19 - A Loira Misteriosa - Filhos da Terra
Saí de casa para o trabalho com o clima tenso na redação do jornal. Meus colegas estavam divididos. Eu confuso com os ataques diários. Para alguns o Presidente da República era populista, assistencialista e corrupto mesmo. Outros acreditavam em sua inocência. Corrupto era o nosso parlamento, onde o governo não tinha maioria e precisava negociar a aprovação de projetos, sentenciavam outros. Muitos atribuíam a responsabilidade a alguns ministros, especialmente o chefe da Casa Civil, "um arrogante", no entender de Renato Matos: - Eu não confio em ninguém que muda de cara" - repetia Renato o seu bordão, referindo-se ao fato de o Ministro da Casa Civil ter um dia feito plástica, para retornar ao Brasil. - Não, Renato, aí é muita maldade - eu retrucava em defesa do Ministro - puxa vida, o cara estava no exílio, foi a forma encontrada de voltar ao país sem despertar suspeitas, se os militares o pegam estaria morto.
As notícias chegavam em conta gotas. Primeiro foi a tv mostrando um funcionário dos correios recebendo um pacote de dinheiro. Depois o Deputado, ex-integrante da tropa de choque do caçador de marajás, vindo a público e abrindo a caixa-preta do financiamento de campanha e a coisa se degringolando. Novos atores aparecem em cena, envolvendo parlamentares da base aliada, um empresário e um banco num esquema denominado de valerioduto.
- Olhem aqui, pessoal! O que vou dizer não significa uma justificativa a favor do governo, mas me intriga tanto alarde com algo que sempre aconteceu na política brasileira: o toma lá dá cá, porquê só agora resolvem denunciar? O erro está no financiamento de campanha, que leva, inevitavelmente à criação do caixa 2, por isso defendo o financiamento público. Isso me cheira a golpe. E mais, o tiro pode sair pela culatra. Acho que os autores da denúncia não calcularam bem o calendário eleitoral e até la esse assunto estará desgastado e o governo poderá reverter esta situação. Não sei. A quem interessa a queda do presidente? Está me parecendo um processo kfkiano. E nós, jornalistas? Vocês observaram que a tal liberdade de imprensa é uma falácia? Não temos convicção do teor das denúncias, entretanto, escrevemos cegamente o que nos determinam, não conseguimos apurar nada. Está muito esquisito. Não posso defender o governo diante da gravidade das denúncias, assim como não posso denunciar sem conhecer as fontes..."
Mas, no fundo, eu estava desapontado. A aprovação despencava e os movimentos sociais não davam sinais de apoio. Lembrei-me, com tristeza, as palavras do filho de um companheiro de luta, um militante que sofrera tortura nos porões da ditadura: - Para que serviu a luta? A corrupção continua; a violência aumenta, os ricos continuam cada vez mais ricos e os pobres continuam na merda e você nem sequer consegue ser recebido pelos "companheiros, que fazem parte do governo". Pode haver manipulação nas denúncias, calúnias até, mas precisavam ser apuradas. A máquina do governo é grande, tem gente de todo tipo e a corrupção está entranhada na máquina pública. É preciso apurar, dizia aos seus botões no momento em que atravessava a Rua da Bahia em direção ao Maleta, viu a loira misteriosa do shopping entrando no edifício pela Avenida Augusto de Lima. Correu para alcançá-la, mas ao chegar no hall, a porta do elevador se fechou. Não conseguiu entrar, mas pode vê-la de relance, antes de a porta se fechar totalmente. Ficou deslumbrado com a beleza desmesurada da mulher. Foi tudo muito rápido. Agora sabia como encontrá-la, o coração pulsava forte, principalmente pela sensação de ter sito notado por ela. "Será que mora aqui? Vou esperar um pouco, talvez ela saia". Não fumava, mas a ansiedade o levou ao bar e comprou um cigarro picado. Fumou desajeitado, inquieto. Depois de meia hora de espera inútil, de novo sentiu-se ridículo e foi embora. Em casa foi direto ao chuveiro, pensando trocar de roupa e voltar pra fazer plantão na porta do prédio. "Estou parecendo um adolescente, caramba!"... E daí? Estou afim de uma parceira, chega de frescura! Vamos lá Elói. Esquece os problemas, esquece o governo, você lutou por um sonho, valeu a pena. Pare de se cobrar, relaxa e vá viver a vida enquanto é tempo".
Desceu o elevador e voltou ao local. Bem em frente do edifício, um bar. Sentou-se em uma cadeira, onde pudesse ver o movimento de entrada e saída do prédio. Depois de mais de uma hora e na quinta dose de uísque, a loira finalmente saiu. Devido a penumbra e por estar ligeiramente embriagado, não conseguiu identificar o vulto. Levantou-se e foi em direção a ela, que arrumava os cabelos com as pontas dos dedos, olhando de um lado a outro. Aproximou-se e trêmulo de surpresa disse: - É você? Não é possível, puxa vida! Mudou demais em tão pouco tempo, está lindíssima.
- Elói, seu miserável - respondeu a loira com um misto de alegria e raiva.
- O que está fazendo por aqui, garota? - perguntou com medo da resposta.
- Estou trabalhando, preciso ir, minha filha me espera.
Elói fingiu não saber de nada. Permaneceu parado diante dela, indeciso. Depois de alguns segundos, disse:
- Não vá agora, vamos conversar um pouco. Que bom te ver linda e saudável... - arrependeu-se da última palavra, mas ela não parecia infectada.
- Devo-lhe muitos favores, estou agradecida, mas você foi muito claro, mudou-se e me disse que só o procurasse em caso de extrema necessidade. Não te explorei muito não, foi só no começo. Sou atendida pelo SUS. Aquilo que suspeitávamos aconteceu, tenho, como diz minha mãe, "aquela doença" - respondeu Zenaide com um semblante indecifrável.
- Ô Zenaide, você está ótima. Eu moro aqui, do outro lado, se quiser, vamos lá ao meu apartamento, ou a outro bar, para conversarmos. Eu planejo visitá-los por estes dias.
Diante dele estava, com seus quase dezoito anos a garota mais linda do bairro, que sonhara ser famosa e rica. Mãe aos dezesseis, depois de inúmeras tentativas de aborto. Para ele, continuava sendo a garota mais linda, não só do bairro, mas do mundo. Quantos garotos, quantas garotas iguais a ela estariam nas mesmas condições? Era esse o futuro reservado para elas e eles? Voltou a si ao ouvir Zenaide quase gritando:
- Acorda, o que foi?
- Não sei. Acho que sonhava.
- Desculpe-me, estava pensando como a conheci. Tinha treze anos - explicava Elói, olhando-a comovido.
Mas Zenaide estava estranhamente séria, como se tivesse perdido algo, que ele não conseguia decifrar: um sentimento... Então ela disse algo que dava uma pista:
- A minha vida não tem sido nem um pouco interessante, a minha companhia menos ainda. Mas se for nos visitar será bem recebido, mamãe fala muito de você, o Marcelo, a Edileuza, todos perguntam...
- Quero saber de você - interrompeu Elói -, quero saber como está, o que pensa de mim, não me julgue mal, nunca esqueci ninguém, tenho as melhores lembranças de todos, especialmente de você. Tentou acariciar o rosto dela, mas ela se esquivou.
- Você está bêbado?
- Ligeiramente de fogo, só isso e aí? Vamos sair para conversar?
- Preciso ir embora, Vitória precisa de mim - respondeu, com o semblante indecifrável.
- Vitória, sua filha. Como ela está?
- Bem, na medida do possível - respondeu secamente.
- Estou te achando... Como posso dizer? Estranha, diferente. Cadê aquela alegria? Cadê aquela garota cheia de vida?
- Ah, tem dó, estas suas perguntas...
- Puxa vida, tenho o maior carinho por você - disse tentando, mais uma vez tocá-la. Zenaide recuou. Estava arisca.
- Você tem alguma mágoa de mim? Perguntou com voz triste.
- Existe motivo? Por que está me perguntando? Vim ao seu apartamento e acabei dormindo. Tive um pesadelo.
- Não sei. Estou te achando rude comigo. Não vou aborrecê-la, se é assim que você quer, tudo bem!
- Diga à Dona Sônia, que domingo próximo irei visitá-la. Posso? - a pergunta foi irônica e de retórica.
- Ela ficará muito feliz...
- Você, não?
- Talvez!
Assim foi o reencontro com Zenaide, depois de quase dois anos. Ele sempre a desejara, agora mais ainda.
Próximo capitulo:
20 - Frango Caipira ao Molho Pardo
Rapidinho:
Filhos da Terra é uma novela dividida em vinte cinco capítulos. Narra a trajetória de Zenaide, uma ninfeta, que se envolve num mundo do sexo, droga e fúria. A história de uma garota da periferia; pobre, sensual, que sonha com o sucesso. Zenaide e sua família, num turbilhão de sentimentos. Um jornalista, como um anjo de guarda, surge em sua vida. Um amigo, um pai; um amor.
Capa: Berzé; Ilustrações do miolo: Eliana; editoração eletrônica: Fernando Estanislau; impressão: Editora O Lutador - 2009, primeira edição
Agradeço pela leitura e peço a quem encontrar algum erro de gramática ou digitação, por favor, me avise.
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