2 - O Ambiente Familiar - Filhos da Terra
Rapidinho:
Filhos da Terra é uma novela dividida em vinte cinco capítulos. Narra a trajetória de Zenaide, uma ninfeta, que se envolve num mundo do sexo, droga e fúria. A história de uma garota da periferia; pobre, sensual, que sonha com o sucesso. Zenaide e sua família, num turbilhão de sentimentos. Um jornalista, como um anjo de guarda, surge em sua vida. Um amigo, um pai; um amor.
Capa: Berzé; Ilustrações do miolo: Eliana; editoração eletrônica: Fernando Estanislau; impressão: Editora O Lutador - 2009, primeira edição
Agradeço pela leitura e peço a quem encontrar algum erro de gramática ou digitação, por favor, me avise.
Se é a sua primeiro leitura, sugiro ir ao primeiro capítulo.
Marcelo era o mais velho dos irmãos e se entregava ao álcool cada vez mais. Não passava uma semana sem arrumar encrenca. Não que tivesse uma natureza ruim, ao contrário; era trabalhador e solidário como os irmãos e com os amigos. Mas a bebida alterava, ou aflorava a sua personalidade violenta. Brigava com qualquer um que contrariasse seu ponto de vista sobre qualquer assunto em discussão, enfim, transformava-se num chato insuportável. Eu era uma das poucas pessoas que ele ouvia com atenção e respeito. Até mesmo quando estava bêbado, me obedecia. Os elogios que me dirigiam na presença das pessoa causavam-me constrangimentos:
- O Elói é a melhor pessoa do mundo, nem mesmo meu pai, que Deus o tenha, tinha um coração como o deste cara. Ele é justo, tem lugar garantido no céu!
- Menos, Marcelo, menos! Não estou com esta bola toda, nem sabemos se o céu existe.
De vez em quando eu ia visitar a família dele, para "jogar conversa fora", mas secretamente, queria contemplar a beleza da irmã. Depois que aparecera na televisão, Zenaide se transformara radicalmente. O semblante de adolescente desaparecera e no lugar surgiu uma mulher decidida a ir ao encontro do sucesso e eu, em seus sonhos, seria a pessoa que lhe abriria as portas deste mundo. Ela passou a me procurar com insistência, pedindo-me orientações. Entrava em meu escritório, sem pedir licença, interrompendo meu trabalho. Às vezes eu me irritava, mas ela falava com voz sedutora e percebendo minha excitação, privilegiava-me deixando à mostra seus seios brancos e pontudos. Corado, respondia:
- Porquê você cismou que eu tenho as chaves que abrirão as portas da fama para você, Zenaide?
Ela então sentava-se comodamente na poltrona, abrindo ligeiramente as pernas, para eu ver um montinho de cabelos negros tentadores e dizia:
- Você é bem relacionado, conhece pessoas da televisão, conhece empresários da moda, conhece políticos...
Reprimindo o desejo de abraçá-la, eu replicava:
- Veja bem, Zenaide, você é uma menina bonita, mas isto não basta. Além de menor, você é quase uma analfabeta. Vai estudar, criança!
Nada a irritava tanto quando eu a chamava de criança. Levantava-se e saía blasfemando. Antes de bater a porta com força, dizia: - Já estou na sétima série e você é um tarado! Eu ria, mas intimamente sabia que ela tinha uma certa razão, pois dentro de mim as fantasias de tê-la nua sobre a minha cama ou na poltrona, iam ganhando formas. Não tinha ideia de como isso poderia acontecer, se é que iria acontecer, pois morria de medo de escândalo, complicações judiciais. Às vezes não resistia e me masturbava, pensando estar cobrindo-a de beijos.
Edileuza era o contrário da irmã. Escondia sua beleza em vestidos longos, não usava maquilagem e tinha um ar grave de uma evangélica. Frequentava a Igreja Nacional do Reino de Amor. Impossível manter uma conversa com ela durante cinco minutos, pois estava sempre citando um capítulo da Bíblia. Fora da Bíblia ou das palavras dos pastores da Igreja só havia devassidão e demônios. Ela era o sustentáculo econômico da família, trabalhava e orava. Tentou impor normas rígidas no lar, impedir que ouvissem músicas que não fossem goospel. Televisão, só os programas evangélicos. Mas não conseguiu. A mãe, Dona Sônia, adorava pagode e não perdia a novela das sete, das oito, para o desespero da filha careta. Não tinha o controle da família e se desesperava, vendo o irmão caçula, de apenas onze anos em companhias esquisitas.
Wallace era de fato uma criança rebelde. Faltava às aulas e quando ia, aprontava. A mãe dava conselhos, porém, as dificuldades financeiras não lhes permitiam acompanhá-lo de perto. O futuro de Wallace era nebuloso.
Dona Sônia não era plenamente equilibrada. Ficara viúva relativamente jovem, sem profissão e com quatro filhos para criar. Conformava-se com tudo dizendo que Deus escreve certo por linhas tortas. Nesta altura, Edileuza, apesar de jovem, dividia as responsabilidades da casa, cuidando dos menores.
Apesar das diferenças, das brigas domésticas e do desequilíbrio familiar, eram unidos. Todos idolatravam a mãe. Mesmo a beata Edileuza, que condenava as estrepolias sexuais dela e o despudoramento de Zenaide, não permitia que elas fossem difamadas por ninguém. Quando vez ou outra alguém da família saía aos tapas com algum vizinho, lá estavam todos, unidos contra o suposto agressor. E a coisa ficava mesmo feia. Munidos de paus, pedras, facas, botavam o desavisado pra correr.
Em pouco tempo eu estava integrado nesse intempestivo ambiente familiar. Pegava sem pedir, o café; quando tinha pão e manteiga, comia tranquilamente, sob o olhar de todos. Dona Sônia, solícita, me cercava de atenção, inclinando, para me servir o café, momento adequado para me mostrar os seus predicados. Tinha seios firmes, apesar das marcas que o tempo gravara em sua pele. tinha os seus encantos. Algumas vezes pensei em satisfazer meus impulsos sexuais com ela, sem correr o risco de uma gravidez, pois seu útero fora retirado. Cheguei mesmo a perguntá-la um dia, quando não sabia como sossegar a libido, se ela tomava precauções na hora de fazer amor. Animada, respondeu-me: - Claro, eu exijo camisinha! - orgulhosa e sedutora, acrescentou: - Também não ando aí feito louca, fazendo amor com qualquer um. Mas preferi não me envolver. Inconscientemente eu a evitava, não queria magoá-la, pois sabia do sonho dela de se casar novamente. Secretamente eu tinha medo... Mas de quê? Por quê?
Eu era um convidado nos almoços de domingo, o dia reservado para me relacionar socialmente com os vizinhos. Às dez horas em ponto tomava cerveja no Bar Tomé e jogava conversa fora com os frequentadores; às onze jogava truco na casa de Seu Vitor, de onde saía para o almoço com a família de Dona Sônia, sempre recebido com alegria sincera.
Nem sempre o almoço transcorria em paz. Marcelo chegava bêbado e armava um barraco. Edileuza queria fazer oração antes e Zenaide batia o pé: - Ah Edileuza, cada um que faça a sua oração em silêncio, Deus não é surdo. Isto porque, Edileuza orava em voz alta, num monólogo interminável.
- Não custa nada - eu intercedia em favor da beata - vamos orar.
- Mas que não vire moda - reagia a irmã. O cardápio era sempre o mesmo: frango. Ora com quiabo e angu; ora ao molho pardo; ora com macarrão ou frito, assado. Sempre saboroso. Quando eu não almoçava com eles, sentia um vazio no estômago. Dona Sônia estava sempre bem vestida e maquiada, provocante. Edileuza com seu vestido longo, o rosto limpo; Marcelo escornado na cama, dormindo e roncando, depois de eu tê-lo acalmado. Wallace comia em silêncio, enigmático e Zenaide... praticamente de sutiã e calcinha, exibindo seios, barriga, costas, bundas e pernas lindas. O assunto era a aparição de Zenaide na TV e os novos amigos que conquistara. A mãe demonstrava preocupação.
- Elói - dizia com o garfo suspenso - conversa com esta menina. Já não me obedece mais. Está chegando tarde em casa, Andando com desconhecidos, falando em abandonar a escola. Não sei mais o que dizer a ela, pois, para tudo ela tem uma resposta na ponta da língua. Sexta-feira passada, um rapaz bonito, num carrão foi quem a trouxe pra casa.
Esta notícia me abalou. Mas me contive e disse, tentando esconder a raiva:
- Mas o que é isso, Zenaide! Ficou maluca? Não consegui dizer mais nada. Olhando-me maliciosamente, ela respondeu:
- Não se preocupem comigo, sei o que estou fazendo. O rapaz é gente fina, prometeu conversar com um estilista conhecido dele, uma oportunidade de eu vir a trabalhar em seu ateliê. Não posso perder essa oportunidade.
Olhei fundo em seus olhos e disse:
- Zenaide, acho bom tomar cuidado. As coisas não são tão simples assim. O mundo está cheio de picaretas, querendo tirar proveito de pessoas inocentes como você.
- Ah, tem dó, Elói! Sou boba não. Sei o que quero. Já que você está tão preocupado comigo, porque então não faz nada? Você é jornalista, sem jornal, é claro! Completou, me provocando.
- Você é de menor - retrucou Edileuza.
- Pois saiba que escrevo artigos em diversos jornais, dou assessoria de comunicação e sou procurado por empresários e políticos. A questão é que eu não confio nos propósitos deste pessoal. Estão interessados no vil metal, em explorar, enganar e manipular a opinião pública. Respondi com empáfia.
- Você nunca me mostrou uma foto sua ou um artigo com a sua assinatura em jornal ou revista. Tenho cá minhas dúvidas - disse balançando leve e sedutoramente os cabelos.
Respondi tentando controlar a raiva:
- Não tenho necessidade de aparece, não me interessa o convívio com os hipócritas. Escrevo os meus artigos e os vendo, porque preciso de grana para suprir as minhas necessidades, entende? Não sou vaidoso, mas vou mostrar-lhe os meus textos, assinados e publicados em revistas afinadas com a minha ideologia. Só uso a mídia podre como fonte de subsistência. Não tenho projeto de acumular capital.
- Para de falar bobagem! Eu quero ter muita grana, viajar e frequentar os melhores restaurantes, ter uma casa bonita. Quero sair daqui, isso aqui é uma pobreza. Nem um banheiro decente nós temos!
- Está vendo, Elói, como ela ficou mais atrevida depois que apareceu na televisão? Nós somos pobres, mas somos honestos - interveio Dona Sônia.
- Zenaide, não se trata de você querer melhorar de vida. Quanto a isso, tudo bem, mas é preciso cuidado, o mundo está cheio de pilantras. Como você pode ter certeza de que este cara quer mesmo te ajudar? Te digo com conhecimento de causa: o mundo das passarelas é hipócrita, não só das passarelas, o da mídia, do teatro e do cinema, dos esportes. Não estou querendo dizer com isso, que não existam profissionais sérios. Você não pode ser encaminhada por um estranho, sem a presença de um adulto responsável, entende?
- Em você eu posso confiar? Respondeu-me desaforadamente.
- Não só você, todos nesta casa confiamos em Elói. Faça o favor de respeitá-lo, está bem?
Fiquei aliviado com as palavras de Dona Sônia e olhei com ar vitorioso pra Zenaide, que balançou os ombros em sinal de desdém. Nesse momento uma emoção nova tomou conta de mim, precisava, de alguma forma contribuir para que os sonhos da garota não se transformassem em pesadelos e obsessão. Um longo silêncio invadiu o ambiente, interrompido apenas pelo som dos talheres inoxidáveis, contentes por ser o dia em que saíam da sombra da gaveta e se exibiam sobre a mesa forrada com toalha de renda de bilro. Com um olhar dissimulado percebi os olhos marejados de Zenaide. Contive o ímpeto de dizer-lhe palavras de consolo. Reprimi também o desejo de abraçá-la e acariciar-lhe os cabelos longos, penteados e tingidos de loiros. Ela acreditava que seus cabelos negros seriam um obstáculo à sua carreira de sucesso. Suas lágrimas derramaram dentro de mim, inundando-me de tristeza. E era contra essa dor abissal que eu lutava cotidianamente, só interrompida quando Zenaide entrava, iluminando meu microcosmo. Queria pedir-lhe que enxugasse os olhos e sorrisse para mim. Como para me punir, ela se manteve em silêncio durante o almoço. Em seguida foi para o quarto.
O silêncio foi quebrado quando Dona Sônia disse: - Não sei o que está acontecendo com esta menina, ultimamente deu para ficar macambúzia. - Não se preocupe, é próprio da idade, vai passar - respondi.
Próximo capítulo:
3 - O Microcosmo de Elói
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