena exótica, mas não naquela hora. Entrou correndo e esbarrou com uma assombrada Stéphanie, a pessoa a bordo mais jovem, tirando a própria Ginger:
— Fênix, o que houve? Por que você voltou?
— Onde está a minha filha?
Alguma coisa na expressão febril de Lina assustou a rapariga neofrancesa. Ela pôde apenas balbuciar:
— Ela está lá na entrada do Virtuon...
— Outra vez!
Lina apressou-se para lá.
A pequena encontrava-se digitando, na tela ao lado da porta, o seu código de acesso. Ao vê-la, Lina teve uma surpresa. A menina estava inteiramente vestida, da cabeça aos pés. Estava até armada, com coldre e tudo, além de calças compridas, blusa de manga comprida, botas... além de um gorro e uma mochila.
Na verdade era a roupa que ela usara na saída da nave, onde fazia frio; ela apenas acrescentara a mochila.
— Ginger!
— Oi, mãe! Por que me seguiu?
— Onde é que você vai?
— Ué, você não está vendo que eu vou no nosso “holodeck”?
— Bem... desta vez eu quero ir com você.
Ginger teve um sobressalto.
— O que você disse? Ir comigo? Para que?
— Cheguei à conclusão de que devo estar mais presente na sua vida.
A garota limitou-se a sacudir a cabeça.
— Lamento muitíssimo, mãe. É muito tarde para isso.
— O que diz?
— Não é hora para isso. Mamãe, não basta me fazer companhia. Eu não sou uma criança.
— Ginger, você é minha filha.
— Eu sei disso há tempos.
Lina crispou as mãos, e lágrimas já lhe saíam dos olhos.
— O que você espera de mim? O que eu preciso fazer para te reconquistar? Já fomos tão amigas.
Ginger abraçou-a e Lina, esperançada, correspondeu ao abraço; mas logo a menina se separou.
— Podemos pensar em melhorar tudo, mãe. Mas agora eu vou entrar, e você não vai entrar comigo.
Mas quando Ginger se encaminhou para a porta, Lina interpôs-se.
— O que há?
— Você só vai entrar se eu for junto.
— Fênix, não faça isso. Eu vou entrar com ou sem o seu consentimento.
— Para que vai armada?
— Isso não importa. Mamãe, estou falando sério. Por favor, saia da minha frente porque eu vou passar.
— Ginger, deixe de bobagem! Você sabe que não pode comigo!
— Eu não sei de nada, mãe. Por favor, eu imploro, não me obrigue a lutar com você.
Lina estava aterrada. Teria Ginger coragem de se voltar contra ela? A que grau de revolta a menina teria chegado?
Derrotada, Lina deu passagem à filha. Esta empurrou a porta, cuja abertura já fôra programada, e penetrou no seu mundo de fantasia.
Quando a capitã tentou segui-la, constatou que Ginger cerrara o sistema por dentro. O desespero, o pressentimento de qualquer coisa funesta, tomou conta de Lina.
— Ginger! — gritou, forcejando com a porta.


CAPÍTULO 5

PENETRAÇAO


Stéphanie socorreu Lina quando ela já estava deslizando para o chão, de tão aturdida.
— Vou levá-la ao seu aposento. Você não pode permanecer aqui, outras pessoas vão notar.
— E daí?
— Fênix, você é a nossa comandante. Todos a estimam, mas você não pode dar parte de fraca.
Lina concordou e, seguida pela fiel garota, foi até a sua suíte.
— Deixa eu lhe preparar uma bebida — falou Stéphanie gentilmente. — Coma alguma coisa também, não se deve beber nada de estômago vazio.
— Uma taça de vinho é suficiente. Esquente um quiche, me faça companhia, por favor. Enquanto isso eu vou falar com a expedição.
Lina comunicou-se por infoconferência com o grupo exterior. O astronavegador Columba informou, satisfeito, que tudo ia bem:
— Já encontramos uma nascente de água potável e um veio de nióbio. Realmente, a ultra-sonografia planetária estava bem certa; teremos aqui como repor os minérios raros de que carecemos.
— E Ginger? — perguntou Gillian.
— Ela trancou-se no Virtuon.
A voz intempestiva de Naoko se fez ouvir:
— Viu a consideração que ela tem por você, Lina? Valeu a pena você ter voltado à nave?
Lina começou a se sentir irritada com Naoko. Esta era uma mulher sem família, como quase todos a bordo, quaisquer parentes esquecidos pela Galáxia. Como poderia entender a dor de uma mãe?
A Fênix olhou para Stéphanie: aquela ruivinha de 18 anos, em quem pouco reparara até então, parecia ter por ela o carinho que Lina não obtinha da filha.
— Está pronto — observou Stéphanie com suavidade.


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Anoitecia naquele estranho mundo, quando Ginger chegou na aldeia de Gotlam, e foi acolhida pela Senhora Ginsen. Já em diversas ocasiões fôra alvo da hospitalidade dos aldeões.
— Não a esperávamos tão cedo — disse aquela senhora gordinha e miúda. — Você hoje já tinha se despedido...
— Uma emergência me fez voltar.
Ginger olhou para cima, para aquele gigantesco satélite luminoso, e ela nunca vira coisa tão bela.
— Entre, vamos tomar um chocolate.
A garota sorriu e entrou, alegrando-se ao ser festivamente recepcionada por Buster, o grande cão pastor de Ginsen, com seus lanudos pelos compridos. Não existiam animais a bordo da Sibelius.
Sentaram-se ambas junto à mesa de copa, uma de cada lado. Ginger não se cansava de admirar a rústica simplicidade daquele mundo quase sem tecnologia, com panelas e frigideiras penduradas na parede.
— Você disse que há uma emergência — observou a anfitriã, passando-lhe uma cestinha com torradas de alho.
— Sim, Ginsen. É fato.
— E eu nunca a vi vestida dessa maneira. Como uma guerreira, é isso.
— Eu preciso falar com Robin. Sabe onde ele está?
— O elfo? Bem, a cidade dos elfos fica ao norte, a meio dia de viagem.
— Eu irei para lá. Só que hoje ele estava aqui...
— Mas já se foi. Os elfos estão se preparando para a guerra, já que o Mal vem se aproximando de Armênia.
— Armênia?
— É o nome desta imensa península em que nos encontramos, não sabia?
— Eu não sou deste mundo — Ginger colocou uma pedra de açúcar mascavo no chocolate e remexeu o líquido quente com a colherinha. — Estou aprendendo aos poucos...
— Mas de que mundo você é?
Ginger enxugou uma lágrima furtiva.
— Eu não posso dizer que seja de nenhum mundo. Pertenço a uma nave que viaja não pelo oceano, mas pelo espaço entre as estrelas, sou uma Espacial e nem sei como vim parar aqui. Abri uma passagem, pensando que me levaria a uma terra de imaginação, não a uma terra real como esta. Mas vejo que você não está entendendo o que estou falando.
— De todo, não — respondeu Ginsen, passando as mãos na ruga do rosto.
— Bom. Com o tempo tudo se esclarecerá, se Deus quiser — Ginger sorriu, encantadoramente. — Você poderia me fornecer um mapa, Ginsen? Preciso alcançar Robin ou, se isto não for possível, terei de ir à terra dos elfos.
— Mapas... isso é coisa rara aqui. Somos uma gente simples. Mas o que você pretende fazer?
— Eu preciso ajudá-los. Preciso saber mais sobre esse mundo.
— Se você não é do nosso mundo, como é que fala tão bem a língua geral?
Isso era algo que intrigava a filha da capitã. Até aqui, julgava estar falando o anglo cósmico; mas finalmente compreendera que, naquela terra, de algum modo adaptava-se ao idioma local.
— Eu não sei, Ginsen. Talvez haja em mim algum poder mágico. Creio que aprendi a língua geral falando com vocês.
— Então você é uma grande maga, e não somente uma guerreira — e havia respeito na voz de Ginsen.
— Eu devo ir. Agradeço a sua hospitalidade. Onde posso conseguir um cavalo? Preciso alcançar Robin.
— Não há cavalos na aldeia. Como eu disse, somos gente simples.
Ginger se ergueu.
— Pelo menos, explique-me o caminho. Não devo me demorar, é muito importante.
— Mas... o que você pretende, Ginger?
— Eu lutarei ao lado de vocês. Aliás, quem é a Princesa da Luz?
— É a guardiã de Armênia. É ela quem zela pela Torre de Cristal.
— E onde fica a Torre de Cristal?
— Na fronteira entre as terras de humanos, elfos e anões.
— Bom. Me mostre o caminho para Lucen. Preciso alcançar Robin, tudo o mais é secundário.
— Mas à noite? Por que não dorme aqui essa noite?
— Não há tempo para isso, Ginsen. Por favor, entenda.
— Está bem. Irei com você até a periferia da aldeia.


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Caminharam as duas mulheres pela estrada escura, afastando-se de Gotlam. Ginsen seguia coberta por um capuz, por causa do sereno, e com elas ia Thora, a negrinha, cuja existência surpreendia Ginger. Não imaginava encontrar pessoas negras numa terra de alta fantasia.
Buster seguia com elas. Sempre podiam aparecer perigos na estrada.
— Não é melhor vocês voltarem? — indagou Ginger, preocupada.
— Lucen ainda é tão longe... e você terá de seguir sozinha.
— Ginsen, eu sou uma guerreira, não esqueça isso!
— Ela é destemida, Ginsen — observou Thora, sorrindo. — Ginger não tem medo de nada.
Subitamente ouviu-se um farfalhar de folhas, um trote de alimária... e por uma curva da estrada surgiu um cavaleiro solitário, que trazia porém um cavalo sobressalente.
— Robin! — exclamou Ginger, alegremente surpresa.
O elfo desceu de sua montaria e a garota correu até ele, beijando-o com efusão.
— Viu porque ela queria tanto vê-lo? — observou Thora, maliciosamente.
— Por que você voltou? — indagou Ginger, acarinhando os cabelos do elfo.
— Nosso mago, Izgutz, disse que eu deveria vir e trazer dois cavalos, e que desta vez você deve ser conduzida à terra dos elfos.
— Eu irei com prazer. Vim aqui para isso, meu amor.
— Desta vez você poderá ficar?
A lembrança de Lina passou pela mente de Ginger.
— Eu terei de voltar um dia, mas não agora. Você precisa de mim.
— Nós é que iremos embora, temos de voltar para casa — interveio Ginsen.
A menina se despediu ternamente das amigas e do cachorro.
— Deus a abençoe, Ginger. Você é iluminada e grandes coisas haverão de acompanhá-la.
Assim dizendo, Ginsen foi embora com Thora e Buster.
Vendo-se a sós com Robin, Ginger abraçou-o com vigor. O elfo correspondeu ao abraço, e a menina sentiu, emocionada, o quanto ele era doce.
Permaneceram assim durante alguns minutos.


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Lina colocou o terminal portátil sobre a mesa e pôs-se a digitar. Stéphanie, sentada ao seu lado, não escondeu o quanto estava intrigada.
— O que pretende fazer, Fênix?
— Eu posso arrombar portas e paredes, mas não há necessidade de utilizar métodos tão primitivos e grosseiros. Vou quebrar a trava eletrônica que Ginger colocou e ir lá ver o que está havendo.
— E você consegue?
— Stéphanie, fui eu quem programou o Virtuon. Além disso eu sou a capitã, tenho obrigação de conhecer certos macetes.
Fênix concentrou-se no trabalho. As imagens surrealistas da tela eram de difícil interpretação, mas havia uma porta que precisava ser aberta. Por enquanto a mensagem era: “Acesso negado”.
Mas Lina implantara o código de suas próprias digitais em todo o sistema da Sibelius e sabia que uma chave eletrônica de seu controle podia abrir qualquer trava dentro daquela nave. Era uma questão de compatibilizar a chave flutuante naquela tela de plasma, com o orifício da fechadura. E, após uns dez minutos, Lina conseguiu habilmente abrir a porta.
— E agora, Fênix?
— Você fica aqui e eu vou lá. Já dei o comando para manter essa porta aberta.
— Mas você vai precisar de mim! Lina, eu vou com você!
— De jeito nenhum! Fica aqui, Stéphanie! E peça à expedição para voltar logo! Isso de explorar o planeta à noite não é boa idéia, e eles estão se retardando muito! Ouviu bem?
— Está bem, Fênix. Boa sorte, então. Traga Ginger de volta.
Lina foi até a porta do Virtuon, entrou e certificou-se que a trava não se formava por dentro. Caminhou rapidamente, admirada com aquela paisagem selvática, de um tipo que ela não via há muitos anos. Reconheceu trepadeiras, pupunhas, abricós, mas havia árvores de tipo estranho e muitas rochas. E existiam plantas com folhas azuis, muito estranhas.
Tudo aquilo eram ilusões holográficas, e Lina há anos não entrava no Virtuon. Esquecera o quanto ele podia ser aliciante. Todavia, pegou o seu localizador semelhante a uma bússola e pôs-se a procurar Ginger. Assim atravessando alguns campos desolados, chegou finalmente a uma estrada. A tempo de testemunhar o romântico beijo entre Ginger e Robin.


CAPÍTULO 6

DESCONECÇÃO


— Ginger!
Foi um momento extremamente chocante para a menina, mas não o foi menos para a Fênix.
Ginger separou-se de Robin e olhou, estarrecida, para a mãe. Os cavalos, a pouca distância, denotavam inquietude.
— Mamãe! O que faz aqui?
— Afaste-se dele — ordenou Lina, mostrando a sua energine.
— Como assim? O que você quer?
Robin perguntou quem era. Ginger percebeu, estupidificada, que discernia os dois idiomas. Queria isto dizer que Lina e Robin não se entendiam?
— É minha mãe. Não interfira, Robin, eu cuido disso.
— O que você disse? — perguntou Lina.
— Mãe... não foi nada. Estava falando com ele.
— Você está louca? Ele é um holograma. Podemos falar com hologramas no Virtuon, mas você o estava beijando!
— Ele não é um holograma, mãe. É um homem real.
— Homem? Ele?
— Ou um elfo, se prefere, para mim tanto faz.
— Sim, é um elfo de holograma. Ginger, afaste-se!
— O que você vai fazer?
— Destruí-lo, é claro!
— Mamãe! E por que você faria isso? Ele não fez nada a você!
— É claro que não! Porém, namorar com um holograma é uma perversão que eu não posso admitir. Saia da frente, Ginger. Eu vou disparar.
Silenciosamente Ginger retirou sua própria arma do coldre e apontou-a por sua vez para a Fênix.
— Você não o fará, mãe.
— Ginger! Abaixe essa arma!
— Abaixe você a sua, mãe. Não me obrigue a enfrentá-la. Você não matará o Robin.
— Robin?
Como a garota nada respondesse, Lina Wells prosseguiu:
— Eu não posso matá-lo, Ginger, porque ele não é um ser vivo. Consegue entender isso? Posso apenas desfazê-lo. Temos um psicólogo a bordo. Você está misturando realidade com fantasia, e para o seu bem eu tenho que apagar esse holograma.
— Você o fará, quando eu for um cadáver.
— Ginger...
— Não adianta, mãe. Sua intransigência está abrindo um fosso entre nós. Não pode entender que ele é real? Aqui, no Virtuon, por razões desconhecidas, abriu-se um portal dimensional para um mundo que realmente existe em algum lugar. E agora que eu posso amar alguém, você não pode me privar disso.
— Você não pode atirar em sua mãe, Ginger.
— Não quero, é claro. Mas não vou deixá-la matar Robin. Sugiro que vá embora.
Silenciaram ambas, mantendo as suas miras. Lina, desconcertada, entendeu que, se insistisse, haveria uma tragédia.
A capitã baixou a arma. A adolescente suspirou de alívio.
— Está bem, você venceu. Quando voltará para a nave?
— Vou demorar. Tenho que ajudar Robin, pois a situação por aqui está difícil. Deixe o circuito aberto, por favor, já que você interferiu nele.
Lina pensou em abraçar a filha numa despedida, mas desistiu logo da idéia. A garota estava muito tensa e não a deixaria se aproximar.
— Então adeus, Ginger. Boa sorte e não esqueça de retornar.
— Vá com Deus, mãe. Me perdoe, mas não posso fazer outra coisa.
Depois que Lina se afastou, Ginger abraçou-se a Robin:
— Querido, vamos montar e ir embora! Ela pode mudar de idéia!
— Mas o que ela queria?
— Depois eu explico! Você ainda não conhece armas de fogo!


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— Provavelmente teremos de sedá-la — observou o Dr. Nerval.
— Primeiro eu tenho que recuperá-la — respondeu Lina, secamente.
Estavam na sala de Controle Central, onde Lina, de posse da programação de Ginger, preparava-se para deletá-la.
— Fênix — opinou Isabel — tem qualquer coisa errada nisso. O Virtuon é um espaço limitado, não maior do que uma casa grande, como é que você andou tanto por lá?
— Isabel, por favor! Você sabe que podemos criar a ilusão de cidades, de grandes espaços...
— Mas normalmente a programação tem os seus limites! Lina, se você desfizer essa programação, o que vai acontecer?
— Simples. Ginger ver-se-á só, num espaço limpo, e aí ela se dará conta de que tudo não passava de ilusão. Uma ilusão que ela mesma criou.
— E quanto antes resolvermos isso, melhor — disparou Naoko.
Quando, no painel horizontal da mesa de controle, Lina conseguiu selecionar toda a programação de Ginger, teclou o “delete”. Todos os sinais indicativos do programa se apagaram.
Nesse momento algo inesperado aconteceu. Stéphanie apareceu, esbaforida, segurando alguma coisa na mão:
— Fênix! Fênix! Não apague o programa, por favor...
— Como assim? — Lina estava sinceramente espantada.
— Você não disse que havia folhas azuis no mundo onde Ginger entrou? Bem, o que é isso aqui, que encontrei no chão, perto da porta?
E atirou uma folha azul na mesa, em frente à Capitã.
Lina se dirigiu apressadamente, com sua escolta, à sala virtual. Uma angústia surda a devorava, em meio ao surrealismo da situação. Mas uma terrível realidade a aguardava. O Virtuon estava completamente vazio, inclusive sem Ginger. A menina havia desaparecido.


EPÍLOGO

DIVERGÊNCIA


Na sala de reunião achavam-se agora todos os tripulantes da Sibelius. A madrugada já ia avançada, apesar de que a hora-padrão da nave era outra. De fato, lá dentro considerava-se o horário como correspondendo às 20 horas do planeta Terra.
O Dr. Erasmus Balanciega, físico teórico de bordo, resumiu as suas conclusões:
— Nós atravessamos um buraco de verme e a Física Avançada diz que, nessas regiões estranhas, tudo pode acontecer.
— E o que aconteceu, de fato? — indagou a Fênix.
— Tudo indica que se formou, no Virtuon, pelo código estabelecido por Ginger, uma passagem para outra dimensão, uma dimensão desconhecida. E Ginger visitava essa dimensão. Capitã, quando você desprogramou tudo, desfez a conexão com aquele mundo; e Ginger ficou nele. Não há outra explicação possível.
Desolada, Lina deixou o rosto tombar sobre a mesa, braços em torno dele, e chorou amargamente.
— Por que... por que isso tinha que acontecer? Minha filha! E eu sou a culpada!
Isabel tentou consolá-la, em vão. Stine, Gillian e os demais estavam consternados. Stéphanie, perplexa, dirigiu, a ninguém em particular, uma patética dúvida:
— Mas elfos existem?
Ninguém respondeu e a jovem tentou outra pergunta:
— Não é possível restabelecer a ligação?
— Faremos o que for possível — respondeu o cientista. — Vou trabalhar nisso em tempo integral, mas pode levar anos; não quero lhe dar ilusões, Lina.
A Fênix bateu os punhos na mesa.
— Por que eu fiz isso? Por que eu não dei uma chance a ela? Me perdoe, Ginger. Onde você está, afinal? Meu Deus, o que eu fiz!
Ela recomeçou a chorar. Ninguém jamais vira Lina chorar. De súbito Naoko se ergueu, foi até onde estava a capitã, sacudiu-a energicamente e gritou:
— Ora, chega, Lina! A sua atitude é vergonhosa! Você é a capitã da Sibelius! Você tem uma nave a comandar, uma guerra a vencer! Ou já esqueceu tudo porque Ginger se foi?
Fez-se um grande silêncio, enquanto Lina apenas encarava Naoko, com os olhos marejados de pranto. E Naoko prosseguiu o ataque:
— Se ficarmos aqui parados enquanto você chora, Valquíria Mistral nos encontrará! Já se esqueceu dela? Pois chegou mais um ultimato pela net! Não se iluda, nós teremos de combater mais cedo ou mais tarde! Enquanto você ficar rasgando as suas vestes, as coisas continuarão acontecendo!
— Naoko!
Era Stéphanie que, dando volta à mesa, caminhava na direção de Naoko. Lina, porém, ergueu-se e se interpôs, impedindo que as duas jovens se atracassem.
— Pare, Stéphanie. Fique quieta.
— Mas, Lina...
— Por favor.
Stéphanie buscou uma cadeira e sentou, enquanto Lina, circunvagando o olhar, principiou:
— Naoko está com a razão. Eu sou a capitã. Meu drama pessoal é terrível, mas é meu. Não posso arrastar vocês. Tenho fé que um dia reencontrarei a minha filha, mas a vida continua. Além disso eu sou a Fênix, sou aquela que renasce das cinzas.
Fez uma pausa e acrescentou:
— Só me dêem algumas horas para dormir e pensar. Quero todos aqui amanhã às dez horas e, Erasmus, pelo amor de Deus faça o que me prometeu. O seu trabalho agora é reabrir o portal.
— Pode contar comigo — respondeu o sábio.
Lina enxugou as últimas lágrimas e chamou Stéphanie:
— Por favor, venha comigo. Quero falar com você.
Stéphanie acompanhou Lina ao seu aposento. Lá chegando, Lina convidou-a a sentar num sofá, e sentou ao seu lado.
— Stéphanie, eu agradeço muito a sua atitude, mas não precisa agredir ninguém por minha causa. Eu não mereço isso.
— Naoko... ela foi muito atrevida, Lina. Só faltou ela dizer para você renunciar!
— Tudo bem. Ela tinha razão, de que serve uma capitã chorona?
— A situação era extraordinária!
— Stéphanie, você pode fazer melhor do que isso para me ajudar. Você quer me ajudar, não quer?
— Se eu quero? Eu daria a minha vida por você...
— Não precisa tanto. Stéphanie, você é órfã desde criança, não é?
— Sim, eu sou...
— Quer ser a minha filha de agora em diante?
— Eu...
— Sou a comandante, e com autoridade suficiente para adotá-la, isto é, para oficializar a adoção.
— Fênix, eu não poderei substituir Ginger. Eu te amo como se fosse minha mãe, mas... quer mesmo isso? Eu não te farei esquecer Ginger.
— Não, mas você me consolará. Em poucas horas eu aprendi a te estimar, Stéphanie, e a valorizar a jóia que tinha perto de mim. Tenho idade bastante para ser a sua mãe, você aceita?
Stéphanie se ergueu, comovida, e Lina também se ergueu. As duas se abraçaram em lágrimas.
— Mãe, eu aceito... e quero... — murmurou Stéphanie.


...................................................


Ginger e Robin cavalgavam pela estrada que seguia por uma imensa pradaria, quando o troço inimigo apareceu. Um bando de uns dez monstros repulsivos que montavam animais desconhecidos e feios. Ululantes, eles avançaram contra a dupla.
— O que são eles? — indagou Ginger.
— Orcs... devem ser uma patrulha avançada, nunca poderiam ter chegado aqui! Ginger, fique longe, eu vou tentar conte-los.
Assim dizendo ele empunhou o arco e buscou uma seta em sua aljava.
— O que? — Ginger afagou a égua branca, Estrela (assim chamada por causa do sinal no focinho) e protestou: — Não seja tolo, as minhas armas são muito melhores!
Ginger avançou e fez alguns disparos energéticos de advertência. Assustados, os orcs deram meia volta e se foram, aos gritos.
— Que arma terrível você tem! — admitiu Robin.
— Meu anjo... e aquela aldeia, que deixamos? E tanta gente indefesa? Vamos ter que protegê-los!
A lembrança de Lina sufocou-a por instantes.
“Nem me despedi direito dela... quando poderei tornar a vê-la?”
No entanto, Ginger nutria a intima convicção de que, quando um dia retornasse ao local da passagem dimensional, já não a encontraria. Lina deveria tê-la desconfigurado, julgando assim apagar o que acreditava serem hologramas. Se tal havia acontecido, Ginger Wells estaria irremediavelmente exilada naquele outro mundo.
“Fênix, Fênix... voltarei a vê-la, mãe?”
— Querida, o que você tem?
Ginger enxugou a lágrima e olhou para o seu amado.
— Nada, não.
“Como será o casamento entre os elfos?”
Este pensamento consolou-a e, por fim, Ginger sorriu:
— Vamos, Robin. Temos muito a fazer.



FIM






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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 22/10/2018
Reeditado em 22/10/2018
Código do texto: T6482720
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