14 - O Tempo Continua Implacável - Filhos da Terra

A vida segue o seu curso, com cada um se virando como pode. Marcelo era outro que estava com os dias contados. O álcool ia, aos poucos, roendo o seu fígado. Quando alguém lhe dizia para parar de beber, que o álcool matava aos poucos, ouvia como resposta a frase de que não tinha pressa de morrer. Acabou virando um personagem do bairro. Quase todos conviviam com ele, sem maiores problemas. Alguns até lhe pagavam uma dose de pinga, compartilhavam cerveja; outros se recusavam terminantemente, mas ele insistia. Como um cão enxotado, enfiava o rabo entre as pernas e saía, ou continuava rondando o ambiente, mas logo abanava o rabo ao primeiro que surgisse em seu itinerário, em geral de um dos bares do bairro, próximo de sua casa. Algumas vezes fora visto dormindo nos passeios, com as crianças bulindo com ele. A família tentou de todas as formas, afastá-lo do vício. Ele até cedeu, passou vários dias sem beber, trabalhando de servente de pedreiro e frequentando o centro espírita, em companhia da mãe, Edileuza e Tenório. Encontrar bons ajudantes era uma dificuldade que Tenório enfrentava, e nas semanas em que Marcelo o acompanhava nas obras, sentiu-se satisfeito, pois o ajudante era bom de serviço, mas durou pouco, ele voltava sempre pra bebida. Edileuza pedia paciência, como forma de ajudar o irmão. "Tenho fé", dizia Edileuza, "com a nossa ajuda ele vai largar a bebida. Mas Tenório era cético, por conta do próprio processo evolutivo. Para ele, Marcelo havia reencarnado nessa condição, por causa de encarnação passada e pelo seu livre-arbítrio. Mas a amada rebatia, com argumentos da própria doutrina, alegando que o irmão "não reencarnara entre eles por acaso, a espiritualidade o colocou em nosso caminho, para podermos ajudá-lo. Não podemos julgá-lo, talvez ele esteja nessa condição por responsabilidade nossa. Não sabemos o que fizemos em vidas passadas e agora a espiritualidade está nos dando a oportunidade de nos redimirmos, por meio dele, pelo amor", concluía com os olhos umedecidos. Tenório olhava a companheira com ternura e compreensão.

Impossível, nessas horas não falar da situação em que Zenaide se encontrava. Com muito esforço Edileuza conseguiu convencer a irmã de não prosseguir com a ideia do aborto. Depois de algumas tentativas fracassadas e de muito sofrimento, ela desistiu. Um dia teve de ser levada ao pronto-socorro. Ao tentar enfiar uma agulha de tricô no útero, feriu as paredes da vagina e o sangue jorrou. Foi um desespero. A mãe, que até então não sabia de nada, foi quem prestou os primeiros socorros. Para evitar ocorrência policial, alegaram uma queda no banheiro e ao tentar se segurar, derrubara uma escova pontiaguda , nela caindo sentada, ocasionando, assim, os ferimentos. A garota caminhava para o quarto mês de gravidez, quando da última tentativa de aborto. Antes tomara uns chás de guiné, sem sucesso. Após se conformar, telefonou para a redação do jornal e informou a Elói, que iria a clínica fazer todos os exames, inclusive o de HIV e o pré-natal. Elói garantiu-lhe o apoio e disse, que quando tivesse um tempo livre, iria visitá-los.

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Olhando Edileuza às vésperas do parto, Tenório falou da felicidade de ser pai. "Um filho, ou filha, tanto faz, vai mudar a nossa vida", dizia estampando um sorriso sereno, alisando carinhosamente a barriga da futura mãe, com palavras ternas ao pequeno ser, a nova vida que brotava das entranhas da mulher amada. Era a grávida mais bela. Revelara-se uma excelente companheira e não parecia existir no mundo um casal mais feliz. Quanto a irmã, estavam otimistas, apesar de ainda não saber o resultado dos exames. Todos aguardavam com ansiedade, devido a possibilidade de a mãe e feto estarem infectados. "Vai dar tudo certo", dizia Edileuza, com as mãos postas, "mamãe terá dois netinhos", "ou duas lindas netinhas", corrigia Tenório.

"Também acontecer de vir um neto e uma neta, porque não?", completava Edileuza. Abraçaram e se beijaram . Nesse momento ouviram batidas forte na porta. "Deve ser a mãe, conheço seu jeito afobado", disse Edileuza, levantando-se para atender. Mal abriu a porta, Dona Sônia entrou esbaforida: - Minha filha, o resultado é positivo - disse sentando-se no sofá. - Calma mãe, o que deu positivo? - Ora, filha, Zenaide está infectada, tem aquela doença... - A senhora quer dizer que ela está com AIDS, esse é o nome correto "daquela doença", mãe - corrigiu Edileuza. - É... É isso daí. Meu Deus!, vocês sabiam? Indignou-se. - Não mãe, claro que não. Tínhamos suspeitas, mas isso não interessa. Saber o que aconteceu não muda nada. O que tem de ser feito, será feito. AIDS não é mais um bicho de sete cabeças. Os infectados, com acompanhamento médico, fazendo uso do coquetel, podem levar uma vida quase normal - respondeu a filha em tom professoral. - Ai meu Deus do céu - desesperava-se -, a gente não consegue ter sossego. Mais esta! E a criança, a pobre criança! Alguém sabem quem é o pai? - Zenaide não conta, mãe, diz que não sabe. - Sem pai, com AIDS, sem futuro...

- Preste atenção, Dona Sônia, vamos esperar. É possível que a criança nasça saudável. Zenaide deixou de ser desmiolada. Ela me contou sobre as palestras que assistido no Iria Diniz e os médicos disseram da possibilidade de o feto não estar infectado. Antes da realização dos exames e até hoje, ela participa, atenta, das palestras. Além da enorme ajuda que Elói esta dando, ela está surpreendentemente responsável, mãe, procurando atendimento, também na saúde pública. Ela me disse não ser justo explorar o Elói. Não é bacana? - dizia Edileuza, para abrandar o coração agitado da mãe.

- Ah sei não! Às vezes penso que o Elói é o pai, sumiu de repente... Não confio em mais ninguém.

- Ah pára com isso, mãe! Elói não é o pai, tenho certeza e se fosse até que seria ótimo. Infelizmente não é. Vamos fazer o que tem de ser feito. Nada de pânico, pois a hora é de cabeça fria, Zenaide já sabe?

- Está sabendo. Vim com ela do médico, esqueceu que ela é de menor? Ela chorou muito, está em casa. Conversamos com o médico e agora começa o tratamento. Segundo o doutor, o vírus não se desenvolveu, há chances , com o tratamento, de a criança nascer saudável. Uma cesariana, sem contato com o sangue. A doença pode se desenvolver, ou não. A medicina está avançada - disse a filha, consolando a mãe.

- O Lula começou mal. Está pior que o outro. Votei nele porque o Elói pediu, eu queria anular. Os postos de saúde estão abarrotados. Tudo de errado é culpa da tal herança maldita do Fernando Henrique. Em Contagem, então, nem se fala...

- Eu já me decepcionei com um deputado evangélico. Realmente, Lula está deixando a desejar. Mas é cedo, ele ainda nem esquentou a cadeira. Pior que FHC é impossível. Mas não quero saber de política. Vamos dar apoio a Zenaide, assim como estamos apoiando o Marcelo. Além de ter o nosso sangue, são filhos da terra abençoada e como tais, não se entregam - animou Edileuza.

- E tem outro jeito? São meus filhos e desejo a todos a maior felicidade do mundo - respondeu a mãe. Em seguida foram ver Zenaide, em repouso.

15 - Para Onde Vai o Governo?

Rapidinho:

Filhos da Terra é uma novela dividida em vinte cinco capítulos. Narra a trajetória de Zenaide, uma ninfeta, que se envolve num mundo do sexo, droga e fúria. A história de uma garota da periferia; pobre, sensual, que sonha com o sucesso. Zenaide e sua família, num turbilhão de sentimentos. Um jornalista, como um anjo de guarda, surge em sua vida. Um amigo, um pai; um amor.

Capa: Berzé; Ilustrações do miolo: Eliana; editoração eletrônica: Fernando Estanislau; impressão: Editora O Lutador - 2009, primeira edição

Agradeço pela leitura e peço a quem encontrar algum erro de gramática ou digitação, por favor, me avise.

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#LulaLivre Doravante esta hashtag estará em minhas publicações enquanto não apresentarem as provas contra Lula