17 - Vitória - Filhos da Terra

Zenaide sentiu faltar o chão sob os pés, quando fora o diagnóstico confirmou ser ela soro-positivo. Chorou convulsivamente. Por mais que os médicos dissessem que o vírus poderia não se desenvolver, e o coquetel era um medicamento poderoso, podendo, com certos cuidados, levar uma vida normal, ela não se conformava. Sentia-se culpada por ter colocado no mundo uma filha nessas condições. Os exames comprovaram que, a criança que nascera de uma cesariana, não estava infectada. Mas Zenaide não acreditava, dizia estar lhe ocultando a verdade. Chorava mais ainda ao lembrar-se de Francisco, o filho saudável de Edileuza e Tenório, motivo de orgulho da avó. Estava insegura quanto ao futuro da menina, de ela ser rejeitada na possibilidade de ser portadora do vírus HIV, de não receber a mesma atenção da família. Sentia-se amargurada ao lembrar das inúmeras tentativas de aborto. Nesse momento a mãe precoce necessitava de apoio e orientação, que não faltaram dos funcionários do SUS, nem da família. Ao chegarem em casa foram recebidas com alegria verdadeira. Abraçaram-se. Dona Sônia confortou-a, ao ponto de arrancar-lhe um sorriso. Ao pegar a criança no colo e ver aquele ser frágil, que vencera as dificuldades de nascer, chorou de emoção. - Zenaide, ao invés de ficar triste, devia agradecer a Deus por tudo. Pensou se a criança morresse? Como iria se sentir? Talvez morresse junto ou carregaria um sentimento de culpa por um longo tempo. Você está bem. Quanto a AIDS, procurei me informar. Estarei ao seu lado toda vez que for ao médico, vamos participar, juntas, das palestras. Vai ter de mudar o comportamento, evitando pegar gripe e se machucar. Deve alimentar-se bem, seguir as orientações médicas. Tomar juízo nesta cabecinha oca. Sexo, só de camisinha, para não passar a doença a outras pessoas. Existe um programa do governo para os portadores do vírus... E a menina é linda. Pena não sabermos quem é o pai. Também nem sei se pai faz falta, vocês foram criadas sem e são maravilhosas. Quanto a esta fofinha aqui, hum, coisinha linda, vai se chamar Vitória, o que acha? É uma vitória, que será maior com você pegando um rumo na vida. Porque agora as coisas mudaram e o sonho das passarelas, ó, acabou-se aos dezesseis anos, quase dezessete, com uma filha pra cuidar - concluiu Dona Sônia olhando ternamente para a neta. Zenaide concordou com o nome sem dizer nada. Em seguida foi para o quarto, descansar.

*****

O que se passava em seu coração, ninguém tinha acesso. Elói arcara com algumas despesas, conforme prometera, mas não se comunicaram durante toda a gravidez. Zenaide sentia sua falta, pois ele sempre tinha as palavras certas nas horas incertas; não tinha coragem de procurá-lo. Sabia das dificuldades que enfrentaria: sem emprego, sem profissão, o que fazer? Dormiu um sono profundo, enquanto Dona Sônia estava sentada na poltrona da sala, admirando a neta, no berço. Apesar de triste, sentia-se confiante. Edileuza e Tenório estavam bem, Marcelo transformara-se radicalmente. Olhou fixamente o semblante da menina e reconheceu alguns traços de Elói: "Minha intuição não falha, Vitória é filha daquele safado, mas a gente não pode confiar em ninguém, meu Deus! Qual a razão de Zenaide não querer revelar quem é o pai? Isso não vai ficar assim". Decidiu dar um tempo à filha, afinal mal acabara de chegar da maternidade e infectada, outra dor de cabeça.

Colocou a criança no berço e foi cuidar da casa. Só então lembrou-se de Atílio. Foi ao quarto e o encontrou dormindo e roncando. Acordou-ou, passando as mãos suavemente em sua calva: - Vamos, levante-se senhor folgado. Porque não muda de mala e cuia de uma vez por todas para cá?

- No dia em que eu me mudar para aqui, será o começo do fim de nossa felicidade. Você não vai suportar o meu ronco e saiba que, libero gases insuportáveis - respondeu, puxando-a para o seus braços.

- Vou coar um café, venha conhecer a sua neta.

- O quê? Está querendo me seduzir usando uma neném, sabe que não resisto e acabo vindo mesmo - disse beijando a face da amada, enquanto se dirigia à cozinha.

- Sônia forrou a mesa com uma toalha com figuras de frutas tropicais e serviu o café como bolo de chocolate, que Atílio esperou pacientemente ficar pronto. Enquanto Sônia preparava o bolo e o café, conversavam animadamente. Atílio observava os movimentos ágeis da companheira, sentindo-se excitado vendo-a de lá pra cá, rebolando os quadris. Havia, entretanto, algo estranho, apesar da aparente calma. Percebia uma agitação na companheira e ponderou:

- Estou te achando agitada. Como médium, você sabe, capto energias. Quer me contar alguma coisa?

- Quero sim! - respondeu de pronto, aliviada -, estou me sentindo abafada. Você sabe quase tudo de minha vida e me entende. Na verdade estou preocupada com a minha filha. Nossa situação financeira é difícil, embora tenha melhorado nos últimos tempos, a emocional também, mas lidar com a doença de Zenaide, esta doença, você sabe...

- AIDS. Sei - completou Atílio.

- Pois é. Isso é o principal, afinal a saúde está em primeiro lugar e esta doença... Mas a minha preocupação é outra, agora. Estou pensando sobre o pai da criança. Quem é?

- Pai é quem cuida, mas qual é a dúvida?

- Estou desconfiada do jornalista. Já te contei a história, de como éramos amigos, eles eram muito agarrados. Acho que ele pode ser o pai. O que você acha?

- Zenaide não quer contar. Estranho é, lógico. O sumiço, assim de repente - apoiou Atílio -, mas o que se pode fazer?

- Estou pensando em procurá-lo, abrir o jogo - respondeu Sônia, uma mão contra a outra.

- Tudo bem, mas vai com jeito. Isso seria um problema pra sua filha resolver, não acha?

- Atílio, ela é de menor, avoada. Além disso está debilitada. Vou procurá-lo sem que ela saiba, falar com ele, quem sabe... Seria ótimo se ele assumisse!

- Você é quem sabe. Se quiser posso ir junto - ofereceu.

- Prefiro ir sozinha. Sua presença pode deixá-lo arredio, uma testemunha, entende? Não, obrigada, meu amor.

- Está bem, faça como achar melhor.

Em seguida despediram-se.

Próximo capítulo:

18 - A República em Perigo

Rapidinho:

Filhos da Terra é uma novela dividida em vinte cinco capítulos. Narra a trajetória de Zenaide, uma ninfeta, que se envolve num mundo do sexo, droga e fúria. A história de uma garota da periferia; pobre, sensual, que sonha com o sucesso. Zenaide e sua família, num turbilhão de sentimentos. Um jornalista, como um anjo de guarda, surge em sua vida. Um amigo, um pai; um amor.

Capa: Berzé; Ilustrações do miolo: Eliana; editoração eletrônica: Fernando Estanislau; impressão: Editora O Lutador - 2009, primeira edição

Agradeço pela leitura e peço a quem encontrar algum erro de gramática ou digitação, por favor, me avise.

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