20 - Frango Caipira ao Molho Pardo - Filhos da Terra
Ao saber que Elói viria visitá-los no domingo, Dona Sônia começou a pensar no almoço. Lembrou-se de que ele adorava frango caipira ao molho pardo. Pediu a opinião de Zenaide, mas ela se limitou a sacudir os ombros num gesto de tanto faz. Preferiu não saber o motivo da indiferença, pois sabia que a filha, apesar da dedicação com a neta e com o trabalho, estava de mal com o mundo. "Coitada, tão nova e com esta doença, não é para menos", dizia para si. "De quê adianta sofrer? O que está feito não está por fazer", pensava enquanto olhava a filha cuidando de Vitória. "Ela devia deixar de lado a revolta, tem uma filha linda, saudável. Tudo bem, entendo, é a doença e está com medo de amar. Se arrumar um namorado, não poderá esconder a doença... Se contar... Situação difícil. Tem gente que só de ouvir falar na doença, sai de perto. Acha que AIDS transmite num abraço. Ignorantes! Será que o Elói desapareceu por causa disso? Como não pensei nisso antes? Muito estranho, vou tirar a dúvida perguntando, na lata! Se bem não vai adiantar, ele não vai admitir. Também não dá pra ficar com raiva, ele sempre foi solidário e não adianta ficar procurando responsável pela tristeza de minha filha, foi ela que buscou isso. Sofrimento por livre-arbítrio? Esquisito. O Elói vai dizer que é uma questão social. Até sei como vai explicar: culpa do capitalismo! Eu não entendo essas coisas. Não foram os homens que construíram o capitalismo? Eu quero é ver minha filha feliz, o Brasil é grande, tem de haver um jeito de melhorar a vida do povo. Muita gente necessitada. Chico Xavier disse que o Brasil será o celeiro do mundo, mas ainda não é um celeiro nem para os filhos da terra. Tem um tantão de gente assim, ó, descendo a lenha no Lula, mas eu acho que a vida dos pobres deu uma melhorada. Bolsa Família tem ajudado muitas famílias, o custo de vida melhorou, verdade seja dita. Mas que tem muita gente falando mal dele, ah isso tem. Eu não entendo, não leio nem assisto jornal. No horário político desligo a televisão. É uma mentirada, não dá pra confiar nos políticos. Eu com isso? Zenaide, vem aqui um pouco, trás Vitória, quero te perguntar umas coisas".
Assim que Zenaide chegou com a filha no colo, a avó fez uns carinhos na filha e na neta e perguntou:
- Minha filha, me responda, por favor, como foi que você encontrou com o jornalista?
- Ah mãe, pra que a senhora quer saber? - respondeu desconfiada.
- Ué, pra saber, que que tem? Depois de tanto tempo sumido...
- Curiosidade boba, mãe - respondeu com enfado - foi por acaso, em Beagá. E Belo Horizonte não é tão grande assim. Já em Contagem. Encontramos na rua.
- De repente fiquei pensando se vocês estão se encontrando há muito tempo, sem eu saber de nada - disse como se estivesse com ciúmes.
- Me poupe, vai ver a sua novela, está na hora - respondeu se retirando.
Dona Sônia estava curiosa, queria saber onde a filha trabalhava, mas ela alegava não ser um trabalho fixo. A grana que ela trazia não era muito, mas suficiente para suprir as despesas pessoais e de Vitória. Vez ou outra pagava uma conta de luz, água e gás e sempre trazia alguma coisa da rua para casa: pães, frutas, leite. Raramente dava um sorriso, em geral, com Vitória, com quem passava horas brincando. Às vezes a avó dizia para ela dar um passeio, divertir-se um pouco. Convidou-a várias vezes a ir ao centro espírita, mas ela se recusava, sem explicar a razão. Zenaide se trancara a sete chaves, não falava de seus sentimentos. Sônia depositava esperança em Elói, para tirá-la do silêncio doloroso.
Passava do meio-dia quando Elói chegou. Tenório e Edileuza, Marcelo e Dona Sônia receberam-no com entusiasmo. Dona Sônia pediu desculpas por Zenaide, que se encontrava ocupada com Vitória. Apresentou-lhe Seu Atílio, que apos um breve diálogo convidou-o a tomar um suco de manga. Alguns vizinhos, conhecidos de Elói, apareceram para cumprimentá-lo. Apesar de simples, a casa estava bonita, com as paredes pintadas de azul-anil, portas e janelas envernizadas. A cozinha pequena tinha cerâmica decorada.
- Desculpe, Elói, nessa casa agora só bebemos água, suco e café com leite - justificou Marcelo, vangloriando-se de ter largado o álcool.
- Sem problemas, Marcelo - respondeu Elói -, pensando bem, suco é bem mais saboroso. Ficou na companhia de Marcelo e Tenório, na sala, enquanto Dona Sônia e Edileuza cuidavam do almoço. Só depois de quase meia-hora após a sua chegada foi que Zenaide apareceu com ar sério, porém sem a carranca de quando se encontraram. Elói sentiu o coração bater afoito e as pernas tremeram quando ela o cumprimentou com um abraço forte e demorado. Zenaide estava no esplendor da beleza, lábios carnudos, pele viçosa e quadril largo. Sentiu a dureza dos seios tocando justamente em seu coração. Ao se soltarem pairou no ambiente um silêncio constrangedor. A garota tinha os olhos cheios de lágrimas. Habilmente Marcelo rompeu o silêncio, perguntando a Elói o que achara da reforma que fizera na casa. Nesse ínterim, Zenaide pediu licença, para ir até a cozinha, saber se precisavam de sua ajuda. Elói bem que tentou desviar os olhos da garota, que se dirigia à cozinha, balançando os quadris, protegidos por uma calça justa de lycra. O sentimento adormecido acordava com uma força arrebatadora a ponto de não escutar o Marcelo dizia. Agora tinha certeza de que fugira desse desejo, fugira de Zenaide de medo de ter seu amor contrariado; não suportaria vê-la andando livre sob os olhares de cobiça de gente jovem e bonita. Descobriu, finalmente, que o preconceito em relação à diferença de idade era dele, pois o amor não enxerga estas coisas. Não importa o que a sociedade pensa, o que conta é o sentimento puro e verdadeiro, recíproco. Sempre tivera medo de amar, admitia agora. Mais ainda quando esse amor se manifestava por uma garota dezoito anos mais jovem. Jurou não meter os pés pelas mãos. Voltou à realidade, elogiando Marcelo pela reforma caprichada. E por ter se recuperado da dependência do álcool; por se tornar um artista da construção civil. Disse estendendo os elogios a Tenório, enquanto manuseava um álbum de fotografias das construções que eles fizeram, e, como sempre, fazendo uma análise da conjuntura. Disse-lhes que se preparassem, pois o país passaria por um período de crescimento econômico nos próximos anos, em especial na área de construção civil.
- Já melhorou muito - interveio Tenório, animado - com a diminuição da alíquota de impostos em alguns materiais, o mercado está se aquecendo, o cimento barateou.
- É isso aí, Tenório - apoiou Elói - percebo que você está antenado. É inevitável, pois o crescimento está estagnado há décadas e este governo popular precisa dizer a que veio. A imprensa está batendo forte, faz parte do jogo de interesses, o que vai acabar forçando o governo a tomar algumas medidas a favor do povo. Primeiro porque é necessário, segundo porque precisa de apoio popular, que garanta a reeleição. Você já ouviu falar no efeito bumerangue? As denúncias, para desestabilizar o governo acabarão por fortalecê-lo. Voltará contra os denunciantes.
Quando a conversa entrava em sua fase mais animada, foi interrompida para o almoço. O cheiro delicioso do frango ao molho pardo provocou o estômago de todos, que se dirigiram à cozinha. À mesa Zenaide exibia um sorriso esplêndido, porém, antes de iniciar a refeição, ela o convidou a ir ao quarto e conhecer Vitória. Dona Sônia se assanhou, querendo acompanhá-los, mas se conteve ante o olhar significativo da filha. Assim ambos tiveram a oportunidade de ficarem um instante a sós. Vitória era, de fato, uma criança linda. Tinha um verde esperto nos olhos e abriu um sorriso encantador. Elói pegou-a nos braços, dizendo, "ó minha filhinha linda!". Zenaide olhou-o com ternura, dizendo: - Lembra-se de quando me propôs registrá-la em seu nome e eu não aceitei? Não seria justo, nunca quis tirar proveito de sua bondade. - E sei - respondeu Elói, retribuindo o olhar terno -, até mesmo a clínica que pus à sua disposição, você quase não utilizou. - Preferi o SUS - respondeu Zenaide - e peço-lhe desculpas pela maneira que o tratei naquela noite. Fui rude, estava irritada por outros motivos, que não vêm ao caso, não era nada pessoal, como pode ver, afinal, de você só tenho boas recordações. Um pouco de mágoa, por ter desaparecido - completou, piscando os olhos. - Zenaide, vamos sair uma hora dessas, com calma, para conversarmos? Que tal um jantar? Tenho ótimas recordações suas, vamos colocar as coisas em ordem. Está linda, quero que me fale de você, de seus planos, do trabalho, tudo... Mas ao tocar no tema do trabalho, Zenaide baixou as vistas e seu semblante mudou. - O que foi? - perguntou Elói -, falei algo que te aborreceu? - Não, não, de forma alguma - respondeu Zenaide -, a gente vai se encontrar sim, para uma longa e boa prosa, mas agora vamos almoçar. - Sim, vamos - concordou Elói, olhando-a no fundo dos olhos, mas antes me passe o número de seu celular.
Próximo capítulo:
21 - O Que Está Acontecendo?
Rapidinho:
Filhos da Terra é uma novela dividida em vinte cinco capítulos. Narra a trajetória de Zenaide, uma ninfeta, que se envolve num mundo do sexo, droga e fúria. A história de uma garota da periferia; pobre, sensual, que sonha com o sucesso. Zenaide e sua família, num turbilhão de sentimentos. Um jornalista, como um anjo de guarda, surge em sua vida. Um amigo, um pai; um amor.
Capa: Berzé; Ilustrações do miolo: Eliana; editoração eletrônica: Fernando Estanislau; impressão: Editora O Lutador - 2009, primeira edição
Agradeço pela leitura e peço a quem encontrar algum erro de gramática ou digitação, por favor, me avise.
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