16 - Reviravolta - Filhos da Terra

O que antes era de um jeito, transforma-se repentinamente. Em alguns casos as mudanças são lentas, quase imperceptíveis. Nem mesmo os que têm condições econômicas favoráveis podem se acomodar, pois o mundo está em constante transformação. Alguns conseguem prever as mudanças que acontecerão em décadas futuras e planejam suas ações. De um lado os poucos privilegiados se preparam para uma nova realidade econômica e social, enquanto do outro lado os apartados apertados vão se virando como podem, correndo atrás do prejuízo, sobrevivendo às intempéries. Permanente mesmo é a luta pela vida.

É possível fazer algumas previsões catastróficas quando se trata das pessoas que vivem precariamente. É possível prever tragédia social quando governantes atropelam direitos ao defender a responsabilidade fiscal e a redução de déficit previdenciário através de reduções salariais de aposentados e pensionistas; quando criam obstáculos jurídicos e periciais na concessão de aposentadorias; quando são lentos na implantação da reforma agrária; quando não há perspectivas de curto prazo para os jovens. Seria possível prever o futuro da garota mais linda do bairro? Ela teria condições objetivas e subjetivas de realizar os sonhos? Os otimistas e de corações puros diriam que ela seria feliz, que pela sua beleza faria sucesso. Torciam por ela. Os pessimistas empedernidos diriam que o destino dela estava definido: drogas, prostituição, vadiagem, tristeza e dor. Quais eram as opções de Zenaide? Por enquanto deixemos a garota mais linda do bairro e vamos ver o que Marcelo anda fazendo.

Quem poderia imaginar que ele abandonaria o vício etílico e pegaria rumo na vida? Uma aposta, que nem mesmo os membros da família fariam, exceto Edileuza. Marcelo não só abandonou o vício, como se tornou um exímio pedreiro. Ele e Tenório planejavam construir uma microempresa, a T & M Construção Civil. Não dispunham de capital suficiente, mas estavam otimistas. Marcelo era outra pessoa, as marcas deixadas pelo vício apagavam-se de sua face, a pele estava lisa e depois de ter ido ao dentista, podia sorrir com segurança. As mulheres, mesmo as que o evitavam, agora faziam charme, tentando seduzi-lo. Ele não se fazia de rogado, atendia a todas com atenção, ao ponto de muitas passarem a chamá-lo de "galinha". Ele respondia, "galinha não, galo". E gritava Galo, Galo! Era atleticano, para irritação do cruzeirense Nestor do Bar. De fato, nas noites de folga e em finais de semana, estava sempre acompanhado de uma garota diferente. Dona Sônia o aconselhava arranjar uma moça séria, para constituir uma família e progredir na vida. O filho respondia que não queria saber de casamento, precisava recuperar o tempo perdido no alcoolismo. Nas conversas sobre sexo, em casa ou com os amigos, gabava-se de sua virilidade. Em tom machista dizia não conseguir trepar com todas as mulheres do mundo, mas estava tentando. Tenório e Edileuza esforçaram-se em convencê-lo a se manter fiel à doutrina kardecista, mas ele preferiu ser voluntário do AA. Depois de se livrar do vício, continuou assíduo, empenhando na causa, como forma de retribuir a ajuda recebida. Frequentava o AA Mãos Amigas, dava depoimentos, ajudava a manter a sede organizada, um exemplo de que é possível sair da dependência química.

Dona Sônia, inteiramente recuperada da perda de Wallace, frequentava o centro espírita. Estava feliz, apesar dos desatinos de Zenaide, mas não sofria, porque tinha a resposta: livre-arbítrio. A menopausa deixou-a mais serena. Estava namorando o Seu Atílio, um viúvo sacudido, no dizer dela, médium do centro, que recebia mensagens de almas inconformadas, ansiosas por reencarnar. Dona Sônia, Soninha para Seu Atílio, tomou uma decisão, que estava deixando os vizinhos incomodados. Cuidar dos gatos abandonados é uma missão altamente espiritual, dizia. "Mas Sônia, com tantas crianças desamparadas, esperando adoção, você vai gastar dinheiro e tempo com gatos?" - inquiria Ivonete, a amiga dos tempos da gandaia. - É de partir o coração ver estes pobres animais perambulando pelas ruas, famintos e doentes, maltratados. Pobrezinhos, tão carentes, tão fofinhos. Como alguém pode deixar estes pobres animais, indefesos, sem o aconchego de um lar? Vou cuidar sim! - afirmava, convicta, olhando fundo os olhos da amiga - Eles também têm almas, não nasceram gatos atoa, porque tudo tem uma razão, uma explicação. Ivonete caía na gargalhada, achava uma esquisitice a nova mania da amiga, mas respeitava. Porém alguns vizinhos tinham opiniões contrárias, sentiam-se incomodados. Alegavam serem importunados pelos miados, impedindo-os de dormirem, e muitas vezes invadindo suas casas, transmissão de doenças, ataques nas despensas. - Doença eles não transmitem - afirmava convicta - porque são vacinados; não bolem nas despensas, porque eu os alimento e não é verdade que perturbam o sono, porque dormem como anjos à noite... - Um momento, interrompia Ivonete - gatos tem hábitos noturnos... - Os meus não - retrucava Sônia - às vezes miam de dia, porque é da natureza de gatos, miar e não é normal as pessoas dormirem de dia, a não ser estes desocupados, que passam a noite toda nos botecos, bebendo e jogando cartas, ou criminosos, que dormem durante o dia, para fazer assaltos à noite. - A senhora está me chamando de vagabundo? - reagia, nervoso, Seu Justino, metalúrgico aposentado, que tentara várias vezes, sem sucesso, seduzi-la. - Não quis dizer isso pro senhor, Seu Justino, me desculpe - respondia, caindo em si -, tenho o maior respeito pelo senhor, que conheço ó, faz tempo.

Estes atritos eram facilmente contornados, porém alguns garotos da Vila Subaco das Cobras, deram para caçar gatos e fazer churrasco deles, para o desespero dela. - Mas que merda, estes meninos não têm o que comer? Precisam sacrificar os meus bichanos? - Recamava com os vizinhos. Assim Dona Sônia vivia feliz com seus amores. Para a felicidade ser completa, só faltava Zenaide se ajeitar na vida.

Próximo capítulo:

17 - Vitória

Rapidinho:

Filhos da Terra é uma novela dividida em vinte cinco capítulos. Narra a trajetória de Zenaide, uma ninfeta, que se envolve num mundo do sexo, droga e fúria. A história de uma garota da periferia; pobre, sensual, que sonha com o sucesso. Zenaide e sua família, num turbilhão de sentimentos. Um jornalista, como um anjo de guarda, surge em sua vida. Um amigo, um pai; um amor.

Capa: Berzé; Ilustrações do miolo: Eliana; editoração eletrônica: Fernando Estanislau; impressão: Editora O Lutador - 2009, primeira edição

Agradeço pela leitura e peço a quem encontrar algum erro de gramática ou digitação, por favor, me avise.

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